Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.
[Raph] O capitalismo é o sistema econômico com hegemonia mundial. A despeito dos seus defensores e críticos, fato é que ele não irá embora tão cedo. Entretanto, já seria de grande ajuda se as multinacionais seguissem as regulamentações do próprio mercado. O monopólio, por exemplo, deveria ser algo a ser combatido, evitado ao máximo, e nas últimas décadas o que vem ocorrendo é exatamente o oposto: no Brasil, dez grandes companhias (entre elas Unilever, Nestlé e Coca-Cola) abocanham até 70% das compras de uma família nos supermercados, o que sobra é disputado por cerca de 500 empresas menores, regionais. Tal cenário parece ser muito mais benéfico para as multinacionais do que para a população em geral.
O grande mal do capitalismo moderno, no entanto, me parece ser o consumismo desenfreado. Se todos os africanos e indianos tivessem os mesmos padrões de consumo de um cidadão norte-americano, seria necessário mais de um planeta Terra para dar conta dos recursos naturais necessários para a produção de bens. Mesmo a China, teoricamente um sistema comunista, abraçou tal sistema com grande voracidade. Mas já sabemos que a conta não fecha, e a agenda da sustentabilidade se torna cada vez mais urgente. Diante disso, é viável tornar o capitalismo sustentável?
[Carvalho] Os grandes sistemas econômicos não possuem um conjunto exato e monolítico de regras. Semelhantemente ao que ocorre com as espécies biológicas, eles variam no tempo e no espaço, adaptando-se às circunstâncias – e também aos hábitos políticos, econômicos, sociais e culturais de cada época e de cada povo. O feudalismo europeu do século V, por exemplo, era muito diferente daquele que perdurou na Rússia até o século XX. Da mesma forma, o socialismo soviético não era idêntico ao chinês, nem ao cubano, e muito menos ao Venezuelano. E se mesmo tais sistemas, um sustentado por valores fortemente hierarquizantes, como a noção de direito divino dos reis, e o outro pela persistente obsessão de impor a igualdade material a qualquer custo, adaptaram-se às condições circundantes, porque não se adaptaria o capitalismo, fundado em valores que enfatizam a liberdade individual?
Portanto, sim, é possível transformar o capitalismo e torná-lo mais sustentável. Na verdade, se mais nações capitalistas realmente adotassem políticas econômicas liberais – em vez de políticas desenvolvimentistas, keynesianas, etc. – não haveria muito que se falar em tornar o capitalismo sustentável, pois, em tais condições, ele simplesmente tende a tornar-se sustentável, por meio de processos adaptativos mais ou menos espontâneos resultantes, não de intervenções e regulações estatais, mas dos comportamentos dos próprios indivíduos. E não digo isso com base em uma crença quase dogmática nos conceitos abstratos de “livre mercado” ou “mão invisível”, que os liberais e libertários frequentemente são acusados de possuir. Apenas me respaldo em evidências razoavelmente convincentes de que o liberalismo costuma ser mesmo mais eficiente e funcional que outras filosofias políticas quando se trata de questões econômicas, incluindo aí seus aspectos social e ecológico.
Na obra Free Market Environmentalism, por exemplo, os economistas Terry Anderson e Donald Leal apresentam uma série de exemplos em que soluções de mercado foram muito mais eficazes ao lidar com problemas ambientais do que as regulações estatais, e fazem uma brilhante análise das condições institucionais e políticas que permitiram que isso acontecesse. O ponto principal, inspirado em um famoso teorema do economista Ronald Coase, é que quando os direitos de propriedade são claramente definidos, as disputas sobre a justa utilização dos recursos naturais geralmente podem ser resolvidas nos âmbitos locais e de forma cooperativa.
São vários os estudos de caso apresentados no livro, envolvendo temas como: gestão de reservas minerais, parques naturais, mananciais de água e disposição do lixo, dentre outros. E em todos eles a lógica se repetiu: contanto que os direitos de propriedade fossem bem definidos e protegidos, as soluções de preservação ambiental emergiam naturalmente a partir dos conflitos entre os cidadãos. “A primeira premissa do Ambientalismo de Livre Mercado”, disse Terry Anderson em uma entrevista, “é de que ‘quanto maior a riqueza, maior a preservação’, no sentido que os mercados geram a riqueza que nos fornece meios de lidar com os problemas ambientais. Embora muitas pessoas pensem, de forma equivocada, que os mercados só geram consumismo e outras porcarias, são os mercados que produzem riqueza e, desse modo, ajudam o meio ambiente”.
