O problema do niilismo: o mundo da razão
Desde que o Ocidente começou a questionar os valores e concepções do mundo antigo e tradicional, seja através da ciência, da literatura ou da filosofia, alguns tem anunciado o niilismo como a destruição da moral e a ruína do homem. Depressão, indiferença, suicídio. Mas o que representa verdadeiramente o niilismo?
Para compreender o niilismo, antes precisamos nos remeter ao contexto de sua origem, percebendo como ele se relaciona com dois movimentos filosóficos modernos: o racionalismo e o romantismo. Como o assunto é extenso, dividirei o ensaio em duas partes, cada uma destinada a situar uma visão filosófica.
Sabemos que o ser humano é o único animal que necessita não apenas de abrigo e alimento para viver, como também de sentido. Sentir a sensação de propósito para nossas atividades cotidianas, conexão com algum contexto maior e que nossa existência não seja indiferente ao mundo. Até alguns séculos atrás, as tradições culturais da comunidade em que o homem se inseria compunham narrativas que forneciam o sentido que podíamos ansiar.
O mundo antigo era um mundo regido por tradições. Toda sociedade possui seus costumes, crenças, relações, que, mais do que particularidades culturais, são as ancoragens subjetivas dos membros daquela comunidade. Sabemos quem nós somos – da onde eu vim, para onde eu vou, o que eu devo fazer – a partir das crenças e experiências que compartilhamos com os outros.
As tradições locais e culturais constituem o laço simbólico ao qual nos filiamos para constituir a nossa existência, definindo nossa raça, nossa classe social, nossas expectativas quanto ao mundo. Ser camponês ou nobre representavam perspectivas existenciais muito distintas, assim como ser grego ou chinês, homem ou mulher. Diferentes filiações implicam em diferentes obrigações, ritos e responsabilidades em cada sociedade.
A religião tinha um papel fundamental no mundo antigo. Através dos códigos morais, a religião estabelecia quais comportamentos deviam ser encorajados ou punidos, explicavam a razão da existência dos seres humanos no mundo, e oferecia às pessoas – geralmente através de uma explicação metafísica – um sentido para viverem e realizarem algo durante a vida.
Tomemos a Idade Média como exemplo. Ser homem ou mulher representavam diferentes obrigações sociais. Assim como se nobre ou camponês. A religião cristã afirmava que a nobreza era uma missão divina, de modo que o nobre deveria defender e expandir os valores cristãos, uma tarefa pela qual era valoroso inclusive morrer. Já um camponês deveria saber que Jesus amava os humildes, e que sua vida de dificuldades seria recompensada após a morte, caso obedecesse a moral cristã. A religião oferecia um lugar e um sentido à vida, mantendo também a sociedade em funcionamento na medida do possível.
Para nós ocidentais, talvez seja mais fácil imaginar a sociedade medieval por conta da proximidade cultural, mas toda sociedade tradicional – chinesa, indígena, africana, romana etc. – funcionou do mesmo modo. Através de mitos, lendas e narrativas, símbolos sociais funcionaram como norteadores de sentido para cada ser humano que viveu neste mundo.
Cada ser humano acreditou fielmente na tradição de sua comunidade, e morreu acreditando nela. Muitas vezes, morreu em nome dela, defendendo-a até que uma espada cruzasse sua garganta. As crenças não apenas nos dão um sentido para viver, mas um sentido para morrer. O homem que vive com sentido alcança também uma “boa morte”, seja ao morrer em nome de sua pátria, comunidade ou mesmo de sua filosofia.
As crenças das sociedades tradicionais também ofereciam algum reconforto nas dificuldades. Quando se perdia um ente querido ou a terra era assolada por uma alguma peste, os homens encontravam nas narrativas metafísicas um sentido, e a esperança de que os deuses um dia recompensassem os homens que permanecessem fortes.
Porém, tudo isso começou a mudar quando surgiu a ciência moderna no Ocidente. Transformações culturais ocorridas no fim da Idade Média fizeram surgir um particular modo de pensar, conhecido como racionalismo.
O racionalismo não é exclusividade da modernidade ocidental. Na Grécia Antiga já existiam filósofos que defendiam uma visão racional de mundo. Também na China Antiga e em outras civilizações existiram pensadores igualmente racionais, se podemos dizer assim. Mas, em nenhuma dessas sociedades, este modo de pensar foi capaz de suplantar o modelo tradicional. Existiram apenas enquanto pensadores marginais. Somente na sociedade ocidental que o racionalismo difundiu-se ao ponto de transformar a própria forma como existimos em sociedade.
