O problema do niilismo: a reação romântica
Como vimos no texto anterior, o racionalismo apostava que o avanço da razão instrumental e o aprimoramento da técnica tornariam a vida humana mais satisfatória. Os primeiros racionalistas acreditavam – e muitos atuais ainda compartilham a crença – que os problemas da humanidade eram apenas uma questão técnica. O progresso tecnológico e o avanço do conhecimento científico seriam cada vez mais capazes de resolver os problemas humanos, conduzindo-nos a uma vida plena e feliz.
O que vemos na realidade é justamente o contrário. O mundo da razão, embora tenha nos trazido maiores facilidades, conforto e segurança, não foi capaz de solucionar os problemas existenciais da humanidade. Ao invés disso, o problema do niilismo se tornou mais evidente. Índices de depressão, ansiedade e outras questões de saúde mental são cada vez mais alarmantes na modernidade.
Se, por um lado, o racionalismo avançou na instrumentalidade e no domínio da natureza, por outro apartou o ser humano das condições que dotavam sua vida de sentido. O espírito racionalista desfez-se das antigas tradições, e com elas, o senso de comunidade e o pertencimento do homem a uma história cultural, racial e familiar.
A mudança da vida rural para a urbana também implicou numa profunda transformação na vida social e subjetiva. Primeiramente, pelo contato com as grandes aglomerações. Diferente da vida rural em que o homem vivia em pequenas comunidades cujos membros pensavam mais ou menos de maneira igual, nas grandes cidades o homem passou a estar em contato com uma maior diversidade quanto aos modos de existir. No entanto, nosso funcionamento é mais tribal do que gostaríamos de admitir. Temos o desejo de formar pequenas comunidades de pessoas afins, que pensam como nós e com quem temos alguma identificação. Nossos amigos. O que faz com que nos grandes aglomerados urbanos, grande parte das pessoas seja na realidade indiferente para nós, e que nós sejamos indiferentes para elas.
O fenômeno da solidão urbana tornou-se cada vez mais sensível. Diante de muitas pessoas, o homem passou a se sentir cada vez mais sozinho, já que a presença de muitas pessoas, antes de representar reais companhias, recorda que a maioria delas pouco tem a ver com ele. O homem se sente sozinho numa multidão. Consequentemente, cresce a sensação de indiferença entre as pessoas. Se no mundo rural todos são conhecidos e próximos, na vida urbana cada um deve seguir sua vida sem muita proximidade, pois a aproximação repentina logo é desconfiável quanto às intenções.
A mudança do modo de vida rural para o urbano também alterou a relação do homem com a natureza. Se antes o homem possuía uma conexão com a terra em que nasceu, terra em que trabalhava, com os animais daquela região, a natureza se tornou cada vez mais estranha ao espírito urbano. O homem perdeu o senso de pertencimento a terra, que antes representava o lar histórico para si e seus familiares, e que agora lhe pertence apenas enquanto paga o aluguel. Isto quando não precisa mudar de território em busca de oportunidades de estudo e trabalho. Já aos animais resta viverem confinados a pequenos espaços ou condenados a serem pragas urbanas a ser exterminadas.
Essas transformações criaram no homem a sensação de alienação em relação à natureza, esta que fora tão importante nas sociedades tradicionais. A natureza – em sua magnanimidade – relembra o homem de uma transcendência maior do que si mesmo. Tal é o sentimento de reverência e profundidade que temos ao admirar uma grande montanha, uma bela paisagem litorânea ou uma floresta cheia de vida. Todo o contato do homem com a natureza dá-se hoje, de modo controlado, reduzindo os riscos que a natureza pode representar, lembrando-nos muito pouco de sua magnanimidade.
Assim como a instrumentalidade dominou a relação do homem com a natureza, ela também tem se apoderado das relações entre pessoas. É cada vez maior a queixa de que as relações modernas são excessivamente utilitárias, marcadas por investimentos pessoais pragmáticos e que pouco atendem as necessidades emocionais mais profundas do ser humano.
O homem moderno, alienado do contato humano e da natureza, encontrou no mundo da razão – o mesmo que prometia através do avanço da técnica o fim de tudo que representava dor e sofrimento: doenças, conflitos, mortes desnecessárias – uma angústia tal qual nunca antes havia experimentado.