De fato, apesar do ambientalismo anticapitalista dominante tentar sempre passar uma impressão contrária, países que decidem adotar políticas econômicas mais liberais tendem a melhorar seus indicadores ambientais de forma proporcional aos indicadores econômicos e sociais. Uma forma interessante de verificar isso é comparando a colocação dos países nos rankings dos índices de Liberdade Econômica, Performance Ambiental e Desenvolvimento Humano. A correlação entre eles é gritante. Se um país está entre os primeiros em um dos rankings, é muito provável, com raras exceções, que também esteja entre os primeiros nos outros dois, e vice-versa. Mesmo países com histórico de pobreza e dominação colonial – como Singapura, Lituânia, Hong Kong e Ruanda – conseguiram melhorias significativas depois de abraçarem o livre mercado.
Uma breve apreciação dos subcomponentes do índice de liberdade econômica, a propósito, nos permite compreender que em países como Brasil, México e China, com forte presença de multinacionais monopolistas, as instituições que poderiam garantir o verdadeiro livre mercado são muito enfraquecidas, ao passo que países como Noruega e Dinamarca – que fascinam os anticapitalistas de todas as estirpes – devem sua sustentabilidade econômica e ambiental a um capitalismo vigoroso e livre, apesar de seus estados inflados e não por causa deles.
É claro que não podemos tomar índices como referências definitivas do que quer que seja. As composições de todos eles sempre envolverão ao menos algum tipo de deficiência metodológica, assim como quaisquer outras tentativas de traduzir aspectos da realidade em números. Da mesma forma, não podemos crer que o livre mercado seja uma entidade miraculosa, capaz de resolver todos os problemas. O capitalismo possui mesmo contradições internas, de modo que ele tende a corromper a ordem moral e institucional que o gerou e o sustenta. Entretanto, o livre mercado ainda é a nossa melhor opção disponível, capaz de levar prosperidade econômica, social e, sim, ambiental, a um número de pessoas jamais imaginado em outras épocas. Por isso, antes de nos metermos a elogia-lo, criticá-lo, aprimorá-lo ou mesmo tentar substituí-lo, o primeiro passo talvez seja aprendermos a diferenciar bem o que ele realmente é do que ele não é, nem nunca foi.
[Teo] Como demonstrou o economista francês Thomas Piketty na sua obra O Capital no Século XXI, o capital tende a concentrar-se com o passar do tempo, isto é, produzir uma desigualdade cada vez maior em que poucos possuem grande parte da riqueza, enquanto a maior parte da população se encontra socialmente marginalizada. Isto aponta para a primeira parte da pergunta do Raph: antes de ser um mero mal ocasional do capitalismo, a acumulação de capital é estrutural a sua própria forma de organização. No entanto, a produção da desigualdade não é a única característica estrutural ao capitalismo, mas também o consumismo e a exploração dos recursos humanos e naturais. Isto faz com que toda tentativa de tornar o capitalismo sustentável tenha como destino o fracasso.
A subjetividade ocidental moderna, atravessada pela ideologia do capitalismo, marca-se pelo sempre mais (mais consumir, mais explorar, mais ganhar, mais prazer etc). Produz-se e consome-se cada vez mais novos produtos tecnológicos, roupas da nova tendência da moda, entre outros, de forma que nosso consumo e produção ultrapassa em muito o que é estimado como o suficiente. Na mesma medida em que cada vez mais exploramos os recursos naturais de forma a produzir nossos bens de consumo, o que consumimos, devido à condição intensa e fugaz da modernidade, rapidamente se torna lixo. Como não é a totalidade do nosso lixo que pode ser reciclado, consequentemente acumula-se um excedente cada vez maior de poluentes que não possuem um destino seguro. Afinal, por que consumimos tanto?
