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28.3.18

Vamos contar o Ômer?

Contagem do Ômer, ou Sefirat ha Ômer, é o nome dado à contagem dos 49 dias ou sete semanas entre Pessach e Shavuót, feriados judaicos correspondentes, respectivamente, a Páscoa e ao dia de Pentecostes. Nesta Contagem mística (de origem judaica), meditamos todos os dias relacionando sete das esferas da Árvore da Vida da Kabbalah com elas próprias e também com as demais, totalizando exatamente os 49 dias de Contagem (7x7=49).

Em 2014 eu segui a Contagem conforme proposta pela Kabbalah Hermética, seguindo o passo a passo organizado pelo meu amigo Marcelo Del Debbio (você pode ver toda a explicação e os vídeos de cada dia da Contagem aqui). De forma inteiramente inesperada, acabei escrevendo (o verbo mais correto provavelmente seria “recebendo”) um novo poema a cada noite da minha Contagem, o que acabou se tornando um livro chamado 49 noites antes da Colheita (disponível em e-book e versão impressa).

Muito bem, para a Contagem deste ano de 2018, que se iniciará ao pôr do sol do dia 31 de Março, eu resolvi preparar uma surpresa a todos os contadores que, pelo menos desde 2015, vêm usando meus poemas para auxiliar em suas meditações do Ômer: recitarei todos eles e irei incluí-los no canal do blog no YouTube. Iniciando por Chesed shebe Chesed, a ideia é que escutem cada um deles com a alma plena, durante a meditação específica de cada dia da Contagem:

“Conte esta noite: Hoje é o dia 1 do Ômer.”

» Aqui você encontra o restante da playlist com todos os áudios (note que eles ainda estão sendo incluídos, até o início de cada semana da Contagem, os áudios correspondentes já devem aparecer por lá).

***

Também recomendamos o Sefirat ha Ômer, um APP gratuito para Android, criado por Cristian Dornelles. Contendo todos os textos e gráficos do passo a passo elaborado pelo Marcelo Del Debbio, este aplicativo independente de conexão com internet serve para lhe guiar em cada noite dos 49 dias de meditação, onde você estiver.

Crédito da imagem: Vinícius Amano/unsplash

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25.3.18

Lançamento: Cartas a um jovem poeta

As Edições Textos para Reflexão desta vez trazem a você o livro mais conhedio de um dos maiores poetas de língua alemã, Rainer Maria Rilke .

Tudo começou com uma carta despretensiosa de um jovem poeta, "iniciante de tudo", a um Rilke já em pleno domínio do seu mundo poético. Ao costumeiro pedido de avaliação, algo como, "Seriam bons os meus poemas?", o poeta respondeu simplesmente que não poderia avaliar, pois que "nada está mais afastado de uma obra de arte do que as palavras de uma crítica: elas sempre terminam em desentendimentos mais ou menos desafortunados". Foi assim que Franz Xavier Kappus, o jovem poeta, não ganhou nenhuma crítica literária exclusiva, mas sim conselhos de uma sabedoria avassaladora, tão intensos e profundos que são capazes, até hoje, de abalar nossas vidas em seus alicerces mais profundos... Assim nasceu Cartas a um jovem poeta.

Disponível em e-book na Amazon e na Saraiva:

Comprar eBook (Amazon Kindle) Comprar eBook (Saraiva Lev)

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À seguir, trazemos a primeira carta de Rilke, na íntegra (tradução de Rafael Arrais):

Paris
17 de fevereiro de 1903


Caro Senhor,

Sua carta me encontrou apenas alguns dias atrás. Eu quero lhe agradecer pela grande confiança que depositou em mim. Isto é tudo o que eu posso fazer. Eu não posso debater acerca dos seus versos; pois que qualquer tentativa de crítica à poesia alheia seria algo estranho para mim. Nada está mais afastado de uma obra de arte do que as palavras de uma crítica: elas sempre terminam em desentendimentos mais ou menos desafortunados. As coisas não são todas tão tangíveis e exprimíveis em palavras quanto às pessoas usualmente nos fazem crer; muitas experiências estão além das descrições, elas se passam num espaço onde nenhuma palavra jamais adentrou, e não há nada que esteja mais distante das descrições do que as obras de arte, tais existências misteriosas cujas vidas perduram ao lado da nossa própria vida, pequenina e transitória.

