Em diversas religiões é comum a existência de seres espirituais de diferentes categorias. Eles podem variar em termos de desenvolvimento espiritual, moral, poderes e entendimento.
No budismo existem muitos reinos espirituais ou planos de existência que fazem parte de sua cosmologia. Nos estados de privação temos, por exemplo, os asuras (demônios), espíritos famintos e os animais. Podemos renascer como demônios como resultado de karma ruim. Há também diferentes categorias de reinos de devas. Quando temos um bom karma podemos renascer como devas ou como humanos.
É verdade que o reino humano (manussa loka) encontra-se abaixo de muitos dos reinos de devas na hierarquia. Porém, ao atingir os estados de jhanas, um ser humano torna-se capaz de atingir os reinos dos devas.
Na cosmologia do budismo, nascer como ser humano é considerado o melhor tipo de nascimento, pois possui um equilíbrio único de prazer e dor, que é ideal para nos libertar dos ciclos de nascimentos e mortes.
Os devas experimentam muito mais prazer que dor e se encontram em reinos mais elevados do que os humanos. Em compensação, por se encontrarem em estados de tanta alegria, eles não sentem a urgência de se libertar e portanto se torna difícil para eles atingir o nirvana. Por sua vez, os demônios experimentam muito mais dores do que prazer, o que se torna um estado que dificulta enormemente o desenvolvimento espiritual.
Nós humanos normalmente buscamos o prazer e fugimos da dor, o que acaba nos gerando um problema similar ao enfrentado pelos devas: nós ficamos tão distraídos com os prazeres e alegrias que nos esquecemos de trilhar o Caminho Nobre, ou não vemos tanta urgência para isso.
As religiões indianas costumam compensar esse problema sugerindo uma vida de mais simplicidade, meditação, leitura das escrituras ou, em alguns casos, a prática de certas penitências. As austeridades não devem ser excessivas, ou cairíamos num estado similar aos demônios: muita dor impede o desenvolvimento espiritual. Devemos seguir, como Buda sugeriu, o Caminho do Meio, que o nascimento humano já proporciona naturalmente. Basta então adotar as práticas corretas.
Disso tudo concluí-se uma coisa: apesar de na hierarquia os devas (similares aos anjos do cristianismo) se encontrarem num estado superior, por possuírem bom karma, nascer como ser humano é melhor do que ser deva. Através dos estados refinados da mente (jhanas) podemos “ser como devas”. Ao atingir os quatro primeiros jhanas materiais alcançamos um estado mental equivalente ao dos devas. Porém, ao atingir os jhanas imateriais atingimos reinos acima daqueles que os devas podem alcançar, até que conquistamos a iluminação, que é, espiritualmente falando, praticamente inacessível a eles. Por isso é comum que devas escutem os discursos de humanos que já conquistaram alguns jhanas imateriais e as primeiras etapas da Iluminação. Ajahn Mun costumava discursar para devas mesmo antes de se iluminar, quando já estava avançado no entendimento.
Pode-se dizer que existe um ensinamento semelhante no cristianismo. Nós costumamos olhar os anjos como se eles estivessem numa categoria muito acima daquela dos humanos, mas não é bem assim.
O Corão nos conta que, no princípio, Deus criou Adão num estágio de desenvolvimento espiritual até mesmo acima dos anjos. Por isso Deus ordenou que os anjos se ajoelhassem diante dele. Porém, Lúcifer teria se recusado e por isso ele foi expulso do paraíso, de acordo com o islamismo.
É dito no cristianismo que os anjos se encontram constantemente na presença de Deus. Por isso, eles não têm dúvidas de sua existência. São Tomás de Aquino nos conta que eles não possuem corpos materiais, mas espirituais. Sendo assim, são capazes de apenas dois pecados principais: orgulho e inveja, tidos como os piores, pois são pecados do espírito e não da carne.
Os humanos, por outro lado, são capazes de realizar os sete pecados capitais. Eles também não são capazes de ver Deus. Num primeiro olhar, consideraríamos isso como uma desvantagem, certo?
Porém, não é bem assim. De forma similar ao budismo, é dito que os humanos se encontram num equilíbrio de dor e prazer ideal para adquirirmos humildade. É verdade que Adão e Eva caíram, porque pecaram. Eles queriam ser como Deuses, assim como Lúcifer. Porém, a “punição” de Lúcifer e de Adão foram diferentes. Na verdade, essa punição tem mais relação com uma condição que nos ensinará a humildade mais facilmente.