O espaço é curto para adentrar em todas as questões biológicas, psicológicas, sociológicas e filosóficas envolvidas. Pode-se dizer por alto que o ser humano, como um ser cultural, é essencialmente faltoso. Diferente do animal que tem a sua vida regulada por instintos pré-definidos biologicamente, a vida humana não tem nenhum destino a priori que não seja atravessado pela cultura, isto é, a subjetividade e o desenvolvimento histórico-social. Se essa falta em outros tempos pode ter sido preenchida pelos mais diversos significantes, em nossa sociedade pós-industrial capitalista é a ideologia do consumo que surge como discurso-mestre. Como afirma o psicanalista Antonio Quinet, o discurso capitalista produziu um sujeito animado pelo desejo capitalista, onde sua falta estrutural (falta-a-ser) é interpretada como falta-a-ter. Deste modo, acreditamos que no consumo poderemos adquirir aquele objeto imaginário que nos tornará mais felizes, belos, amados e desejados. Seja o novo iphone que todo mundo legal tem, a confortável casa de campo que sempre foi sonhada, o carro do ano para passear com a família no final de semana etc. O problema é que, ainda quando se adquire o objeto desejado, a falta permanece.
Consumir é mais do que simplesmente comprar um produto. Antes disto, deveríamos nos perguntar o que nos faz desejar o que desejamos. Por trás do nosso desejo pelos bens de consumo que nos são apresentados reside um horizonte histórico-cultural que sustenta que possuir um determinado objeto é importante, valorizado e que todos nós deveríamos desejá-lo. Não há nenhum tipo de crítica moral nisso, pois todos nós, devidos à nossa característica social, estamos sempre desejando objetos mediados socialmente. Ainda quando desejamos um objeto diferente do padrão hegemônico – digamos assim, alternativo – estamos visando atender certo padrão imaginário estabelecido num coletivo. Quero dizer, “não estar na moda” também é uma moda.
Consumir, neste sentido, é afirmar um estilo de vida. A publicidade sabe muito bem disto. Por este motivo, os comerciais costumam associar beber a “cerveja x” a conquistar a mulher do corpo socialmente valorizado, possuir o “carro y” a alcançar um determinado patamar social, geralmente um emprego, e por aí vai. Karl Marx já tinha percebido isto ao falar do fetiche da mercadoria: quando compramos um produto, estamos comprando muito mais que a materialidade daquela mercadoria. Estamos comprando a nossa própria fantasia de que ao adquirir determinado produto alcançaremos determinado status, certo grau da felicidade prometida, que não está propriamente nas qualidades materiais, mas no imaginário.
Com o fracasso da mercadoria desejada em oferecer a completude esperada, o sujeito se vê acreditando que no próximo produto que adquirir aí sim vai estar realmente sua felicidade. Não no iphone 5, mas no iphone 6, 7, 8... e assim pessoas vivem vidas inteiras. Isto deveria ser alvo de nossa crítica não por uma suposta moralidade espiritualizada, mas pelo fato de que esse modo de existência é causa de grande sofrimento mental para muita gente, e, além disso, vivemos num planeta de recursos finitos. Assim como a água de alguns estados brasileiros, outros recursos indispensáveis a nossa sobrevivência estão comprometidos devido a nossa exploração insaciável.
Para que o capitalismo funcione é necessário o constante consumo. Para que as indústrias operem, para que produtos sejam comercializados, e assim o capital continue rodando, girando a grande máquina do capital, as empresas possuem as mais distintas estratégias para que o consumo não reduza, desde a obsolescência perceptiva (a ideia de que seu iphone 5, ainda que perfeitamente funcional, será eventualmente para você indesejável visto que há produtos com aparência inovadora no mercado, mesmo que eles na verdade tenham apenas pequenas mudanças funcionais), à obsolescência programada (o fato de que as indústrias constroem produtos com vida útil cada vez menor, para darem defeito mais rápido, e que você tenha que comprar um novo produto delas: você deve lembrar que a geladeira da sua avó durou mais de 50 anos enquanto a sua não dura nem 5, né?).
Com a ascensão da consciência ecológica de que nosso planeta e nossa existência estão sendo destruídos pelas nossas próprias mãos, surgiu uma nova onda no pensamento ocidental: o ecocapitalismo. Sob a roupagem da sustentabilidade, esta visão propõe um modelo de desenvolvimento sustentável, em que a produção capitalista deveria se pautar idealmente por “soluções verdes”, equilibrando a busca por lucros com o investimento na natureza. Este talvez tenha sido o maior engodo que o capitalismo propôs nas últimas décadas.