Tendo esta nota como prefácio, devo lhe dizer que os seus versos não têm ainda um estilo próprio, ainda que possuam sementes ocultas e silenciosas de algo mais pessoal. Eu senti isso de forma mais clara no último poema, “Minha Alma”. É lá que alguma coisa de sua essência está buscando se tornar palavra e melodia. E no amável poema, “Para Leopardi”, uma espécie de parentesco com esta grande e solitária figura também parece se manifestar. Em todo caso, os poemas ainda não são nada em si mesmos, ainda não alcançaram sua independência, até mesmo estes dois que citei. Sua amável carta, essa que acompanhou seus poemas, permitiu que se tornassem mais claras para mim várias faltas que senti ao ler os seus versos, ainda que não me seja possível nomeá-las em específico.
Ora, você me pergunta se os seus versos têm alguma qualidade. Você me pergunta... Você também perguntou a outros antes de mim. Você enviou seus poemas para revistas. Você os comparou com a poesia de outros autores, e não se perturbou quando certos editores rejeitaram seu trabalho. Agora, já que você pediu o meu conselho, eu lhe imploro que pare de fazer esse tipo de coisa. Você está olhando para fora, e isso é o que mais deveria evitar nesse momento. Ninguém pode lhe aconselhar ou lhe ajudar neste caso – absolutamente ninguém. Há apenas uma coisa que você deveria fazer: adentrar fundo em si mesmo. Descubra a razão que lhe comanda a escrever, veja se ela já espalhou suas raízes pelas profundezas do seu coração, confesse a si mesmo se você preferiria morrer caso lhe fosse proibida a escrita. E, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais escura da sua noite: eu devo escrever?
Cave em seu próprio ser por uma resposta profunda, e caso essa resposta ressoe positiva, caso você solucione tal questão solene com um vigoroso e simples “eu devo”, então construa sua vida de acordo com tal necessidade. Toda a sua vida, até mesmo em suas horas mais humildes e indiferentes, deve ser como um signo e um testemunho desse impulso.
Então vá para junto da Natureza. Daí, como se nunca ninguém houvesse tentado isso antes, tente falar sobre o que vê e sente e ama e perde. Não escreva poemas de amor; se afaste desses formatos que são muito dóceis e ordinários: eles são os mais difíceis de se trabalhar, e será preciso um grandioso poder, totalmente florescido, para que consiga criar algo individual onde boas, até mesmo gloriosas tradições já existem em abundância. Assim, salve a si mesmo de tais temas gerais e escreva sobre o que o dia a dia lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos que flutuam por sua mente e a sua crença nalguma espécie de beleza. Descreva tudo isso com o sentimento que passou de fato pelo seu coração, fale de forma silenciosa, humilde e sincera.
E, quando for se expressar, faça pleno uso das coisas a sua volta, das imagens em seus sonhos e dos objetos que estão em sua memória. Acaso o seu dia a dia lhe pareça pobre, não o culpe; culpe a si mesmo. Admita que você ainda não é um poeta hábil o suficiente para perceber suas riquezas; pois que para o criador não há nem pobreza nem lugares pobres, indiferentes. Assim, mesmo que se encontre numa prisão cujas paredes isolem todos os sons do mundo lá fora, você ainda não teria contigo toda a sua infância, essa tal joia além de qualquer preço, essa casa do tesouro de memórias? Foque a sua atenção nela. Tente trazer à tona os sentimentos submersos desse imenso passado; sua personalidade se fortalecerá; sua solidão irá se expandir e se tornar um lugar onde você poderá viver no crepúsculo, onde o barulho das demais pessoas passa bem longe, à distância.
E se deste voltar-se para dentro, desta imersão em seu próprio mundo, surgirem poemas, então você jamais pensará em perguntar a qualquer um se eles são bons ou não. Tampouco tentará fazer com que as revistas se interessem por eles: pois você os verá como uma valiosa posse pessoal, como um pedaço de sua própria vida, como se ela mesma lhe falasse por palavras.

Uma obra de arte é boa se ela surgiu de uma necessidade íntima. Esta é a única forma que alguém poderá julgá-la. Assim sendo, caro Senhor, eu não posso lhe dar qualquer outro conselho além deste: que mergulhe em si mesmo e veja quão profundo é o lugar de onde flui a sua vida; é lá na sua fonte que encontrará a resposta para o que quer que deva criar. Aceite tal resposta, do modo como lhe foi dada, sem tentar interpretá-la. Talvez você descubra que foi chamado a ser um artista. Se for este o caso, então aceite tal destino, suporte o seu fardo e a sua grandiosidade, sem jamais se questionar acerca de qual prêmio deverá aparecer lá fora. Pois que o criador deve ser um mundo para si mesmo, e deve encontrar tudo em si mesmo e na Natureza, para a qual toda a sua vida é devotada.
No entanto, após haver descido em si mesmo, e em sua solidão, talvez você deva renunciar o ofício de poeta (como já disse, se alguém sente que pode viver sem escrever, então não deveria escrever jamais). Em todo caso, ainda assim, esta busca interna que eu lhe recomendei não terá sido realizada em vão. Sua vida poderá encontrar os seus próprios caminhos desta experiência, e que eles possam ser bons, ricos e largos é o que eu lhe desejo, mais do que possa colocar em palavras.
O que mais eu poderia lhe dizer? Me parece que tudo o que havia por ser abordado já o foi. Finalmente, gostaria de adicionar mais um pequeno conselho: para que continue a crescer, de forma silenciosa e fervorosa, ao longo de todo o seu caminho de desenvolvimento. Afinal, você não poderia perturbar tal caminho de forma mais violenta do que buscar lá fora pelas respostas que só podem ser encontradas em seus sentimentos mais íntimos, nas suas horas mais silenciosas.
Foi uma alegria encontrar na sua carta o nome do professor Horacek; eu tenho grande reverência por este homem tão doce e culto, e uma gratidão que resistiu ao passar dos anos. Por favor, diga a ele como me sinto; fico muito feliz em saber que ele ainda se lembra de mim, feliz e lisonjeado.
O poema que deixou aos meus cuidados, eu estou lhe enviando de volta. E eu lhe agradeço mais uma vez por suas questões e sua confiança sincera, da qual, respondendo da forma mais honesta que me foi possível responder, eu tentei fazer de mim alguém um pouco mais digno do que realmente sou.

Atenciosamente,
Rainer Maria Rilke


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23.3.18

O Jardim de Epicuro - A Felicidade

Após ter acompanhado seu nascimento e crescimento desde o início, é com muita honra que hoje prosseguimos com a parceria deste blog com o canal Conhecimentos da Humanidade no YouTube, apresentado por Bruno Lanaro e Leo Lousada.

Neste roteiro, adaptei um antigo homônimo recente que foi criado já na intenção de servir ao canal. Nele, conhecemos mais sobre a escola epicurista de filosofia, e sobre a imensa diferença entre a ataraxia e o hedonismo:

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22.3.18

A Nona Elegia de Duíno

Por que, se poderia iniciar como coroação, e assim ser gasto,
este espaço do Ser, pouco mais negro do que todo
o verde à volta, com pequeninas ondas nas pontas
de cada folha (como uma brisa sorridente): por que, então,
tem de ser humano – e um destino fugidio
ansiando por outro destino?...

Oh, não porque a felicidade existe,
este lucro tão precipitado de uma perda iminente;
não pela curiosidade, ou por se exercitar o coração
que lá poderia estar, na coroação...

Mas porque estar aqui já é muito, e porque tudo
o que se encontra à nossa volta parece clamar por nós,
essas coisas efêmeras que, estranhamente, nos inquietam.
Nós: o que há de mais efêmero. Uma vez
tocamos cada coisa, só uma vez. Uma única vez, e nunca mais.
E nós também, uma só vez. E nunca mais.
No entanto, esta única vez, este ter sido, ainda que só uma vez,
uma coisa da terra – isto parece irrevogável.