No mundo tradicional, o homem lidava com a angústia através de uma crença metafísica reconfortante. Os mitos, lendas e narrativas religiosas estabeleciam uma ordem no mundo, um sentido para os acontecimentos, e assim o homem se sentia amparado pelos seus símbolos. O racionalismo científico demonstrou que os mitos não eram reais, e a fé parecia primitiva em relação à potência da razão. O Universo se tornou explicável cientificamente, mas ausente de qualquer sentido ou ordem. O mundo e a vida existem por alguma aleatoriedade, e nada possui um sentido maior do que aquele que nos iludimos em imaginar. No entanto, confrontar-se com este niilismo pode ser muito angustiante.
Se os conservadores condenam o niilismo, fonte do sentimento de angústia e desamparo, buscando retornar a um modelo de vida tradicional, os racionalistas acreditam no uso da razão instrumental para suplantar os problemas da existência. Para um racionalista, em algum momento a ciência alcançará o progresso tecnológico que solucionará as dores humanas. Testemunhamos isso quando as neurociências prometem a cura para os problemas existenciais através da manipulação das transmissões bioquímicas do cérebro. Como se, ironicamente, dissessem: se a vida não pode ser vivida com sentido, ela pode ser dopada com medicamentos psiquiátricos que vão nos anestesiar e provocar uma sensação de felicidade produzida.
Para muitos racionalistas parece uma solução perfeita. No entanto, para a maioria das pessoas isso soa como uma distopia digna de ser retratada num episódio da série Black Mirror. Um mundo desprovido de experiências autênticas, cuja única saída é anestesiarmos nossas angústias.
A ciência foi impotente para resolver os problemas existenciais. E por conta da sua indiferença às questões de valor, ela pouco pode nos auxiliar com questões éticas. Sabemos, por exemplo, que existiu uma intensa atividade científica no regime nazista, e a própria ciência já foi utilizada para justificar as maiores atrocidades. A técnica e a razão instrumental são armas cegas nas mãos de grupos que detém o poder e podem agir a despeito de qualquer compromisso ético.
É como uma reação a esse mundo triste fundado pelo racionalismo que surgiu o movimento artístico-filosófico do romantismo.
Os problemas existenciais, diriam os românticos, são patológicos – isto é, da lógica do pathos, das paixões. Lidar com o ser humano, e todas suas questões existenciais, é lidar com as paixões humanas. Campo no qual a ciência e a razão instrumental são inférteis.
O romantismo questionou a centralidade da razão. O homem moderno criou a ideia de si mesmo como um ser extremamente racional, mas tal racionalidade raramente é encontrada na maioria dos seus comportamentos. Filósofos como Schopenhauer e Nietzsche entendiam que o ser humano é governado por forças, vontades e instintos mais profundos. O homem é movido pela paixão, não pela razão. Os racionalistas, ao promoverem um mundo instrumental, destituíram o lugar das paixões, que foram reprimidas em nome de ideais supostamente racionais.
Segundo os românticos, os racionalistas estavam iludidos por suas crenças supostamente racionais. A razão, embora importante ao homem, não é o principal norteador do comportamento humano, mas está subordinada às paixões. Um racionalista é assim alguém que se crê racional, mas em seu íntimo está motivado por um afeto que o cega de sua própria irracionalidade.
O espírito romântico representou a rebeldia e o inconformismo com a incapacidade do racionalismo em oferecer o progresso que havia prometido. Foi também uma tentativa de entender e aceitar a natureza humana como ela realmente era, sem as idealizações da razão e da fé.
Se os racionalistas estavam, pela ciência, excessivamente interessados na realidade externa, os românticos voltaram para si mesmos. O palco da investigação romântica era o próprio espírito humano, capaz das maiores realizações da sociedade, mas também dos atos mais mesquinhos. Através da arte, demonstrava-se a criatividade, o grotesco e o sublime. A literatura representava o drama humano, seus ideais utópicos e seus desejos paradoxais. O sonho e a fantasia foram valorizados como forças criativas. Os autores românticos foram assim os grandes fomentadores da vida subjetiva, de uma existência de grande profundidade interior.
Num mundo indiferente e solitário, utilitarista e burocrático, os românticos se dedicaram a buscar uma vida autêntica como forma de superação das angústias modernas. Mas o que seria a autenticidade? Para os românticos, somos autênticos quando agimos a partir de nossas verdadeiras paixões, para além das convenções sociais ou ideais racionalistas.
A paixão é um afeto irracional. Ela não pode ser explicada, e pouco se submete a moral ou às tradições. Os desejos humanos podem ser contraditórios e contrários – mas isso não significa que sempre sejam – às demandas que o mundo coloca sobre nós. Encontrar uma vida autêntica pode muitas vezes significar entrar em conflito com a sociedade, pensamentos moralistas e desejos de outras pessoas. Ousar enfrentá-los é visto pelo romantismo como o preço para o homem encontrar a sua felicidade.