A conscientização ocidental, não apenas em relação à ecologia, mas também em relação à pobreza, tem causado nas pessoas a sensação de que “algo deve ser feito”. Entretanto, antes desta sensação se situar como uma crítica ao capitalismo enquanto sistema intimamente implicado em tais males, o marketing corporativo tem se servido muito bem desta comoção. Por exemplo, empresas como Starbucks e McDonald’s afirmam destinar porcentagem das suas vendas para uma reconhecida instituição de caridade mundial. De acordo com o marketing das empresas, quando você está comprando um café ou um hambúrguer, você está fazendo algo mais que isso: você está comprando a experiência de ajudar alguém. Tal é a armadilha do capitalismo e das empresas que visam aumentar suas vendas ao se apoiarem na necessidade de redenção do consumidor, culpado diante do fato de que o sistema capitalista que ele alimenta é a causa de tantos males sociais.
Se as empresas têm publicamente afirmado nas últimas décadas seu interesse e comprometimento com o desenvolvimento sustentável, sabe-se que no capitalismo competitivo as empresas dependem da vantagem comparativa que consigam obter em relação a seus concorrentes, onde a legitimidade, a boa imagem corporativa e a maior visibilidade no mercado decorrente da adoção de programas de responsabilidade social são essenciais. Ser uma “empresa verde” é uma forma de angariar mais consumidores e, consequentemente, ganhar vantagem na competição do mercado. Aumentando a produção e venda, caímos no ponto contraditório: defendemos a tal “sustentabilidade” na mesma medida em que cada vez consumimos mais.
Ideias como “consumo consciente”, mesmo que bem intencionadas, são utópicas por diversos fatores, tais quais: 1) o consumidor nunca dispõe de informações suficientes sobre a procedência do que consome, ainda mais quando sabemos que a divulgação de informações é determinada pelo capital, que serve a interesses privados; 2) ainda quando dispõe de informação, o consumidor individualmente não tem poder de intervir na produção (este é o papel de entidades reguladoras para intervir em nome de interesses coletivos); 3) mesmo no ecocapitalismo, não é seguro contar com consumidores animados pelo desejo capitalista. Por exemplo, notícias como a de que a Apple tem condições de trabalho degradantes em suas fábricas não causam mudanças significativas em suas vendas.
Neste sentido, não há engano: o ecocapitalismo é o mesmo capitalismo, com todos seus males estruturais, mas transvestido com uma sustentabilidade de fechada apenas para aliviar nossa sensação de culpa. Se analisarmos seu funcionamento, veremos que sob uma roupagem de preocupação social, que raramente o consumidor pode fiscalizar (ou está interessado em fiscalizar), reside a exploração dos recursos naturais e humanos em função do potencial de lucro.
É neste sentido que o filósofo Slavoj Žižek concentra sua crítica social: na crença atual de que o capitalismo é um mal irremediável, que deveríamos aceitá-lo em seus termos, e que nos restaria apenas tentar torná-lo menos trágico, tentando conciliá-lo com vagas ideias como sustentabilidade. Se quisermos pensar num desenvolvimento verdadeiramente sustentável, precisamos estar dispostos a repensar o próprio capitalismo, encarar seus problemas estruturais. Isto é especialmente importante num tempo em que se critica muito a política e o Estado, mas não se percebe que existem empresas maiores que os países em que operam.
O governo é apenas um boneco de Judas, e os grandes empresários e banqueiros capitalistas, por terem a política em suas mãos, decidem muito mais o destino das coisas que aquele político que tanto se fala mal. A macropolítica apenas herda um viciado jogo de interesses estrutural ao próprio capitalismo. Neste sentido que se tornam vazios discursos como sustentabilidade ecológica no mercado, marcha contra a corrupção etc. Acontece que estamos lidando com problemas estruturais a nossa organização social, política e ideológica como se fosse questão de moralidade. Cabe questionar antes disso o que engendra essa moralidade duvidosa, pois culpamos pessoas e partidos, mas seguimos ufanistas das marcas de nossos carros ou gadgets, ingerindo substâncias duvidosas processadas com aparência de comida, vestindo e exibindo nossa vaidade ideológica.
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Crédito da imagem: Convergence Alimentaire (pode-se considerar a Kraft Foods e a Mondelez International como sendo a mesma empresa...)
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