Reflexões políticas, parte 2
A tradição em reforma
Se imaginarmos a linha que liga os extremos de esquerda e direita econômica (dos quais falei no último artigo) como um plano horizontal, e uma outra linha vertical cortando esta primeira ao centro, em que no topo temos um extremo de totalitarismo governamental, onde geralmente a democracia é inexistente ou precária, e na ponta inferior, uma forma de governo plenamente democrática, que garante todas as liberdades individuais de seus cidadãos, então chegaremos a uma das versões do Diagrama de Nolan (ver a imagem acima).
David Nolan, um ativista político americano, criou este diagrama em 1969. Nolan via uma esquerda progressista que defendia somente as liberdades individuais, mas era favorável a intervenções do Estado na economia, ao mesmo tempo em que percebia na direita conservadora de seu país uma defesa somente da liberdade do Mercado, e não exatamente dos indivíduos (por exemplo, a união estável entre casais homossexuais não era então reconhecida pela lei). Assim, Nolan adicionou mais um eixo na divisão entre esquerda e direita, como forma de divulgar as ideias do libertarianismo, que defende uma regulação estatal mínima tanto na economia quanto na vida pessoal de cada cidadão [1].
De certa forma, é impossível defender a democracia plena sem concordar em alguma medida com o libertarianismo, mas antes de falar de totalitarismo e liberdade, eu vou falar de conservadorismo e progressismo:
Podemos considerar que desde os girondinos e jacobinos, na Revolução Francesa, o mundo político (principalmente o ocidental) tem avançado em suas reformas passo a passo, ora estimulado pelos reformistas, ora refreado pelos tradicionalistas. Obviamente que os tradicionalistas são conservadores e defendem que as reformas sejam feitas da forma mais lenta e gradual possível, preocupados que são com a possibilidade de que uma série de passos descuidados a frente venham a precipitar todo o sistema num abismo do qual necessitará de muitas gerações para escapar; os reformistas, pelo contrário, acreditam que as mudanças vêm ocorrendo de forma muito lenta, e que o progresso social deve se dar de forma mais urgente, ainda que alguns passos apressados eventualmente possam nos levar para algumas armadilhas pelo caminho.
É muito importante notar que ambos os movimentos creem que é necessário o aprimoramento das leis e das condições sociais, eles tendem a discordar apenas na velocidade em que tais mudanças devam ocorrer para que elas de fato funcionem da melhor forma. Quando compreendido desta forma, não há a menor razão para que o debate entre conservadores e progressistas se dê de forma dogmática, crendo que o pensamento oposto está intrinsecamente errado: é provável que o melhor caminho surja precisamente do consenso entre eles. A isto chamamos, mais uma vez, Política.
Vamos citar um exemplo contemporâneo: em junho de 1971, o então presidente dos EUA, Richard Nixon, afirmou numa conferência de imprensa que o abuso do uso de drogas ilegais era o “inimigo público número um” dos Estados Unidos. A chamada Guerra às Drogas, que já estava em curso, se radicalizou bastante nas décadas seguintes. Com o passar dos anos, entretanto, muitos pensadores progressistas começaram a alertar para o fato de que ela se parecia muito mais com uma espécie de “enxugamento de gelo”; que, além de não resolver definitivamente o problema, ainda transferia muitos recursos para o crime organizado, conforme havia ocorrido no período da Lei Seca, quando os americanos continuaram consumindo bebidas de um jeito ou de outro, e Al Capone se tornou um criminoso célebre pelo seu poder.
A ideia dos progressistas não era afirmar que o consumo de toda e qualquer droga deveria ser liberado e estimulado mas, pelo contrário, de que as dependências químicas seriam melhor administradas e tratadas pelos médicos do que pelos policiais. Para quê, afinal, gastar imensos orçamentos em segurança pública somente para impedir que um cidadão se aproxime das drogas se a experiência milenar da relação entre seres humanos e substâncias do tipo tem nos dito que isto provavelmente jamais irá acabar?
Ora, os primeiros progressistas que vieram com este papo foram demonizados, como é comum ocorrer com todos aqueles que se erguem para criticar o senso comum: “as drogas fazem mal!”... Foi preciso que algumas décadas se passassem para que, tal qual água mole batendo em pedra dura, o seu discurso começasse a ser assimilado pela sociedade em geral. Hoje, temos muitos políticos que foram convencidos de que a Guerra às Drogas, afinal, tem feito mais mal do que bem – um dos que mudaram de ideia foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Hoje, muitos estados americanos seguiram os exemplos de diversos países europeus, e legalizaram a venda da maconha, que sozinha respondia por bem mais da metade do lucro dos traficantes ilegais. O país que inaugurou a Guerra às Drogas hoje tem dificuldades em saber o que fazer com tanto dinheiro arrecadado nos impostos deste novíssimo mercado. Uma boa dica seria: investir em clínicas públicas de tratamento de dependentes químicos. Assunto resolvido.
Mas é claro que tal mudança não se deu da noite para o dia, e passou por anos de debates e da cuidadosa elaboração de planos de legalização. É possível que em muitos países a liberação da venda da maconha tenha aumentado, e não diminuído, o número de usuários, mas o que não podemos dizer é que o tratamento dos dependentes piorou – afinal, nesses países hoje eles são considerados doentes, e não criminosos.
No exemplo acima falamos de um debate entre progressistas e conservadores que varou décadas, mas que no fim das contas parece ter chegado a um consenso vantajoso para todas as partes envolvidas. Provavelmente, daqui a mais algumas décadas, o período em que a maconha foi considerada proibida será lembrado da mesma forma que hoje é lembrada a Lei Seca. Hoje, é ponto passivo entre a grande maioria dos conservadores que a Lei Seca foi um erro.
Isto não quer dizer, no entanto, que os conservadores estarão sempre errados, e que a tendência natural da história seja comprovar os seus equívocos: mesmo no campo das drogas, há muitas delas potencialmente muito mais perigosas que a maconha, e que não respondem sozinhas por um lucro muito expressivo do tráfico. É possível que elas devam permanecer proibidas, e assim, percebemos que os conservadores também tinham razão. Após essa reflexão, podemos afirmar com certa convicção que um mundo sem conservadores seria tão trágico quanto um mundo sem progressistas.
O mesmo talvez não possa ser dito dos extremistas reacionários, revolucionários e totalitários, mas fato é que estes também compõem o nosso espectro político de dois eixos. Mas este artigo já se estendeu o suficiente, precisarei usar o próximo para falar deles...
» A seguir, como exterminar o debate e sempre ter razão.
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[1] Os críticos de Nolan chamam o seu Diagrama de Propaganda de Nolan, mas creio que em geral ele é muito útil para esclarecer as ideias políticas que não tem a ver com economia.
Crédito das imagens: [topo] raph (minha adaptação do Diagrama de Nolan); [ao longo] Google Image Search (Al Capone)
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