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2. Só sei que nada sei, e nem mesmo disto estou certo
Além do estoicismo e do epicurismo, existiu uma terceira escola que por muitos séculos foi ignorada na tradição clássica, até ser recuperada no Renascimento por Michel de Montaigne – que talvez pudesse ser considerado um praticante de todas as três doutrinas.
Trata-se do ceticismo.
Ao contrário do que estamos acostumados a pensar, o ceticismo filosófico não se refere apenas aos ateus, cientistas e acadêmicos materialistas. Apesar de muitos deles se considerarem céticos, a filosofia cética vai para além disso.
A escola filosófica do ceticismo iniciou com Pirro, muitos séculos antes de Cristo. Pirro entendia que era impossível conhecer a real natureza das coisas.
O que é belo? O que é bom? O que é verdadeiro? Pirro refletiu muito sobre essas questões, e após viajar para outros locais, percebeu que aquilo que é certo num lugar ou para uma pessoa, pode ser errado para outra. E vice-versa. Nossos juízos tratam-se, acima de tudo, de construções que os homens fazem sobre o mundo. E todos os homens parecem igualmente possuírem argumentos válidos para acreditar naquilo que pensam.
Na impossibilidade de dizer o que é verdadeiro, Pirro entendia que o filósofo deveria evitar fazer juízos sobre o mundo, e através da suspensão deles (epokhe), se tornar indiferente às questões que não são realmente importantes. Afinal, é inútil discutir com seu amigo quem é a atriz mais bonita de Hollywood ou quem vai ser campeão da Liga dos Campeões.
Indiferente ao que é duvidoso, o homem alcança a ataraxia, não se perturbando com aquilo que ele não pode ter certeza. Como dizer quem é a mais bela se cada um possui seu próprio critério de beleza? Como saber quem será o campeão do futebol se muitas coisas ainda podem acontecer no futuro e mudar nossas previsões?
É importante dizer que os céticos não são relativistas em relação à verdade. Enquanto os dogmáticos acreditam que a verdade é uma só e conhecida, os relativistas defendem que a verdade é múltipla, possuindo muitas interpretações. Os céticos, por sua vez, entendem que tanto os dogmáticos quanto os relativistas estão enganados: a verdade é impossível de ser conhecida, seja ela única, múltipla ou mesmo inexistente.
Quando Sócrates diz “só sei que nada sei”, Pirro complementa “e nem mesmo disto estou certo”.
Os céticos estão sempre recorrendo à dúvida para colocar o que acreditamos em questão. Isto não significa que não podemos acreditar em determinadas coisas. O conselho cético é apenas para não se levar tão a sério.
Preocupamos-nos excessivamente com coisas das quais não temos realmente como saber. Será que vamos encontrar o amor? Conseguirei passar na prova? Será que eu sou belo aos olhos dos outros? Ao desacreditarem num juízo absoluto sobre esses assuntos, os céticos eram despreocupadamente abertos a todo tipo de situação que a vida pudesse oferecer. Aconteça o que acontecer.
Pirro não se preocupava com os erros. Encarava os enganos com a mesma leveza que os acertos.
Os filósofos encontraram no ceticismo uma espécie de terapia. Diante dos problemas da vida, recorriam à epokhe. Quando não sabemos exatamente o que é certo ou errado, ou nos preocupamos com o que pode acontecer no futuro, a suspensão de juízo nos liberta da necessidade de encontrar uma resposta clara para tudo. Há coisas que talvez estejam para além da nossa compreensão ou controle.
A impossibilidade de um conhecimento objetivo sobre qualquer assunto, ou mesmo nossa tentativa vã de prever o futuro, revela que nossas reações são exageradas na maior parte das vezes. A ataraxia dos céticos conduzia a uma vida despreocupada.
Parece estranho pensar que não saber ou não possuir uma resposta exata para algo seja tão tranquilo assim. Afinal, quando somos acometidos pela dúvida, pela incerteza, geralmente nos sentimos angustiados. Quando não sabemos se nosso amor será correspondido, se nossa carreira profissional está crescendo, ou se as pessoas pensam corretamente sobre nós.
Por que os céticos encontraram a ataraxia justamente em algo que parece nos incomodar tanto: a dúvida?
Talvez porque ainda sejamos pouco amigos da dúvida. Diferente de Michel de Montaigne.
Nos seus Ensaios, Montaigne questionava tudo. Colocava em dúvida os costumes de seu país, de seus amigos, até de si mesmo. Sobre qualquer assunto ele ponderava.
Ao se questionar se preferia estar sozinho ou em companhia, ele dizia primeiro que era uma pessoa muito social, e gostava de conversar e estar feliz com seus amigos. Depois lembrava que muitas vezes sentia a necessidade de estar sozinho, pois nem sempre podia ser tão compreendido pelas pessoas como quando estava refletindo intimamente em suas caminhadas. Diria então que ora preferia estar com amigos, ora sozinho. Finalmente, revelaria ainda assim não ter muita certeza sobre isso.
Montaigne duvidava que o homem fosse tão racional e elevado como as pessoas acreditavam. Na realidade, somos imperfeitos, confusos, contraditórios, ambivalentes, por vezes ridículos. E não há nenhum problema nisso.
A vida para Montaigne (assim como para Nietzsche) devia ser vivida através do amor fati: as coisas são como são, e não cabe a nós mudá-las, mas aceitá-las com alegria. Talvez o mundo seja estranho e imperfeito, por vezes injusto e incompreensível, mas de nada adianta nos arrependermos de algo. A vida nos conduziu exatamente ao ponto que estamos hoje, e sem dúvida há inúmeras razões para amá-la assim.
Mas um homem não se deu muito bem com um mundo de dúvidas... Dele falaremos no próximo texto.
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Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.
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Crédito da imagem: Google Image Search (Estátua de Montaigne em La Sorbona, Paris)
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