Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).
Noutro conto anterior desta série eu falei, de forma um tanto breve, sobre o meu encontro com o meu Eu [1], e agora chegou o momento de relatar com maiores detalhes este e os outros dois encontros que eu tive com tal entidade nesta vida, ao menos até o dia de hoje...
I
Na primeira vez que o vi, estava em realidade “viajando” dentro de minha própria mente, e o meu primeiro impulso foi o de considerá-lo alguma espécie de guia espiritual que apareceu para me guiar pelo percurso.
No entanto, bastou eu me aproximar mais (o “cenário mental” era o de uma área plana e gramada, se é que isso tem alguma importância) para tomar um dos maiores sustos da minha vida e perceber que em realidade estava, de uma forma um tanto estranha, encarando a mim mesmo e, ao mesmo tempo, encarando tudo o que eu sou, muito, muito além do que o meu ego acredita ser nesta vida – gota de inúmeras outras.
O que a distância parecia uma pessoa, de mais perto lembrava mais uma carcaça humana com uma luz tão forte em seu interior, que a irradiava para fora, principalmente pelas cavidades dos olhos e da boca. A imagem moderna mais próxima que já encontrei disto que presenciei em minha mente foi vista numa série de desenho animado baseada na mitologia oriental em geral: Avatar, A Lenda de Aang (talvez já tenham visto também, e vão saber de qual tipo de imagem estou falando) [2].
Conforme descrevi no outro conto, eu mal consegui me aproximar de Eu, e mesmo os poucos momentos em que o encarei me trouxeram, na época, o maior medo que já havia me lembrado de haver sentido. Não se tratava de um medo racional ou de um medo de ser ferido ou morto fisicamente, mas um medo que vinha do fundo da alma: o medo de saber de tudo o que fui e de tudo o que fiz, de bom ou de mal, em inúmeras vidas, e talvez ir até muito além disso... Enfim, é o tipo de coisa que as palavras, essas cascas de sentimento, não conseguem transmitir. Um PUTA MEDO talvez fosse a tradução mais correta.
Essa experiência que ocorreu durante a minha primeira regressão de memória foi tão forte, embora brevíssima, que até hoje lembro mais dela do que do restante da regressão (apesar de o restante ter sido um tanto impactante, conforme falo no outro conto). Fato é que, apesar de eu ter ficado petrificado de medo ante Eu, a mesma força que me mantinha paralisado carregava uma semente de curiosidade, uma vontade oculta de, quem sabe numa próxima vez, conseguir me aproximar mais, conseguir ter a coragem genuína de vê-lo face a face. O que sei é que não seria fácil, e que dependia somente de mim mesmo conseguir agir de outra forma, se me fosse dada outra oportunidade para tal encontro divino.
II
É então que se passam alguns anos e eu o encontro novamente num sonho. Não me lembro exatamente do ano, mas na verdade me lembro dele como se fosse ontem... Eu só sei que ele ocorreu em algum momento entre os anos 1999 e 2003 porque anotei sobre a regressão em 1999, e até 2003 dormia no mesmo apartamento onde tive o sonho, na zona sul do Rio de Janeiro.
No sonho, eu me aventurava numa torre escura, medieval, como alguma espécie de espião, ou simplesmente um curioso. Como todo sonho, a forma tem bem menos importância que a simbologia, e a simbologia tem ainda menos importância do que os sentimentos vivenciados. Eu tenho quase certeza que teria me esquecido deste sonho, como me esqueço de quase todos, se não fosse pelo desfecho dele...
Voltando ao sonho: Eu subia pelos degraus antigos e espiralados desta torre com a sensação avassaladora de que estava me aventurando em terreno proibido, e que os segredos que ela encerrava estavam ocultos por um bom motivo – mas mesmo assim eu, como grande curioso, me arriscava na busca por os desvelar.
Em dado momento cheguei onde aparentemente queria chegar, uma sala relativamente grande cheia de estantes de madeira velha com grandes livros e tomos empoeirados. Pelo fato de ter lido muitos livros de J.R.R. Tolkien e de haver jogado Role Playing Games, provavelmente as imagens mentais foram influenciadas pela chamada Fantasia Medieval, mas fato é que, em essência, eu estava ali, em terreno proibido, tendo acesso a segredos e informações que não eram acessíveis a qualquer um. Era um misto de excitação e medo de ser pego.
Medo? Para que falar nele de novo, não é mesmo? Eis que, quando estava lendo as primeiras linhas do primeiro tomo que retirei da estante mais próxima, surge um velho num manto negro na entrada da sala, de barbas e cabelos grandes e muito brancos, e um olhar raivoso.
Por um breve momento, ainda antes que ele esboçasse qualquer reação, pude reconhecê-lo: era Eu, novamente Eu, e todo aquele “aparato simbólico” do parágrafo anterior era tão somente minha imaginação tentando dar forma humana ao que está além de toda forma...