E assim, nós seguimos adiante, querendo conquistá-la,
tentando segurá-la em nossas mãos acanhadas,
no olhar que nos transborda, e no coração que se cala.

Tentamos nela nos tornar. Mas a quem ofertá-la?
Nós a seguraríamos para sempre... Ah, que será, aliás,
que nós carregamos à outra dimensão? Não a contemplação
que aprendemos por aqui, lentamente, e nada
do que já se passou. Nada.

O sofrimento então. Acima de tudo, então, o que é difícil,
a longa experiência do amor, que seja – aquilo que é
completamente indizível. Mas, mais tarde,
espalhado nas estrelas, de que ele nos serve:
ainda é melhor se calar.

Uma vez que o andarilho não traz nenhum punhado de terra
da encosta da montanha para o vale, nada que possa ser dito,
mas somente uma palavra conquistada, uma flor de genciana,
pura, azul e amarela.
Estaríamos nós aqui, quem sabe, para dizer: casa,
ponte, fonte, portão, jarro, árvore, janela –
e acima de tudo: coluna, torre...
Mas para recitar, compreenda, oh, para recitar as coisas
como elas mesmas jamais falariam de si mesmas,
jamais assim, tão profundamente.
Não é esta a intenção secreta da Terra discreta?
Atrair os amantes uns aos outros,
até que cada uma das coisas da natureza
se delicie com o que sentem?

Soleira: o que é isso para dois amantes
que igualmente desgastam as próprias soleiras
de seus antigos portões?
Sim, eles também as desgastam pouco a pouco,
após tantos e tantos dos que aqui já passaram,
e antes dos que ainda virão... simples assim.

Eis aqui a era do que pode ser dito: aqui está a sua casa.
Fale, e seja testemunho. Mais do que nunca
as coisas que podem ser tocadas estão desvanecendo,
e o que as destituí e substituí é um Ato sem Imagem.

Um ato, sob uma casca que se romperá, tão cedo
quanto a sua ação interna a transborde,
e estabeleça um novo limite para si mesma.
Entre as marteladas, sobrevive nosso coração,
assim como a língua entre nossos dentes
que, apesar do que fazem,
continua exaltando a existência.

Cante ao Anjo o louvor do mundo, não o que não pode ser dito:
você não pode impressioná-lo com as glórias do seu sentimento:
no seu universo, onde tudo é mais profundamente sentido,
você é mero aprendiz.
Então, mostre a ele uma coisa simples, talhada em era após era,
que vive sempre perto das mãos e sob a sua vista.

Diga a ele as coisas. Ele ficará mais maravilhado: assim como você,
quando visitou o cordoeiro de Roma, ou o ceramista do Nilo.
Mostre a ele quão alegres podem ser as coisas,
quão suas e sem culpa; mostre como uma lágrima de tristeza
escorre tão pura, e serve como coisa, ou morre como coisa:
tais coisas efêmeras, elas olham para nós em busca da salvação;
logo nós, que somos os mais efêmeros.

Torça para que as transmutemos, completamente,
lá em nossos corações invisíveis, torça para que as vertamos
em nós, oh, em nós, infinitamente! Em o que quer
que nós sejamos, no fim das contas.
Terra, não é isto o que deseja: elevar-se em nós
de forma oculta? – não é este o seu sonho,
ser algum dia invisível? – Oh Terra! Invisível!

Qual seria o seu comando urgente que não a transmutação?
Oh amada Terra, eu lhe atenderei. Oh, creia em mim,
não serão mais necessárias tantas Primaveras
para me convencer: apenas uma,
ah, uma Primavera… já seria mais do que o meu sangue
pode suportar.

Sem lhe dar nomes, eu fui verdadeiramente seu, desde os primórdios de mim.
Você sempre esteve certa, e a sua inspiração mais sagrada
é esta morte, a morte mais íntima.

Veja, ainda vivo. Sobre o quê? Em mim
nem infância nem futuro diminuem...
Uma vida, uma vida caudalosa
transborda em meu coração.


(A Nona Elegia de Duíno, por Rainer Maria Rilke, e tradução de Rafael Arrais).

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Crédito da imagem: Google Image Search

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16.3.18

Através do olhar de Maria Madalena

Ao contrário das outras poucas análises de filmes que já fiz por aqui, desta vez vou trazer a vocês um texto sem tantos spoilers, para que possam ler mesmo antes de ver o filme Maria Madalena (2018; direção de Garth Davis). Aliás, como poderão ver, não é bem um filme agradável para todos os públicos...


Uma coisa que posso contar é sobre a belíssima cena inicial do filme, justamente porque é a primeira coisa que irão ver. Nela, vemos uma mulher mergulhando nas profundezas do Mar da Galileia (na verdade um extenso lago perto de Tiberíades, onde provavelmente ficava a aldeia de Magdala) enquanto ouvimos uma parábola de Jesus descrita em Mateus 13:31-32:

O Reino dos céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem, pegando nele, semeou no seu campo; o qual é, realmente, a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das plantas, e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus ramos.

É interessante como, no restante do filme, todo o desenrolar se dá no sentido de nos explicar, não como palavras, mas sobretudo com imagens e profundas atuações, isto é, com cinema, o que poderia ser este tal Reino. E é nesse sentido que o filme não é para todos. Sua narrativa é mais mística e contemplativa do que cheia de ação e narrativas paralelas. Não há uma grande trama por ser desvendada (até mesmo porque todos já devem conhecer a história principal), não há maiores polêmicas em relação a Jesus e Maria (apesar da histeria usual dos ortodoxos com os trailers iniciais, uma espécie de “crítica preventiva”), nada disso: o filme trata do encontro com o Reino, e portanto não será mesmo do gosto de todos.

