Filosofar é aprender a morrer
Trechos de Michel de Montaigne em Os Ensaios (Livro I, cap. XIX) (Cia. das Letras/Penguin). Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. Os comentários ao final são meus.
Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. É assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplação retiram nossa alma de nós e a ocupam separada do corpo, o que constitui certo aprendizado da morte e tem semelhança com ela; ou então, é porque toda a sabedoria e a razão do mundo se concentram, afinal, nesse ponto de nos ensinar a não ter medo de morrer. Na verdade, ou a razão está escarnecendo de nós ou seu objetivo deve ser apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve tender, em suma, a fazer-nos viver bem e a nosso gosto, como dizem as Sagradas Escrituras.
Todas as opiniões do mundo chegam à conclusão de que o prazer é nosso objetivo, conquanto adotem meios diversos, do contrário as rejeitaríamos de início. Pois quem escutaria aquele que estabelecesse como objetivo nosso pesar e sofrimento? As discussões das escolas filosóficas, nesse caso, são verbais. Passemos por essas bagatelas tão solertes (Sêneca). Há aí mais teimosia e pirraça do que convém a uma nobre profissão. Mas, seja qual for o personagem que o homem adote, ele sempre representa, de permeio, o seu. Digam o que disserem, na própria virtude o objetivo último que visamos é a volúpia.
Agrada-me manter os ouvidos das pessoas com essa palavra que as contraria tão fortemente: e se ela significa um deleite supremo e extremos contentamento, é uma melhor acompanhante para a virtude do que qualquer outra coisa. Por ser mais viva, nervosa, robusta, viril, essa volúpia é mais seriamente voluptuosa.
[...] A felicidade e a beatitude que reluzem na virtude preenchem todas as suas dependências e avenidas, da primeira entrada até sua última barreira. Ora, um dos principais benefícios da virtude é o desprezo pela morte, o que fornece à nossa vida a mansa tranquilidade, dá-nos seu gosto puro e benfazejo sem o qual todo outro prazer está extinto. [...] Pois se a morte nos amedronta, é um contínuo motivo de tormento que nada consegue aliviar. Não há lugar onde ela não nos venha. Podemos virar incessantemente a cabeça para cá e para lá, como em terra suspeita: ela é como o rochedo sempre suspenso sobre Tântalo (Cícero).
[...] Amedrontamos nossa gente só em mencionar a morte, e a maioria se persigna, como diante do nome do diabo. [...] Porque essas sílabas atingiam muito rudemente seus ouvidos, e porque essa palavra lhes parecia de mau agouro, os romanos aprenderam a suavizá-la ou diluí-la em perífrases. Em vez de dizer “ele morreu”, dizem “ele parou de viver”, ou “ele viveu”. Consolam-se, contanto que seja vida, ainda que passada.
[...] Jovens e velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ninguém sai de outro jeito senão como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que não há homem tão decrépito que não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalém diante de si. E ademais, pobre louco que és, quem te fixou os prazos da vida?
[...] É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição. [...] Por mim mesmo, não sou melancólico mas sonhador: não há nada de que me haja ocupado desde sempre como dos pensamentos sobre a morte, e até na época mais licenciosa de minha vida, entre as damas e os jogos, julgavam-me ocupado em digerir comigo mesmo algum ciúme ou a incerteza de uma esperança, enquanto eu pensava em não sei quem que fora surpreendido dias antes por uma febre alta, e em seu fim ao sair de uma festa parecida, com a cabeça cheia de ócio, amor e bons momentos, como eu: e eu mesmo martelava em meus ouvidos:
O presente já terá passado e nunca mais poderemos chamá-lo de volta (Lucrécio).
[...] Como sou homem que continuamente está incubando sues pensamentos e guardando-os dentro de si, a qualquer momento estou preparado, tanto quanto possa estar, e nada de novo me anunciará a chegada inesperada da morte. Devemos estar sempre com as botas calçadas e prontos para partir, tanto quanto de nós dependa, e sobretudo nos precavermos para que então só tenhamos de tratar conosco mesmos. Pois temos bastante trabalho sem outra sobrecarga. Um se queixa, mas que da morte, de que ela lhe interrompe o curso de uma bela vitória; outro, que deve partir antes de ter casado a filha, ou controlado a educação dos filhos; um sente falta da companhia da mulher, outro, do filho, que eram os principais confortos de sua existência. Por ora estou em tal situação, graças a Deus, que posso me ir quanto Lhe aprouver, sem me lamentar de coisa nenhuma.
Desligo-me de tudo: minhas despedidas de cada um estão quase feitas, exceto de mim. Nunca um homem se preparou para deixar o mundo mais pura e plenamente, e desapegou-se mais completamente do que eu tento fazer. As mortes mais mortas são as mais saudáveis.
[...] Que importa quando será nossa morte, já que é inevitável? Àquele que dizia a Sócrates: “Os trinta tiranos te condenaram à morte”, ele respondeu: “E a natureza a eles”. Que tolice nos atormentarmos no momento em que se dá a passagem à isenção de todo o tormento! Assim como nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim nossa morte trará a morte de todas as coisas.
[...] A morte não vos diz respeito nem morto nem vivo. Vivo, porque existis: morto, porque não mais existis. Ademais, ninguém morre antes de sua hora. O tempo que abandonais não era mais vosso que o tempo que se passou antes de vosso nascimento: e tampouco vos toca. Onde quer que vossa vida acabe, ela está toda aí. A utilidade do viver não está na duração: está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu. Atentai para isso enquanto estais aqui. Ter vivido bastante está em vossa vontade, não no número dos anos. [...] Tudo não se mexe como vos mexeis? Há coisa que não envelheça convosco? Mil homens, mil animais e mil outras criaturas morrem neste mesmo instante em que morreis.
Pois nenhuma noite sucedeu ao dia, nenhuma aurora à noite em que não se ouviram, misturadas aos tristes vagidos, as lágrimas acompanhando a morte e os negros funerais (Lucrécio).
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Comentário
Herdeiro da fortuna do avô, um rico comerciante de peixes da região de Bordeaux (na França), Michel se recolhe à vida privada com cerca de 38 anos, o que naquela época (séc. XVI) já era considerado uma idade relativamente avançada. Nos pouco mais de 20 anos que o separavam da morte, Michel dedicou-se inteiramente a contemplação do mundo e do tempo na vizinhança do seu castelo em Montaigne, tendo produzido as cerca de mil páginas dos seus Ensaios, que inauguraram um novo estilo literário.
Conforme discorreu sobre quase tudo, sem ser um especialista em nada, Michel é quase um Sócrates renascido que, na falta de um séquito de jovens questionadores, optou por se recolher a uma vida literária. Não que houvesse se tornado um ermitão, pelo contrário: foi exatamente da sua própria vida e das suas próprias amizades e experiências que retirou a matéria prima dos seus Ensaios.
De certa forma, Michel também foi o primeiro blogueiro da história. E, na medida em que procurou escrever antes para si mesmo, sem jamais imaginar a fama que seus escritos alcançariam, particularmente séculos após sua vida, Michel também nos dá uma lição profunda acerca dos reais motivos pelos quais os verdadeiros filósofos tingem as suas folhas em branco, ou os campos vazios das postagens dos seus blogs... Meditar sobre a morte é a melhor forma, afinal, de encontrar a fonte da vida.
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Crédito da imagem: Google Image Search (foto da estátua de Montaigne em frente da Universidade de Sorbonne, em Paris)
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