O racionalismo – também conhecido por movimento iluminista, embora não seja indicado usar este termo por nos dar a falsa noção de que a Idade Média foi um período de obscurantismo, sem nenhum valor filosófico – representou um período em que ideias centradas na razão começaram a se difundir. A ciência questionava os conceitos e valores difundidos pela Igreja e pela fé. O interesse científico era a realidade. Entender como as coisas funcionavam: os astros, o corpo humano, o pensamento.
A ciência se difere da religião na medida em que enquanto a primeira se preocupa com os fatos, a partir de uma ideia de realismo, a religião é uma ferramenta de valor. A ciência busca entender como o mundo funciona, enquanto a religião tenta explicar o porquê de existir um mundo, e qual valor podemos atribuir aos acontecimentos dele.
O método científico não é mais do que um método de investigação da realidade. A ciência pode dizer como os planetas giram ao redor do Sol, qual solo é mais produtivo para determinado plantio ou que forma de energia é mais rentável. Mas não pode dizer por que os planetas giram, por que devemos plantar um alimento e não outro, e qual o objetivo em se acumular mais energia.
Certamente poderíamos responder, através da ciência, que o movimento astronômico tornou a vida humana possível, que precisamos do alimento para viver, e que energia é necessária para as atividades humanas. Mas isso é mera questão técnica. Pragmática. Nada disso diz respeito ao sentido da existência, apenas às necessidades da manutenção da existência em si. A religião pode fornecer um sentido para a existência, e por isso religião é mais do que uma mera estrutura institucional. A própria etimologia da palavra (religare) está relacionada com “religação”, a conexão do homem com um propósito maior.
A emergência da ciência teve um efeito corrosivo ao modo de vida tradicional. A ciência, interessada pela verdade dos fenômenos, entrou em choque com o modelo tradicional de pensamento. O método científico, apoiado no ceticismo, questionou as verdades estabelecidas pela fé e a autoridade. Os valores e sentidos atribuídos pela religião e o pensamento tradicional.
Num mundo marcado pela ordem tradicional, em que ser homem ou mulher, nobre ou camponês, cristão ou judeu, representavam perspectivas existenciais muito bem definidas do seu nascimento à morte, o racionalismo começou a difundir valores como liberdade individual e tolerância à diferença. O liberalismo entendia o indivíduo como livre e responsável pelo seu destino, destituindo assim os laços simbólicos e tradicionais que o situavam enquanto raça, classe ou mesmo gênero.
O mundo racional dependia também da liberdade de expressão e da diversidade de pensamento. As ideias deveriam se mostrar verdadeiras através da demonstração científica e do debate, não pela autoridade. Isto, por exemplo, destitui o lugar de um velho pajé ou xamã de uma aldeia indígena. Numa sociedade racionalista, o saber do pajé não possui valor por ele ser o pajé, mas apenas se este saber puder ser verificável num método confiável.
A ciência questionava os valores tradicionais, concebidos como verdadeiros, para adotar uma verdade meramente pragmática, sempre parcial. O único critério que importa à ciência é a capacidade de um fenômeno ser explicado, previsto e, portanto, controlável.
O racionalismo deu assim início à era da técnica, em que os problemas humanos são vistos como questões operacionais. Cabe à ciência entendê-los adequadamente para encontrar sua solução. Doenças podem ser curadas se a medicina descobrir qual a sua causa. A fome pode ser reduzida se empregarmos sistemas mais eficazes de agricultura e pecuária. A miséria pode acabar se a política adotar sistemas econômicos eficientes em distribuir a riqueza. Distâncias podem ser encurtadas com a melhoria dos meios de transportes e comunicação.
Vivemos tempos de uma grande corrida tecno-lógica. Na crença de que o desenvolvimento técnico-científico poderá resolver nossos problemas, estamos sempre atrás de novos computadores, carros, ferramentas, aplicativos que facilitem nossas vidas. A corrida, porém, parece interminável. A cada ano surgem novidades sem precedentes.
O mundo antigo era um mundo de estabilidade. As pessoas nasciam, cresciam e morriam num mundo muito parecido. Ideias, costumes e ferramentas permaneciam praticamente intactos no transcorrer desse tempo. Já o mundo moderno assumiu um ritmo de transformações cada vez mais crescente. Não sabemos se nos próximos meses surgirá uma nova tecnologia que revolucionará novamente nosso modo de viver. Diante de tamanha imprevisibilidade, não há espaço para a transmissão de qualquer tradição. O homem deve estar sempre se adaptando ao novo, seja em seu trabalho, nas suas relações, ou em suas crenças.