Aliás, em sua fotografia e figurino de época extremamente realistas, ele lembra muito A última tentação de Cristo (de Martin Scorsese). Neste sentido, nalguns momentos dos trechos iniciais no entorno da aldeia de Magdala e, mais ainda, nas cenas de Jerusalém (com o Templo de Salomão ainda de pé) vista de longe, a beleza do filme supera o antigo; ainda que, como cinema em si, esteja relativamente bem aquém do clássico de Scorsese.

Logo após a cena inicial no lago somos apresentados a Maria e sua vida em Magdala, uma pequena aldeia de pescadores. Logo fica muito claro, mesmo para quem ainda não sabia, que se trata de um roteiro escrito por mulheres (Helen Edmundson e Philippa Goslett): o retrato da função feminina nos lidos domésticos e do seu espaço limitado na vida religiosa da comunidade é claramente algo novo e intencional. Durante todo o restante do filme, aliás, o que vemos é a história de Jesus e seus apóstolos através do olhar de Maria Madalena. É assim que, muitas vezes, vemos os outros pelas costas enquanto caminham à frente (ela ficava geralmente atrás, para não chamar atenção) e cochichando pelos cantos (os apóstolos não se sentiam tão à vontade com ela, principalmente quando era a única mulher do grupo)... Vale lembrar, aliás, que em nenhum momento o filme comete o antigo erro de associar Maria a uma prostituta, algo que já foi inclusive corrigido pelo próprio Vaticano, que em 2016 a proclamou a apóstola dos apóstolos.

O primeiro apóstolo a se aproximar mais intimamente de Maria é Judas. É interessante e, ao mesmo tempo infeliz, a maneira como o caracterizam no filme. Judas já foi o tradicional traidor maléfico dos filmes mais ortodoxos, e o confidente belicista, o apóstolo mais próximo de Jesus na Última tentação (...) de Scorsese. Aqui, entretanto, ele é mais como um fanático religioso ingênuo, que tem altas expectativas acerca da chegada iminente do Reino. Não sei se ele foi pensado como uma crítica aos cristãos fanáticos de hoje em dia (o tipo de gente que acha que a ida da embaixada dos EUA para Jerusalém vai apressar a vinda do messias), mas o considero como o grande ponto fraco do filme, ainda que o ator seja em geral bem simpático.

Já a caracterização de Pedro vai muito além de ser um (excelente) ator negro (sim, havia negros naquela época); ele é basicamente neste filme o que Judas é, em boa parte, no filme de Scorsese: a “rocha firme” que mantém o grupo forte e unido, e aquele que protege Jesus nos momentos em que à força física se faz necessária. No entanto, as roteiristas trouxeram para o filme, como era de ser esperado, o famoso conflito entre Pedro e Maria que se passa no Evangelho de Maria, um dos chamados “apócrifos”:

Pedro [...] questionou sobre o Salvador: “Ele realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento (e) não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?”

Então Maria lamentou e disse a Pedro, “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crê que eu mesma inventei essas coisas no meu coração, ou que esteja mentindo sobre o Salvador?” Levi respondeu e disse a Pedro, “Pedro, tu sempre foste o exaltado. Agora eu te vejo te opondo a uma mulher como (a) adversários. Mas se o Salvador a fez digna, quem és tu de fato para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem. Por isso ele a amava mais do que a nós. Vamos nos envergonhar e nos vestir do homem perfeito e recebê-lo em nós como ele nos comandou e pregar o evangelho, sem proclamar outra regra ou lei além daquilo que o Salvador disse.”

Este “ciúme” de Pedro em relação às conversas a sós entre Jesus e Maria é retratado no filme como teria de ser: não como a suspeita de uma possível relação amorosa (como personagens históricos, ambos provavelmente eram essênios e celibatários), mas como um entendimento de que ele simplesmente “estava perdendo tempo com uma mulher, que não poderia compreendê-lo”. Afinal, Maria era uma mulher, e o fato de ser tratada como um “igual intelectual” era, para aquela época e região do planeta, algo extremamente revolucionário (e que foi convenientemente esquecido por Paulo e muitos “doutores da Igreja” ao longo dos séculos).

O grande “pulo do gato” no roteiro, e onde ele é sem dúvida mais original, é justamente no andamento da relação entre Pedro e Maria, e como o próprio Jesus toma providências para que eles, ao menos, entendam e respeitem um ao outro. Jesus manda os dois, sós, para evangelizar numa aldeia que, talvez, ele já soubesse estar devastada pela fome. Fato é que, lá chegando, Pedro se recusa a batizar pessoas moribundas, que teriam no máximo alguns dias de vida. Já Maria, tal qual faria Madre Teresa de Calcutá muitos séculos depois, decide mesmo assim batizá-los e assisti-los em suas mortes. Pedro fica boquiaberto, e repete a palavra “misericórdia” algumas vezes, como se a tivesse compreendido pela primeira vez naquele dia, ao lado de Maria. É uma das cenas marcantes do filme.

Ao final, obviamente, eles ainda tomam rumos distintos: Pedro vai fundar sua Igreja de homens, e Maria vai evangelizar por todo o sul da Europa, onde eventualmente dará origem aos mitos das “virgens negras” (sim, para os padrões europeus da época, uma mulher vinda da Galileia poderia muito bem ser considerada negra – ainda que a atriz escolhida para o filme não o seja).

Já Jesus e Maria estão ambos fantásticos em suas atuações (Joaquin Phoenix e Rooney Mara, respectivamente). Jesus é, desde a cena inicial, o chamamento, o enigma que precisa ser decifrado por ela. Como esta relação é precisamente o que há de mais precioso no filme, eu prefiro não dar spoilers sobre ela. Há, porém, uma cena que inclusive aparece no trailer, em que Maria lhe pergunta enquanto estão ambos a sós nos montes galileus:

“É isso que se sente quando se é um com Deus?”

Ao que Jesus diz:

“Nunca me perguntaram como é a sensação.”

Mas isto não chega a ser respondido completamente em nenhum momento do filme, pois que isto não é para ser dito. E é precisamente assim que Maria Madalena deve ser visto: como uma experiência religiosa. Para os que têm olhos para ver, um belíssimo filme lhes aguarda nos cinemas.