Nós humanos nos tornamos mortais. Porque morremos podemos valorizar mais a vida, considerando-a preciosa. Isso irá apressar nossa urgência de nos desenvolvermos espiritualmente. A mesma urgência que os devas não possuem, já que eles vivem muito mais que nós.
Para completar, porque os seres humanos podem cair em mais pecados que os anjos, eles poderão aprender a humildade com rapidez. Irão reconhecer que são fracos. Da mesma forma que no budismo é dito que, porque o ser humano experimenta certo grau de dor, ele irá buscar atingir a iluminação com mais urgência, sem tantas distrações.
E, finalmente, uma questão chave: Deus não se mostra claramente para os seres humanos. É dito que Deus mantém uma distância epistêmica de nós, não deixando sua existência totalmente clara, pelo mesmo motivo que ele respeita nossa liberdade: é superior escolher o bem quando é possível optar pelo bem ou pelo mal do que se não tivéssemos escolha nenhuma. De forma análoga, é superior acreditar em Deus quando ele não se mostra claramente do que caso ele deixasse bem claro que existe.
Os anjos caminham sempre na presença de Deus e não têm dúvidas de sua existência. É muito mais difícil caírem em pecado, por não terem corpos. Sendo assim, a missão deles é diferente. Eles podem, por exemplo, nos guiar, nos ajudar e nos inspirar.
Não é que os anjos sejam inferiores aos humanos no cristianismo. Em muitos aspectos, os anjos são superiores aos humanos, da mesma forma que os devas são superiores: por não terem corpos, possuem muitos poderes especiais que nós humanos não possuímos. E por terem um nível mais elevado de entendimento espiritual (afinal, os anjos sempre estão com Deus e os devas se mantém sempre num estado equivalente aos jhanas materiais), eles são capazes de saber coisas que desconhecemos.
No entanto, a fraqueza humana pode se tornar uma força que nos torna capazes de ir mais longe. No catolicismo é dito com muita clareza que quando um ser humano se torna um santo, o seu desenvolvimento espiritual se torna tão elevado quanto o de um anjo. Da mesma forma que uma pessoa ao atingir jhanas materiais torna-se tão elevado quanto um deva.
Existe essa passagem misteriosa na Bíblia:
“Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e não perante os santos? Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas? Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a essa vida?” (1Cor 6:1–3)
Existem diferentes interpretações para essa passagem. Alguns dizem que os humanos que se tornarem santos serão aqueles a julgar os anjos caídos no Juízo Final.
E não podemos nos esquecer que no catolicismo há Maria, mãe de Deus. Ela só está abaixo da Santíssima Trindade. Encontra-se até mesmo acima dos anjos. O que nos sugere que um ser humano possui o potencial de atingir um estágio até mesmo superior ao dos anjos, como é o exemplo de Adão no islamismo, quando estava no Jardim do Éden, e de Maria no catolicismo.
Vejo isso como um teste de Deus para ambos: para anjos e para humanos. Os humanos devem desenvolver humildade lembrando que Deus e os anjos se encontram acima deles na hierarquia. E os anjos devem desenvolver humildade lembrando que Deus está acima deles e os seres humanos possuem um potencial de elevarem-se a alturas que somente Deus sabe, de acordo com o nível de santidade de cada um.
Porém, a isso o catolicismo não coloca nenhuma dúvida: um santo é equivalente a um anjo. Não em natureza, mas em nível espiritual e de entendimento. Por isso eles podem adquirir até o poder de fazer milagres, originalmente apenas pertencente a anjos. E por isso quem atinge jhanas materiais no budismo pode adquirir alguns poderes psíquicos, como os devas.
Que tudo isso nos sirva de reflexão e para recordarmos: nascer como humano é realmente uma bênção extraordinária. Podemos chegar a alturas que nem imaginamos, mas primeiramente é preciso tornar-se digno disso, baixando a cabeça, com humildade, prestando homenagem a todos que são mais sábios que nós e aprendendo com eles.
Wanju Duli é escritora – Contato: facebook.com/WanjuDuIi
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Crédito da imagem: wikimedia (Buddha preaching Abhidhamma in Tavatimsa)
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