Se os primeiros racionalistas tinham a ilusão de que a ciência iria um dia desvelar o funcionamento do Universo, prescindindo completamente da religião, alcançando um saber absoluto da realidade, essa posição hoje parece infundada. Como método, a ciência não alcança verdades definitivas, mas entendimentos parciais da realidade. A possibilidade de descobrir algo novo está sempre aí, não apenas porque a realidade pode ser mais profunda do que julgamos previamente, mas a própria ciência é sempre limitada pelo seu meio de investigação. Teorias científicas não simplesmente descrevem a realidade, como também as criam na medida em que selecionam evidências a favor, descartam índices contrários e dão privilégio a determinado modo de conceber o mundo. Não há uma teoria absoluta, mas diferentes teorias podem coexistir por tratarem do mesmo fenômeno por perspectivas diferentes, sem que um precise ser reduzido ao outro. O mundo em si permanece como absurdo e muito mais incompreensível do que nossas técnicas antropocêntricas poderiam alcançar.
A ciência também pode se tornar um pensamento religioso quando se acredita que ela é mais do que apenas um método para entender o funcionamento da realidade. Chamamos de cientificismo a crença de que a ciência, assim como a religião, pode dotar de sentido e valor a realidade que investiga. Um cientificista é alguém que acredita que a ciência – ou seu determinado modo de conceber a ciência – é uma visão de mundo onipotente para explicar todos os fenômenos, mesmo àqueles que extrapolam seu escopo, e qualquer outra forma de pensamento seja irrelevante. A mais alta demonstração da arrogância racionalista.
Porém, se levarmos a ciência e o pensamento racional a sério, não são às certezas que eles podem nos levar. A ciência questiona aquilo que pensamos ser verdadeiro – demonstrando que crenças religiosas sobre o céu e o inferno transmitidas por séculos parecem pouco prováveis, ou que classe social, casta ou gênero não definem quem eu realmente sou, pois não há qualquer destino divino para o que eu posso ser. Em resumo, a ciência libertou o homem dos grilhões do pensamento tradicional. No entanto, ela descartou algo junto com isso.
Mitos e lendas não são formas primitivas de explicar o mundo e transmitir conhecimento. As narrativas tradicionais compunham os alicerces simbólicos de uma comunidade. Através delas, os indivíduos identificavam-se com seus deuses, heróis ou antepassados, encontrando sentido para suas existências, dando continuidade a uma tradição maior do que eles mesmos.
O mundo da razão desprivilegiou as narrativas em favor das explicações lógico-matemáticas, fisicalistas e bioquímicas sobre o homem, esvaziando a vida humana de um sentido simbólico. Se o mundo moderno se tornou um lugar mais seguro e confortável para viver, amparado pelo avanço tecnológico crescente, parece ter se tornando também um mundo menos empolgante. Os altos níveis de depressão e suicídio dos países desenvolvidos indicam isso.
O niilismo, o sentimento de ausência de sentido para a vida, surgiu quando a razão moderna dissolveu a tradição como princípio norteador para a vida humana. A ciência destruiu as certezas do mundo antigo, mas foi incapaz de afirmar qualquer novo valor, já que isso não é de seu escopo.
A relação do homem moderno como o mundo foi precisamente descrita pelo personagem Morty num episódio da série Rick e Morty: “ninguém existe por um motivo, ninguém pertence a algum lugar, todos vamos morrer”.
Se a frase lhe parece desanimadora, essa foi exatamente a crítica dos conservadores ao mundo moderno. Tristeza, banalidade e indiferença. Os conservadores defendem que precisamos retomar as antigas tradições, inibir a razão, além de incentivar experiências simbólicas de transcendência através da fé.
Porém, o relógio da História não anda para trás. Não há retorno para as mudanças operadas pela ciência. Não por acaso, geralmente tratamos os conservadores como fundamentalistas loucos, que devem ser ridicularizados ou temidos. Ao mundo moderno, parece que há algo mesmo de loucura em se ter uma grande certeza sobre alguma coisa.
Coube ao movimento romântico dar uma resposta muito mais interessante ao problema do niilismo do que puderam fazer o conservadorismo e o racionalismo. Trataremos disso no próximo texto.
Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.
***
Crédito das imagens: [topo] Google Image Search; [ao longo] Rick and Morty
Marcadores: Colunista: Igor Teo, colunistas, existência, filosofia, niilismo, razão, religião, Rick & Morty