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Crédito da imagem: Divulgação/Maria Madalena

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15.3.18

Chamamento

Até quando vai ficar aí
fascinado com o brilho que não vem de si,
indo e vindo nessa faixa estreita,
isolado nessa câmara obscura
e inteiramente segura?

O chamamento vem do alto,
a mensagem não vem de nenhum súdito de rei algum;
a luz vem das estrelas, das estrelas!

E ela quer ser refletida,
ela quer achar espelhos...
ela vai incinerar monstruosos dragões
em seu próprio fogo;
ela vai petrificar as górgonas
com seu próprio reflexo;
ela vai despertar princesas
e coroar príncipes...

Até quando vai ficar aí
iludido pelas formas passageiras,
imaginando que o tempo se gasta nas esteiras,
vivendo como se fosse realmente possível
jamais perder as estribeiras?

Deixa o Pégaso voar,
não tema nem perigo nem abismo
nem monstro algum –
ó cavaleiro, ó herói, ó ser estelar!

O chamamento vem do alto,
a luz vem do Infinito
e a Eternidade lhe espera
aqui e agora.

Vai! Voa! Ama! Conquista!
Vai cavaleiro,
vai mensageiro,
vai amante,
vai irmão,
vai e brada:

“A luz não pode ser ancorada;
a luz foi criada
para ser refletida!”


raph'18

***

Crédito da imagem: Elliott Brown/Flickr (National Memorial Arboretum - Pégaso e Belerofonte)

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11.3.18

Ser feliz sozinho

Solidão .:.

"Tom Jobim era um gênio, mas estava errado ao afirmar que é impossível ser feliz sozinho, quando é justamente o oposto.

A felicidade só é possível para quem aprendeu a ficar sozinho. Quem esconde sua insuficiência no sonho da relação perfeita arrasta para o buraco o desafortunado que lhe dá as mãos; indivíduos que não se suportam são insportáveis!

Muitos imaginam que o amor vai superar e resolver todos os problemas; amarga ilusão: ele é recompensa, e não remédio."

Caciano Camilo Compostela, Monge Rosacruz – Contato: facebook.com/ mongerosacruzcacianocompostela

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Crédito da imagem: Tim Bogdanov/unsplash

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7.3.18

Frases (21)

Palavras nômades que vêm e vão. Costumam aparecer primeiro no meu twitter, e depois aqui (sim, eu fiquei bastante tempo sem atualizar o blog com as frases, então desta vez vamor ter mais do que o habitual):


"O que é a consciência afinal? Se dizemos que é uma ilusão, estamos iludidos!"

"Não há nada mais intenso do que a guerra contra o ego. O "estado zen" é o "espólio" da guerra, e não a guerra em si."

"Veja o ego andando em zigue-zague pelo caminho do meio, perdido em linha reta."

"Os extremos se cruzam diversas vezes, mas estão vendados."


"Um guia para a vida virtuosa: julgar aos outros o mínimo possível, julgar a nós mesmos com certa regularidade, e dar bons exemplos."

"Desejamos a eternidade, e a única coisa eterna dentro do tempo é o amor."

"Não há nada no universo detectado mais extraordinário do que uma alma humana."

"Quanto as almas, eu as vejo como espelhos, apontando para o que está além da detecção. Dar um nome ou uma qualidade a isso seria inútil."


"Não julgar a espiritualidade alheia lhe ajuda bastante com a sua própria espiritualidade."

"Quem muito julga os outros, pode esquecer do julgamento mais essencial: o de si mesmo."

"Se você pergunta a duas pessoas, uma em Tóquio, outra no Rio, se é dia ou é noite, elas darão respostas diversas, mas ambas estarão corretas."

"Temos de criar navegantes e não recitadores de enciclopédia."


"Toda a minha filosofia se resume a tentar passar adiante o sentimendo de estar navegando por Deus, em cada momento, em cada pensamento."

"Os místicos não detém a verdade absoluta, não querem evangelizá-la. Conhecendo uma alma por dentro, a sua própria, eles tocam todas elas."

"Todo ser é livre em seu interior. Livre, inclusive, para se manter aprisionado na ignorância. No mundo todo, não há liberdade maior."

"Nenhum mestre chama a si mesmo de mestre, pode no máximo aceitar que um discípulo o chame assim enquanto for discípulo. Isto pois o grande objetivo do mestre é tornar o discípulo tão mestre quanto ele."


"Sócrates deve ter sido muito mais gente boa que Platão, e Epicuro mais que Diógenes; Nietzsche mais que Schopenhauer; e Montaigne mais do que todos."

"Todos os dias há um eclipse do sol pelo horizonte, lá pela tardinha..."

"Profissão menos reconhecida da história: Arauto do Final dos Tempos. Quando um deles acertar, não terá direito a prêmio algum."

"Eu acredito em criação do futuro."


"Se fosse para usarmos outro nome para homo sapiens, seria afro-descendentes. A genética explica."

"O código genético é a única linguagem usada pelo ser humano que não foi criada por ele."

"A "transmissão de efeito placebo telepaticamente do acupunturista para o cavalo" é uma explicação consideravelmente mais "sobrenatural" do que o suposto funcionamento da acupuntura em si."

"Um objeto, um troféu, pode ser lindo, mas só uma alma é interessante. Entre a mulher-objeto e a mulher-alma, prefiro mil vezes a que é, de fato, interessante :)"


"Como encontrar um fato num palheiro de pós-verdades?"

""Mas o seu partido também rouba". Assim, roubam todos, e ficamos discutindo sobre quem rouba mais ou menos."

"Temos de ter muito cuidado com o que pedimos ao Universo. Imagina quem pediu, em 2012, para ser tão rico e bem sucedido quanto o Eike Batista?"

