Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.
[Raph] A democracia surgiu na Grécia antiga, no século V a.C. Como a própria etimologia do termo sugere, a democracia é uma forma de governo que se propõe a ouvir a voz do povo, da maioria do povo, e não somente de uma elite (seja ela monárquica, aristocrática ou religiosa). Neste sentido, a política nada mais é do que a atividade de tentar criar o melhor consenso possível entre grupos com ideias opostas, através do diálogo, sempre visando o bem da pátria.
Como ideias opostas sempre existirão, a chamada polarização política é não somente inevitável como por vezes bem vinda: quando a política é bem conduzida, novas ideias surgem da faísca do choque entre as pedras. No entanto, há momentos em que a polarização é tão radical que o choque das pedras faz com que tirem lascas umas das outras, sem produzir nada de bom, e paralisando o próprio governo.
Nós já vivemos mais de duas décadas de polarização entre dois partidos, PT e PSDB, e parece que já estamos num estágio de esgotamento. Aparentemente, ninguém quer mais chegar a um consenso, apenas destruir a imagem um do outro, custe o que custar...
Ainda assim, vai eleição e vem eleição, todo o esquema eleitoral, do financiamento as coligações, parece estimular cada vez mais tal cenário, para que siga exatamente como já está posto. É precisamente aqui que coloco a minha última questão: a quem interessa a manutenção desta polarização PT vs. PSDB?
[Teo] Tanto o PT quanto o PSDB possuem uma política mais centralista. Ambos concordam quanto a uma posição de social democracia, e de que as instituições do capitalismo não devem ser revolucionadas, mas transformadas ou melhoradas (dependendo da posição respectiva de cada partido) a partir de reformas graduais através de políticas de Estado. No entanto, ainda que próximos, tais partidos se enviesam em sentidos distintos em suas matrizes ideológicas.
O PSDB faz uma posição de centro tendendo mais para a direita, flertando com ideias neoliberais, como a redução do Estado, a redução das condições de bem-estar social em função do mercado e a privatização de áreas fundamentais à nação. Quanto ao último, pode se questionar como este processo ocorrido no governo PSDB foi permeado por denúncias de corrupção. Entregues à gestão privada, os serviços não melhoraram, seus preços subiram acentuadamente e se traduziram em problemas para o Judiciário. A receita neoliberal, em nome de índices econômicos de fachada e o lucro exorbitante das grandes empresas estrangeiras, deixa por onde passa como rastro o crescimento abismal da desigualdade social.
O PT, por sua vez, tem uma posição de centro tendendo para a esquerda. Economicamente assumiu um neodesenvolvimentismo, buscando valorizar a produção nacional e tornar o país menos refém do capital estrangeiro. Associou-se com países latino-americanos de forma a criar um eixo cultural e econômico alternativo ao ditado pela dominação dos países europeus e dos Estados Unidos. Socialmente buscou implementar projetos sociais que visassem à erradicação da miséria. Ainda assim, costuma-se ouvir que o PT traiu a esquerda. Por quê?
Para chegar ao poder o PT associou-se com grupos que são dominantes no país desde a República Velha. A implementação de seus programas sociais foi sempre tacanha, na medida em que não podiam ameaçar completamente os interesses desses grupos. Na luta por direitos os avanços sempre foram lentos demais, e estão ainda longe do que se esperava. Em resumo, pode-se dizer que para chegar ao poder o PT se vendeu ao instituído, fez acordos que para mantê-lo em sua posição o fez refém daqueles que deveriam combater. O PT nunca representou uma ameaça às instituições do capitalismo, e inúmeras vezes jogou muito bem segundo suas regras na promessa de um reformismo tardio.
A resposta à recente crise com austeridade apenas demonstra que Dilma está mais próxima de Margaret Thatcher do que, por exemplo, Rosa Luxemburgo. Isto é muito diferente das tentativas de grupos como o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha que possuem a posição de que não é o povo que deve pagar pela crise dos grandes capitalistas, mas eles próprios.
Por trás desta disputa binária reside ainda o PMDB, o maior partido brasileiro mesmo sem nunca ter elegido nenhum presidente. O PMDB possui alianças extremamente maleáveis segundo seus interesses (na última eleição no Rio de Janeiro, por exemplo, o governador pemedebista apoiou os dois candidatos à presidência simultaneamente no segundo turno). Respondendo mais diretamente à questão principal do Raph, cabe lembrar que quem cresceu com a disputa PT e PSDB nas últimas eleições foi o PMDB, se tornando hoje maioria no Senado. De certo modo, o PMDB está sempre do “lado vencedor” em seu jogo político a favor dos interesses privados que os beneficiam e os financiam no poder.
