O mundo para além da linguagem
Dois meses atrás eu saí do Brasil e agora estou vivendo na Europa. Existe algo dessa experiência que está para além de mudar de endereço, visitar paisagens diferentes e ter novas fotos para as redes sociais.
Trata-se do desafio de se comunicar. E com isso não quero dizer pedir comida no restaurante ou conversar sobre o jogo de futebol na rua. Eu me refiro às coisas misteriosas da vida – a existência, o amor, nossos desejos, a vida em sociedade – e que sempre fazem nos desentender nas discussões filosóficas.
Nossos desentendimentos advêm da própria forma como a linguagem se estrutura, e experiências com outras culturas e idiomas podem esclarecer isso.
Vilém Flusser explica, por exemplo, que é simples traduzir a palavra mesa para o inglês table porque ambas as palavras e referem ao mesmo objeto. Tanto na cultura portuguesa quanto na cultura inglesa existe o mesmo objeto real mesa, esta que usamos para trabalhar ou se alimentar.
No entanto, é impossível traduzir a palavra mesa para a língua esquimó simplesmente porque na cultura dos esquimós esse objeto é inexistente. Seu vocabulário é ausente de qualquer referência à mesa, já que nunca a utilizaram.
Para explicar a um esquimó ao que estamos nos referindo, teríamos que usar a palavra em nosso idioma e depois explicar o seu funcionamento no idioma deles. Ainda assim, permanece a impossibilidade de tradução porque em sua cultura tal conceito é inexistente.
Quando estamos nos expressando sempre na mesma língua, nós estamos utilizando sempre os mesmos conceitos. Isto é, as ideias e objetos que fazem parte do nosso modo de ver o mundo, e consequentemente pensá-lo e reagir a ele.
Basta que nos desloquemos para outra realidade ou tentemos nos expressar num idioma diferente do nosso para percebermos que a maioria das coisas que sentimos ou pensamos em nossa língua original não possuem tradução.
Dizer eu te amo em português ou te quiero em espanhol são ensinados como sinônimos, mas ocupam lugares diferentes em suas respectivas línguas. Pois dizer que se ama alguém significa simplesmente que há um sentimento afetuoso por ela, sem nenhuma consequência declarada a princípio, enquanto dizer que a quer é empregar um verbo que implica necessariamente num desejo de algo, seja qual for o desejo.
Ou como pensar o inglês que não há diferenças entre ser e estar no verbo to be, senão pelo contexto? Se você diz a uma moça you are beautiful, será que ela entenderá que você dizendo que ela é uma moça bonita na vida ou que ela está particularmente bonita vestida como hoje?
Cada idioma cria os seus próprios conceitos, nem sempre partilhados com outros idiomas. Mais do que uma simples ferramenta, a linguagem que aprendemos a usar também nos ensina como pensar. É a partir dela que pensamos, e não o contrário. Fomos colonizados pela língua que nos ensinaram e estamos predestinados a chegar às respostas que nossa língua nos permite chegar.
Por tal motivo os linguistas dizem que aprender um novo idioma é também aprender a pensar de uma nova forma. Pois as estruturas da linguagem que adquirimos, bem como as expressões que utilizamos, modulam nossa forma de ver e – principalmente – reagir ao mundo.
Que um brasileiro ao xingar diga filho da puta, um norte-americano diga motherfucker (aquele que fode sua mãe) e um espanhol diga me cago en tu madre (defeco em tua mãe), revela que a todos ocidentais é ofensivo atentar contra a mãe. Mas não pelas mesmas razões. Se no Brasil o problema é ter sido parido por uma mulher que troca sexo por dinheiro, nos Estados Unidos o problema é o incesto, na Espanha... bem, a coisa na Espanha fica escatológica.
Ainda que todas essas expressões queiram igualmente ofender, seria inocente imaginarmos que são traduzíveis umas pela outra, já que se referem a conceitos – as situações compreendidas como vergonhosas – bem diferentes.
Esse tipo de experiência linguística/antropológica que temos ao aprender um novo idioma ou vivermos numa nova cultura é o que mais se aproxima de um legítimo ato filosófico. Pois é a partir do estranhamento do diferente que podemos questionar aquilo que temos por naturalizado em nós – e o que temos de mais naturalizado do que nossas próprias palavras e significados?
O mundo é algo muito absurdo, e por isso mesmo misterioso. As palavras tentam organizar este mundo em conceitos, mas ao mesmo tempo em que nos permite comunicá-lo também nos confunde, já que uma palavra nunca será a coisa.
A impossibilidade de tradução da realidade nos mostra que a linguagem termina por criar a nossa própria realidade, e disso não podemos escapar. Mas é a experiência de estranhamento disso que nos mostra um mundo para além de nossas ideias sobre ele.
Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.
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Crédito da imagem: Jason Leung/Unsplash
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