"Dar um voto de protesto é como alugar um quarto num hotel, não gostar dele, e reclamar cagando na cama: você ainda terá de dormir nesta cama." (Alan Moore)


"O mistério da vida não é um problema a se resolver, mas uma realidade a se experienciar." (Anônimo/Slack)

"Para o ignorante, o mundo inteiro é seu inimigo. Porém, para o sábio o mundo inteiro é seu professor." (Charaka Samhita, texto clássico Ayurveda)

"Se um homem está vivo, há sempre o perigo de que possa morrer, embora se deva reconhecer que este perigo é bem menor se ele for um morto-vivo." (Thoreau)

"Ter muitos amigos no Facebook é como ser rico no Banco Imobiliário." (L. Riponche)

"Isto é a Vida Eterna, bem aqui. Realize-se, seja feliz, gentil, apaixone-se e nunca faça algo com o qual não possa conviver pra sempre." (Alan Moore)


"Há pedras que se chocam para tirar lascas umas das outras, e há pedras que produzem novas e belas faíscas." (Abenides Faria)

"Um deus me concedeu a arte de exprimir o quanto sofro, nas circunstâncias em que os outros homens se calam com a sua dor." (Goethe)

"Se você não quer um Deus, é melhor que tenha um Multiverso." (Bernard Carr)

"Você me pergunta "o que é Deus?"; eu lhe respondo com outra pergunta: "O que não é Deus?". Se você souber esta resposta, também saberá a outra." (Atmaji)

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Crédito da foto: Christopher Campbell/unsplash

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2.3.18

O Jardim de Epicuro

Há cerca de 2.300 anos caminhou sobre a antiga Grécia um pensador que alçou a felicidade ao centro da sua filosofia, e que segue em boa parte incompreendido até os dias atuais.

Epicuro nasceu em 341 a.C. na ilha de Samos, onde passou a infância e a juventude, tendo aprendido a filosofia platônica através do acadêmico Pânfilo. Com cerca de 18 anos, vai morar em Atenas, cidade natal de seu pai, a fim de cumprir os dois anos do treinamento militar obrigatório. Durante seu breve tempo de soldado, se torna amigo do futuro dramaturgo Menandro.

Tendo se mantido em Atenas, numa época em que tanto a Academia de Platão quanto o Liceu de Aristóteles ainda funcionavam em pleno vapor, encontrou oportunidade para continuar seus estudos. Após haver sido forçado a ir se juntar aos pais e outros colonos atenienses que haviam sido expulsos de Samos pelo sucessor de Alexandre Magno, vive por alguns anos na cidade de Colófon, na costa asiática.

Depois perambula por várias regiões da Grécia, quando já está colocando em prática a sua filosofia, e conquista pelo caminho diversos seguidores igualmente filósofos, como Pítocles, Heródoto e Meneceu, que o acompanham pelo resto da vida.

Em 306 a.C., finalmente regressa a Atenas, onde adquire uma ampla casa com um grande jardim, lá fundando a sua famosa escola, reconhecida pelos séculos como “O Jardim de Epicuro”. Tal escola, no entanto, era muito diferente da Academia ou do Liceu: nela, tanto mestres quanto discípulos costumavam conviver juntos a maior parte do tempo, não somente nas aulas de filosofia em si, mas também nos almoços e lanches, nas conversas e brincadeiras, e por vezes até mesmo na cama.

A doutrina de Epicuro, conhecida também como epicurismo, era basicamente centrada na importância do prazer e da felicidade no cotidiano da vida:

O prazer é o princípio e o fim da vida feliz. O homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou se assemelha ao que diz que é jovem ou velho demais para ser feliz.

Obviamente, Epicuro foi tanto exaltado quanto apedrejado ao longo dos séculos, justamente pelo foco central que a felicidade tinha em sua filosofia. Mas, será que tanto os que o exaltaram quanto os que o demonizaram entenderam exatamente de que tipo de felicidade o pensador grego falava?

Epicuro considerava que a felicidade era sustentada em três pilares principais (desde que uma pessoa tivesse acesso aos bens mínimos para uma existência sadia, como moradia, alimentação e roupas):

A amizade
Quando fundou o seu Jardim em Atenas, Epicuro já convivia com um grupo inseparável de amigos, incluindo aí suas irmãs e esposas, embora não esteja tão claro se as mulheres participavam plenamente dos estudos filosóficos (algo já extremamente heterodoxo para a vida grega de então). Convivendo a maior parte das horas do dia ao lado de seus amigos e discípulos, Epicuro colocou em prática a parte mais essencial da sua filosofia:

De todas as coisas que nos oferecem a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade. Antes de comer ou beber qualquer coisa, reflita com mais atenção sobre sua companhia do que sobre o alimento em si, pois que alimentar-se sem a companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.

A liberdade
Epicuro e seus amigos fizeram uma segunda inovação radical. Para que não precisassem trabalhar para pessoas de quem não gostavam ou se submeter aos seus caprichos, se afastaram do mundo comercial ateniense e formaram o que poderia ser hoje descrito como uma comunidade autossustentável, cultivando seus próprios alimentos e abraçando um modo de vida mais simples, em troca de sua quase total independência financeira do resto da cidade.

Assim, como nenhum de seus amigos tampouco se envolveu com os negócios ou a política ateniense, não havia entre eles nenhum senso de status, nenhuma necessidade real de exibir posses nem conquistas materiais ou políticas.

A reflexão
Tais epicuristas talvez tenham formado a primeira comunidade hippie do mundo, mas é preciso lembrar que eles se dedicavam a filosofia todos os dias, que a sua felicidade era também algo sempre em construção.

Todos os frequentadores do Jardim eram encorajados a refletir. Muitos de seus amigos eram escritores. Segundo Diógenes Laércio, somente Metrodoro, por exemplo, teria escrito doze obras, entre elas: Sobre o caminho que conduz à sabedoria. Todas se perderam, infelizmente, juntamente com a quase totalidade dos cerca de 300 livros atribuídos exclusivamente ao próprio Epicuro (algumas poucas cartas nos restaram, como a famosa Carta sobre a felicidade, a Meneceu).

São famosas as reflexões epicuristas acerca dos deuses e da morte, por exemplo. Da morte, disse Epicuro na Carta a Meneceu:

Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; e, ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui.

