Em casa no universo
O melhor que podemos fazer de nossa vida é empregá-la em alguma coisa mais duradoura que a própria vida.
A primeira vez em que ouvi falar do autor desta frase, William James, foi num livro póstumo de Carl Sagan, famoso astrofísico e divulgador de ciência do século XX. Ao organizar o livro com a transcrição de algumas palestras do marido já falecido, Ann Druyan o intitulou Variedades da experiência científica; segundo ela, como forma de homenagem a obra prima de James, Variedades da experiência religiosa.
Sagan admirava a definição de religião de James, “um sentimento de estar em casa no universo”, e a citou na conclusão de um de seus livros mais conhecidos, Pálido ponto azul. Mas as conexões entre Sagan e James não param por aí, ambos foram seres plenos de espiritualidade, e grandes investigadores do Cosmos. Talvez a diferença primordial entre o cientista e o psicólogo seja a de que o primeiro olhou, sobretudo, para as estrelas mais distantes, enquanto que o último tratou de desbravar os astros internos da mente e da alma humanas. Há espiritualidade suficiente em ambos os casos.
Apesar de ser considerado “um dos pais da psicologia moderna”, James costumava se sentir mais a vontade referindo-se a si mesmo como um filósofo. Embora a Academia se esforce para esquecer, foi também um grande estudioso da parapsicologia (de fato, pode-se dizer que foi um de seus fundadores) e, particularmente, do misticismo.
O seu Variedades da experiência religiosa é um estudo denso e profundo da mente e da alma de diversos místicos que passaram pelo seu olhar cuidadoso. Apesar de se encontrar muito longe dos costumeiros extremismos religiosos, focava suas pesquisas exatamente naqueles que passaram pelas experiências mais “radicais” no campo religioso, citando casos como os de São João da Cruz e Santa Teresa D’Ávila.
Mas, embora tratando dos astros internos, o seu método de estudo se aproximava tanto de um método científico, e suas análises eram tão profusas em racionalidade e lógica, que não é mesmo surpresa que Sagan tenha sido um de seus entusiastas, assim como alguns dos grandes intelectuais do século XX, entre eles Émile Durkheim, Edmund Husserl, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein.
Já em sua época, na transição dos séculos XIX e XX, James se esforçava para combater o materialismo científico, não num sentido de menosprezar a ciência e o empirismo, mas antes num sentido de reconhecer que a experiência mística e religiosa é de fato algo real e profundamente impactante na vida dos seres, particularmente daqueles que realmente praticam a religião. Também em sua época, James já esboçava as bases do conceito de inconsciente, que ainda seriam aprofundadas por grandes sucessores, como Sigmund Freud e Carl Gustav Jung.
Em A Vontade de Crer, também a transcrição de uma de seus conferências, dirigida aos grêmios filosóficos de duas universidades americanas (Yale e Brown), James foca exclusivamente na defesa da importância da fé religiosa, e da crença em geral, como ferramentas vitais da mente para galgar grandes conquistas. De certa forma, se nunca ninguém houvesse acreditado em nada sem antes obter comprovação empírica, e se diante de grandes desafios todos os homens e mulheres se resignassem ante as perspectivas de fracasso, talvez nem houvesse uma civilização de pé.
É óbvio que a capacidade de crer, e mais profundamente, a vontade de crer, desempenham papéis vitais em nossas vidas, ainda que muitos não queiram admitir. Nem sempre, é claro, todas as crenças serão racionais. E quase sempre, igualmente, encontraremos aqueles que exploram as crenças alheias. Mas nada disto impede que existam seres que conseguem se observar, se compreender, e viajar dentro de si, e encontrar tesouros e mistérios grandiosos, imateriais, e além de qualquer descrição que possa ser dada somente por palavras.
James foi, afinal, um daqueles raros homens que soube transitar com igual destreza entre a Academia e o Templo, entre a racionalidade e a espiritualidade, entre o empirismo e a subjetividade. James estava, de fato, em casa no universo. Mas o seu universo não se resumia ao que residia lá fora. Ele sabia, pois também contemplou tal caminho, que haviam espaços infinitos, ou quase infinitos, também dentro de nós.
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Texto escrito para o Epílogo de A Vontade de Crer, de William James, o próximo lançamento das Edições Textos para Reflexão. Este muito especial, por se tratar da primeira tradução da mais nova integrante de nossa equipe: Hipátia (pseudônimo de Kamila Janaina Pereira), também colaboradora do blog Queremos Querer.
Crédito da imagem: Google Image Search (William James)
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