Nos últimos anos é possível perceber uma crise do centro em se mostrar capaz de lidar com os problemas estruturais ao nosso modelo socioeconômico. A democracia representativa no modelo instituído igualmente vem ganhando descrédito. Deste modo, alas mais radicais de ambos os lados tem crescido. Na direita, vemos o crescimento dos grupos fundamentalistas (como a bancada evangélica) e reacionários (como Bolsonaro e afins). Na esquerda, crescem grupos como o PSOL, que mostram uma saída possível aos nossos problemas institucionais pela esquerda crítica.
Radicalismo por si mesmo não é o problema. Em tempos de uma política centralista que não apresenta nenhuma perspectiva de mudança, colaborando com o instituído, atitudes radicais são o que pode fazer alguma diferença. Mas mesmo em posições radicais, o diálogo é sempre fundamental na medida em que é a partir dele que podemos produzir conscientização e agenciamentos políticos. E justamente diálogo é o que parece faltar a essa direita que luta contra os direitos fundamentais das mulheres, homossexuais, e por ai vai.
Faltam mudanças radicais. Mudanças que afetem à estrutura do poder instituído, sua distribuição e seu modo de reprodução. Pois comumente se fala em combater os males sociais, como a extrema desigualdade social e a corrupção, mas todas as ações se dão em nível superficial. Luta-se com os galhos secos de uma árvore morta, mas não se possui coragem para enfrentá-la pela raiz.
Neste sentido é que necessitamos de reformas estruturais. Reformas que atuem nos problemas estruturais do capitalismo, nos modos como a riqueza é distribuída, nos modos de produção, em seus meios de reprodução. Particularmente, minha visão é de que precisamos de uma esquerda radical (que não é sinônimo de comunismo, vale lembrar) que se oponha à ideologia hegemônica do capital e dialogue com as diferentes camadas sociais, tendo como agenda reformas estruturais. Uma esquerda que não esteja compactuada com o capital. Um posicionamento político que responda aos problemas da democracia não com fascismo, mas com novos modelos de organização social (como a organização social em rede), que visem aprimorar a democracia, e não dissolvê-la.
Hoje se fala da tão necessária reforma política, mas essas não são ideias essencialmente novas. O presidente João Goulart, apoiado por nomes como Leonel Brizola, já tinha na década de 1960 um projeto denominado reformas de base que incluíam reformas bancária, fiscal, urbana (contra a tão atualmente crítica especulação imobiliária), eleitoral, agrária e educacional. Desde a democratização da terra à valorização da educação, as reformas de base tinham como objetivo combater a desigualdade estrutural da sociedade brasileira. Antes de meros paliativos ou políticas populistas que nada alteram a hierarquia nacional, reafirmando apenas as relações de poder instituídas, as reformas de base miravam nos pontos cruciais e estruturais que determinam até hoje nossos problemas mais críticos.
Entretanto, tais medidas incomodavam à elite dominante e, apoiados pelos Estados Unidos, que viam no Brasil mais um de seus quintais, as camadas conservadoras instituíram o Golpe Militar em 1964 usando como desculpa a falsa e fajuta “ameaça comunista”, dando início a um período de sangrenta opressão, cujas consequências nefastas são sentidas até hoje, sobretudo na precarização da educação. Talvez se as reformas tivessem ocorrido, uma trajetória menos trágica existiria atrás de nós hoje.
Deste modo, assim como já começa a se desenhar na Grécia, e que se tentará estender também à Espanha, Portugal e recentemente Irlanda, apenas corajosas reformas estruturais podem mudar os rumos desse jogo viciado.
[Carvalho] Partindo de uma análise histórica das diversas experiências democráticas, em especial as mais recentes, amadurecidas e consolidadas no formato representativo, muitos filósofos e cientistas políticos tendem a concordar que o fenômeno da polarização entre alguns poucos partidos, geralmente dois, é recorrente e até mesmo necessário para o adequado funcionamento das modernas repúblicas constitucionais. Isso equivale a dizer que quando não há a disputa entre pelo menos duas forças políticas de interesses contrários, não há democracia, ou há apenas uma democracia doente.
Evidentemente, essa não é a única condição para manter a vitalidade democrática de uma nação. Existem mais elementos, tais como o império da lei, a separação entre os poderes, a liberdade de imprensa, e diversos outros. Cada um deles exercendo um papel específico e importante para o quadro geral. Basta retirar qualquer um e o edifício democrático logo começa a dar sinais de ruína. É mesmo uma harmonia delicada, de modo que o filósofo Olavo de Carvalho, para citar um exemplo, define a “democracia saudável” como “a administração bem sucedida de um conflito insolúvel, destinado a perpetuar-se entre crises e não a produzir a vitória definitiva de uma das facções”. E continua dizendo que “desde o início, a democracia tem encontrado no equilíbrio instável a regra máxima do seu bom funcionamento”.