Quanto aos deuses, ele acreditava que eles viviam noutro mundo, onde desfrutavam da felicidade divina, e que pouco se interessavam pelo nosso. Não caberia aos homens, portanto, temer ou se angustiar com os desígnios divinos, mas tão somente tê-los como modelos de bem-aventurança, modelos para o auxílio da busca do homem pelo estado de felicidade, e não como motivo para angústias inúteis. Neste sentido, Epicuro se aproximava dos atomistas, e chegou muito perto do que hoje é compreendido como agnosticismo teísta.

Afinal, Epicuro foi hedonista?
Embora muitas vezes pareça que Epicuro buscava o prazer a qualquer custo, a realidade estava bem distante disso. Os epicuristas na verdade buscavam um estado de espírito definido como Ataraxia. Neste estado, nos encontramos sem inquietações ou preocupações, e nosso ânimo em geral estará sempre equilibrado.

Epicuro acreditava sim na felicidade que adivinha de se estar com amigos na mesa, mas não precisava ser num banquete. De fato, o mero consumo de queijo, para os epicuristas do Jardim, era algo para ser celebrado somente de tempos em tempos. Ter queijo à mesa, portanto, já era considerado um luxo. O mesmo se estende para todo o resto dos chamados “bens materiais”:

Com relação aos desejos, alguns são naturais e necessários; outros são naturais e desnecessários. E há aqueles que não são nem naturais nem necessários.

O que é natural e necessário para a felicidade:
Casa, comida e roupa; Amigos; Liberdade; Reflexão filosófica.

O que é natural, mas desnecessário para a felicidade:
Palacete; Terma privada; Banquetes; Empregados; Peixe e carne.

O que não é nem natural nem necessário para a felicidade:
Fama; Poder político; Status.

Seguindo a essência dos ensinamentos de Epicuro, podemos imaginar nossa felicidade como um copo onde é necessário haver alguma água, talvez até pouco menos da metade, para que tenhamos alguma felicidade. Esta água corresponde a termos moradia, alimentação adequada, e algumas roupas para o convívio social básico. Dali em diante, podemos aumentar nossa felicidade na medida em que enchemos o copo com alguns luxos a mais, como uma alimentação mais elaborada, uma casa mais espaçosa e bem decorada etc. O que Epicuro nos afirma, no entanto, é que de nada adianta continuarmos enchendo o copo: a água vai simplesmente transbordar, e a nossa felicidade continuará inalterada.

Assim, se associarmos a água deste copo às nossas riquezas materiais, nós veremos que a partir de certo limite, um limite bem menor do que costumamos imaginar, o mero acúmulo de dinheiro não nos garantirá mais felicidade alguma...

Se quisermos realmente ser felizes, é bom que saibamos que há algo que vale muito mais do que o dinheiro, algo que é realmente capaz de nos preencher de entusiasmo e alegria perenes: o amor – seguido da liberdade e da reflexão.

***

Bibliografia
Carta sobre a felicidade, a Meneceu, Epicuro (UNESP); As consolações da filosofia, Alain de Botton (Rocco); Epicuro e a felicidade, documentário de Alain de Botton para a BBC.

Vídeo
Este artigo serviu de base para o roteiro do vídeo O Jardim de Epicuro - A Felicidade no canal Conhecimentos da Humanidade do YouTube.

Crédito das imagens: [topo] Antal Strohmayer, O Jardim dos filósofos (1834); [ao longo] raph; Google Image Search.

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1.3.18

Uma crítica a Academia

Texto por Roberto Leon Ponczek, trechos da obra Deus, ou seja, a Natureza (SciELO). Os comentários ao final são meus.


De que serve a transmissão de pacotes de informações prontas, em hora e local marcados, se a maior parte do tempo o aprendiz permanece desatento às forças vitais que o cercam a cada instante? Esse adestramento para processar fórmulas preestabelecidas é muitas vezes confundido com conhecimento. Assim, torna-se necessária uma descentralidade do local convencional de aprendizado, como a sala de aula e os mestres com hora marcada. A descentralidade do universo [conforme defendida por Spinoza] requer também a descentralidade do aprendizado, e de seus instrumentos clássicos que, muitas vezes, ao invés de facilitar, constituem-se em instransponíveis barreiras ao livre fluir do verdadeiro conhecimento. Desta forma, estaríamos passando do paradigma de uma “pedagogia pensada e centralizadora do sujeito” para uma novo paradigma da “pedagogia filosofante, pensante e não apenas pensada”.

Outro ponto que carece ser questionado é o fato da maioria das escolas e academias ocidentais do pós-guerra querer transformar seus aprendizes em bibliotecas ambulantes, pretendendo que suas mentes sejam extensas memórias de arquivos bibliográficos. Cada vez menos ensina-se a pensar, e cada vez mais, em arquivar dados e referências bibliográficas. Os livros tornam-se obstáculos a serem transpostos, e os mestres seus oraculares intérpretes.

Julgo que, pelo contrário, o aprendiz deve ser estimulado a pensar sobre um texto, a dialogar com seus autores, sem para tal ter de recorrer a bibliotecas de dimensões babilônicas, respaldando-se numa bateria de referências, e perdendo-se num labirinto de citações de comentadores terceirizados. Consumou-se nas academias o hábito de exigir que o aprendiz respalde seu entendimento sobre um determinado texto, com a opinião de um sem-número de especialistas, como se seu primeiro entendimento intuitivo, possivelmente ainda não lapidado, não merecesse crédito, necessitando de álibis ou testemunhas para ser validado.

Entendo, inspirado em Spinoza, que é este conhecimento primeiro, e possivelmente ainda tosco, que servirá como um primeiro martelo com o qual se forjará uma segunda ferramenta mais lapidada, e assim sucessivamente. Um mestre esclarecido não descartará o conhecimento de seu aprendiz, ou criticará a precariedade de suas referências, por mais rudimentares que sejam. Existem artigos científicos com referências bibliográficas maiores que o próprio texto, como se isso fosse prova de embasamento teórico e metodológico!