“SAIA IMEDIATAMENTE DAQUI”, foi o que a entidade gritou (sem usar a boca, como é comum nos sonhos). E, no momento seguinte eu estava correndo, desesperadamente, até que quase me choquei com a porta da cozinha!
Sim, eu havia não somente acordado e saltado da cama, como saído do meu quarto e atravessado todo o corredor do apartamento até quase me esborrachar na porta fechada da cozinha. E, sim, eu já não estava mais sonhando... Nunca tive outro sonho tão intenso em toda esta vida.
III
Finalmente, o último encontro que tive com Eu foi há poucos anos atrás, num Centro Espírita da cidade onde moro atualmente, Campo Grande.
Neste Centro Espírita, aos finais de semana há um encontro chamado Oficina dos Sentimentos, onde as práticas lembram muito mais uma terapia de grupo, com alguma meditação transcendental, do que os rituais espíritas mais conhecidos. Pois bem, e foi exatamente numa dessas meditações, cujo tema eu já nem me lembro mais qual era [3], que encontrei Eu novamente.
Era um belo cenário natural, que eu normalmente “evoco” em minha mente durante os rituais espiritualistas em geral, com montes e planícies verdejantes, uma cachoeira a distância e um pequeno córrego a atravessar a paisagem. Eu estava no topo de um monte e percebi que Eu estava no outro, distante o suficiente para que eu o pudesse observar, desta vez sem nenhum grande medo. Eu o reconheci prontamente, e aquela primeira curiosidade, aquela vontade genuína de caminhar em sua direção, floresceu novamente em meu coração.
A entidade sorriu, e apontou para o espaço gramado que separava o seu monte do meu. Ali havia um caminho, sinuoso, que parecia simbolizar que ainda precisaria dar muitos passos para que pudesse, finalmente, o ver face a face, sem medo, sem dúvidas ou certezas.
E todo o medo que eu senti em nosso primeiro encontro agora aparecia na mesma intensidade, só que em outra forma, em outra sensação – uma sensação de entusiasmo, entusiasmo, entusiasmo! Valia a pena viver, e seguir naquela via sinuosa, contanto que soubesse que, a cada passo, o momento de nosso encontro se aproximava. Um passo de cada vez.
Há muitas informações desencontradas acerca do que é exatamente este Eu. Dentre outros problemas em descrevê-lo objetivamente, há o fato de que o Eu é também eu mesmo, de modo que existe o “meu eu” e o “seu eu” e o “eu de cada um”. Mas eu não usei maiúsculas sem uma boa razão: ocorre que o “eu de cada um” é também uma parte, um reflexo no espelho, da Luz do Sol, do Eu Maior, do Ser que preenche e dá vida a todos os seres do Cosmos, e do próprio Cosmos.
E a sensação que se sente ante este encontro com a Vida, e com a ânsia da Vida por si mesma, é algo que foge tanto da linguagem que qualquer tentativa de captura-la seria tão frutífera como tentar capturar um raio solar com as mãos...
Um PUTA ENTUSIASMO talvez fosse a tradução mais correta.
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Entusiasmo (do grego en + theos, literalmente “em Deus”) originalmente significava inspiração ou possessão por uma entidade divina ou pela presença de Deus. Atualmente, pode ser entendido como um estado de grande arrebatamento e alegria.
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Tu que és eu mesmo, além de tudo meu;
Sem natureza, inominado, ateu;
Que quando o mais se esfuma, ficas no crisol;
Tu que és o segredo e o coração do Sol;
Tu que és a escondida fonte do universo;
Tu solitário, real fogo no bastão imerso;
Sempre abrasando; tu que és a só semente;
De liberdade, vida, amor e luz eternamente;
Tu, além da visão e da palavra;
Tu eu invoco; e assim meu fogo lavra!
Tu eu invoco, minha vida, meu farol,
Tu que és o segredo e o coração do Sol
E aquele arcano dos arcanos santo
Do qual eu sou veículo e sou manto
Demonstra teu terrível, doce brilho:
Aparece, como é lei, neste teu filho!
O Ofício do Hino, Aleister Crowley (trad. Marcelo Ramos Motta)
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Senhor, tu és meu amante, meu anseio, minha fonte eterna, meu Sol, e eu sou teu reflexo. O dia de meu despertar espiritual foi aquele em que eu vi, e soube que eu vi, todas as coisas em Deus, e Deus em todas as coisas.
Mechthild von Magdeburg, mística católica alemã
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[1] Ver Abrindo portas na mente (o encontro é descrito nos trechos finais da primeira parte).
[2] A imagem que ilustra este conto foi retirada desta série animada.
[3] Cada encontro tinha um tema geralmente atrelado a um sentimento. Poderíamos estar meditando sobre “a raiva” ou “o amor”, coisas assim.
Crédito da imagem: Avatar, A Lenda de Aang (Divulgação)
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