O grande problema é que o mundo real é sempre mais complexo do que se espera. Assim, nos casos concretos, nas democracias “de carne e osso”, embora o conflito entre diferentes forças políticas sempre exista em algum nível, a forma como ele se dá nem sempre é compatível com o que prescrevem os teóricos e analistas da democracia. A experiência democrática que vivemos no Brasil desde meados da década de 1980 padece desse tipo de mal desde a sua criação, mas com duas fases bastante distintas: uma com a hegemonia do PMDB, quando as forças políticas mais relevantes coabitavam ou orbitavam o mesmo partido, mesmo com ideologias ou interesses conflituosos; e a outra com a polarização “para inglês ver” entre PT e PSDB.
A primeira fase representa o surgimento de um mecanismo que o professor Marcos Nobre chamou de peemedebismo, o qual ele descreve da seguinte maneira: “É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje. Pretende, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar, garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão, ganhará o direito de vetar qualquer deliberação ou decisão que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se organizou a partir da década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de união nacional”.
Resumida dessa forma, como se pode perceber, a tese é bastante interessante e sua ideia central me parece acertada. Isso não quer dizer, entretanto, que os detalhes do diagnóstico, do prognóstico e tampouco da terapia indicados pelo filósofo sejam consistentes. Ele insiste, por exemplo, na capciosa retórica esquerdista de aplicar o rótulo de “conservador” a tudo e todos que ofereçam resistências às propostas de transformação defendidas por ele próprio, aproveitando-se da confusão comum que se faz entre as acepções política e vulgar do termo. Mas não se pode negar, enfim, que, embora o fenômeno não seja tão maquiavélico quanto Nobre o pinta, o peemedebismo percebido por ele parece ser mesmo uma realidade e um defeito da política brasileira, no sentido de fechá-la em si mesma, relegando os atritos democráticos ao submundo.
A segunda fase, conquanto não tenha suplantado em definitivo a influência de fundo da primeira, começou, curiosamente, durante o mandato do então peemedebista Itamar Franco e tem como marco inaugural a implantação do Plano Real, sob os cuidados do ministro Fernando Henrique Cardoso, que na sequência viria a vencer as eleições presidenciais. Naquele momento foi inaugurada a polarização entre PT e PSDB, que predomina entre altos e baixos em todas as eleições presidenciais desde 1994.
Ao contrário do que acontecia antes, com o sufocamento das controvérsias no interior de um único partido hegemônico, o problema passou a ser o banimento das controvérsias relevantes para fora do ringue político, por meio do destaque de apenas dois partidos cujas divergências eram, e ainda são, apenas secundárias ou circunstanciais. Como bem disse o ex-presidente FHC, em 2004, em uma interessante entrevista concedida ao então senador do PT, Cristovam Buarque, “nós não discutimos nem disputamos ideologia, é poder, é quem comanda”. Ao que foi complementado por Buarque, “antigamente a gente brigava para a ideia da gente prevalecer; agora a gente briga para que o outro não seja dono da ideia da gente”.
PT e PSDB são ambos partidos “de esquerda”, sendo o primeiro um pouco mais estatista e controlador que o segundo. A retórica dos partidos socialistas mais radicais – como PSOL, PCdoB, PSTU e PCO – segundo a qual, “na verdade”, aqueles seriam “de direita”, não passa de mais uma balela na farsa democrática que vivemos há tantas décadas. Ora, se as concessões que esses dois partidos fizeram ao capitalismo significassem algum tipo de “direitice”, teríamos que colocar até Lênin e o Partido Bolchevique no mesmo saco, o que é, evidentemente, um disparate. O PT, aliás, com a sua versão “made in Cuba” da Terceira Internacional – cujos partidos membros atualmente governam 17 dos 21 países da América Latina – tem feito um lento mas eficientíssimo trabalho de consolidação da hegemonia esquerdista em todo o nosso continente. No fim das contas, portanto, a resposta não poderia ser outra, quem ganha com a polarização mequetrefe da nossa política nos últimos vinte anos é, sem sombra de dúvida, a esquerda, em especial, infelizmente, a sua vertente de tendências totalitárias.
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Esta foi a sexta e última pergunta desta série. Agradeço mais uma vez aos participantes pela generosidade e o entusiasmo com que responderam questões marcadamente complexas. Quando esta série voltar a aparecer aqui no blog, será com os meus comentários gerais acerca de boa parte da gama de assuntos abordados... Até lá! (Raph)
Crédito das imagens: Guilherme Bandeira
O debate continua nos comentários, não deixem de acompanhar. Marcadores: Alfredo Carvalho, Brasil, democracia, Entre a esquerda e a direita, Igor Teo, política