Muitas vezes os trabalhos acadêmicos são julgados por sua bibliografia, e não pelo seu valor intrínseco. A leitura desses textos é quase sempre maçante, desencorajando qualquer um de seguir por suas labirínticas notas de rodapé e referências. Nem mesmo o autor deste texto, que ora o leitor tem em mãos, se desvencilhou totalmente da camisa de força imposta pelas normas acadêmicas... Gostaria, em breve, de poder escrever outro livro sem notas de rodapé e sem referências!

Jorge Luis Borges, em seu magistral conto Funes, o memorioso, relata a existência de um indivíduo capaz de memorizar todos os fatos e textos de jornais ocorridos ao longo de sua vida sem, contudo, ser capaz de relacioná-los entre si. Funes torna sua existência um arquivo morto de fatos irrelevantes, pois são textos irrelevantes, ideias ou eventos que não têm relação com o mundo que lhe deu origem, conferindo-lhes uma temporalidade. Nossos aprendizes são, muitas vezes, adestrados para serem os Funes da ciência.

Também não posso me calar diante da febre metodológica que assola, como epidemia, extensos setores das academias, induzindo os estudantes a escolherem trabalhos cada vez mais estreitos, para que caibam em um método dado a priori. Os alunos são desestimulados a abordar temas multidisciplinares, ou até mesmo interdisciplinares, e instados a seguir por estreitas trilhas monotemáticas que se encaixem em alguma metodologia preestabelecida. Será o método o soberano que deve determinar a extensão do tema, ou é a vastidão do tema que deve alargar o método? Afinal, uma bela foto deve ser recortada para que caiba no álbum, ou este é que deve ser adequado às dimensões da foto?

[...] As disciplinas científicas assim enquadradas nas academias comparam-se a castelos medievais cercados por fossos onde vicejam os crocodilos guardiões do feudo. As pontes levadiças são erguidas e abaixadas para permitir apenas a entrada e a saída dos súditos do castelo. A academia se divide assim em vários cantões feudais, cada qual concessionário de uma franquia temática, guardada a sete chaves em seu castelo unidisciplinar, delimitado pelo fosso do método e seus atentos guardiões. Professores e estudantes são orientados a permanecer nesses domínios rigidamente circunscritos, e aqueles que inadvertidamente querem cruzá-los, fatalmente serão abocanhados pelos afiados guardiões do castelo.

Na prática isso equivale a uma espécie de sentença de excomunhão velada a partir da qual os professores transgressores não conseguem bolsas de pesquisa ou de estudo para seus orientados, publicações em revistas importantes, ou ganhar qualquer tipo de concurso público. Criam-se, nas academias, autênticas franquias cada qual delimitando rigidamente como deve ser redigido, divulgado e ensaiado o “seu” tema franqueado. Não é incomum essas franquias temáticas desenvolverem extensos tentáculos que se alastram pelas agências de fomento, bancas examinadoras de teses e concursos, além dos conselhos editoriais das revistas especializadas.

[...] Para contabilizar e fiscalizar a produção acadêmica do corpo docente, tais como artigos, livros e demais trabalhos, criou-se um sistema de avaliação numérica (o Qualis, da Capes), como se a qualidade de um texto ou a originalidade de uma ideia pudessem ser mensuradas por números. Este sistema, que é sistematicamente utilizado pelos zelosos guardiões do castelo, fez surgir uma nova geração de professores especializados em construir seus currículos de acordo com esses cânones numéricos, extraindo a máxima pontuação possível.

Este livro, que ora o leitor folheia, em alguns aspectos trafega na contramão de quase tudo que se faz nas academias. Nele não há fronteiras rígidas entre as várias disciplinas, como a Matemática, a Física e a Pedagogia, e elas se entrelaçam desrespeitando deliberadamente os recortes metodológicos, cultuados como dogmas intocáveis pela academia. O livro é longo demais para os padrões atuais, pois hoje vários autores preferem se associar em coautoria para escrever artigos curtos produzidos em série, contabilizando, nas agências de fomento, um título para cada um.

[...] Na vertente contrária, esta é a obra de um único autor solitário que a produziu num longo período de gestação, praticamente recluso em sua casa de campo, totalizando em seu favor apenas um único trabalho em vários anos. Quando nas academias brasileiras vive-se hoje uma febre delirante por publicação e pontuação, este texto foi pensado e escrito sem compromissos de espécie alguma com grupos de pesquisa financiados pelas agências fomentadoras e sem preocupação de pontuação em plataformas oficiais de curriculae vitae. Apesar da inquisição velada e de todas as dificuldades impostas pelas academias, preferi pensar sem fossos nem recortes, estabelecendo relações e organicidade entre as várias disciplinas de saber que devem se entrelaçar para chegar ao autêntico e verdadeiro conhecimento científico.


Comentários
“Na contramão de quase tudo que se faz nas academias”, como bem definido pelo autor, o professor de Física e grande estudioso de Filosofia e conhecimentos gerais nos traz uma obra monumental que não apenas associa de forma profunda o pensamento de Spinoza às buscas existenciais e científicas de Einstein, como se arrisca a afirmar, com suas próprias palavras, onde eles parecem ter acertado e onde parecem ter errado, sempre se embasando no conhecimento científico mais atual, como a Mecânica Quântica.

Não é fácil, decerto, esmiuçar de forma tão aprofundada os axiomas “lógicos e geométricos” da Ética de Spinoza, mas eu penso que Ponczek acabou por nos presentear com uma das análises mais profundas e honestas da obra do grande pensador holandês, e de todo o fruto que ela gerou no mundo. Que isso tenha sido feito dentro do atual mundo acadêmico, é quase um milagre. Por isso preferi trazer a vocês essa crítica embasada e honesta de um acadêmico que se sente profundamente angustiado com o estado atual de nosso ensino. Ponczek é, antes de mais nada, um professor, e um professor deseja ensinar seres que interpretam o mundo, não máquinas enciclopédicas, autômatos recitadores de Wikipédia.

Recomendo a todos os admiradores de Spinoza, de Einstein ou, simplesmente, dos grandes conhecimentos da humanidade, que confiram a sua obra, um e-book em download gratuito na Amazon.

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Crédito da imagem: Ponczek (foto achada no Facebook, não lá muito acadêmica...)

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