Importante situar que paixão assume um significado para além de um relacionamento amoroso-romântico entre duas pessoas. A paixão é todo tipo de afeto que liga o homem a alguma coisa, fazendo-o lutar por ela. Sua paixão pode ser um trabalho, uma ideologia, uma filosofia, uma ética de vida, e por aí vai.
Sabemos da força que o homem adquire quando está apaixonado. Se apaixonado por um homem ou uma mulher, ele desafia as impossibilidades e impedimentos para conquistar seu amor. Se ama sua pátria, ele se atira contra o exercício inimigo, sacrificando sua própria vida em nome da bandeira que carrega. Quando ama uma tarefa, realiza-a por paixão, mesmo quando suas forças lhe esgotam.
Os românticos encontraram na paixão a possibilidade de dotar a vida de sentido e valor, sem necessariamente apelar para explicações metafísicas, como faziam as tradições religiosas. O romantismo encontrou no amor – a possibilidade de encontrarmos uma paixão que nos faça desejar a vida mesmo com suas dificuldades e fracassos – a superação do niilismo.
Nietzsche falava do amor fati, amar a vida que possuímos mesmo com suas imperfeições. Camus dissertou sobre um Sísifo feliz que, mesmo diante do absurdo de uma existência sem sentido, estava satisfeito pela possibilidade de estar vivo realizando alguma coisa. Os românticos desvelaram assim um outro aspecto do niilismo.
Se o niilismo negativo é conhecido pela destruição dos antigos valores, pela falta de sentido para a vida, o niilismo positivo é justamente a criação de novos sentidos para a existência. É porque o sentido da vida não está dado, imposto pelas tradições e os laços simbólicos do passado, que o homem é livre para se apropriar de sua história e criar seu próprio sentido.
Superar o niilismo converte-se assim numa tarefa existencial. No mundo moderno, como nos faltam os referenciais simbólicos do mundo antigo – que, se por um lado eram amparadores, por outro podiam ser grilhões ao devir humano – somos livres para encontrar nossos próprios referenciais e criarmos a nossa vida a partir de nosso desejo. Nasce a ideia de que a vida não está dada, ela precisa ser conquistada. É preciso que o homem enfrente suas angústias, percorra um caminho próprio e autêntico, adquira maturidade, e assim encontre a profundidade do seu ser.
Realizar essa tarefa é o que diferenciaria aqueles que vivem uma vida autêntica daqueles que não tiveram a coragem de dar esses passos. Ainda assim, o sentido é sempre singular. Não se trata mais de um sentido da comunidade, mas cada sujeito deve encontrar os seus próprios valores. E se não há mais uma moral imposta para nos guiar, diria Nietzsche, como encontrar valores autênticos? Segundo o romantismo, através dos sentimentos.
O romantismo entende que os sentimentos são os indicadores da nossa autenticidade. Para o homem ser feliz, ele deve se guiar pelos seus reais sentimentos. O romantismo assume assim uma valorização do mundo interno, da subjetividade e das emoções humanas, colocadas em primeiro plano na questão existencial.
Para nós modernos, profundamente influenciados por essa ideia, parece óbvio pensar assim. Mas é preciso dar um passo atrás e perceber que antes do romantismo essa ideia não fazia tanto sentido como nos parece hoje. Por exemplo, se na Idade Média um homem procurava um padre para saber se deveria se casar ou não com uma mulher, o padre iria orientá-lo a partir das escrituras sagradas. Hoje, se você procurar um psicólogo ou um psicanalista com a mesma questão, ele lhe fará perceber como seus sentimentos lhe orientam em relação a essa pergunta.
Não é mais na tradição que o homem deve encontrar as respostas para sua vida, mas no seu íntimo, em seus desejos, como um verdadeiro romântico. Tal visão se tornou tão popular que é possível que até mesmo um padre mais moderno respondesse como um psicólogo se lhe fosse feita essa pergunta. O romantismo subjetivista da modernidade substituiu a moral das sociedades tradicionais como norteador ético.
Se um homem está insatisfeito com seu casamento, num mundo tradicional ele seria obrigado a se responsabilizar pelos votos simbólicos assumidos. Hoje entendemos que o sentimento deve se sobrepor à moral. Não nos espanta que alguém insatisfeito peça divórcio se o casamento não lhe vai bem. Afinal, o sentimento é mais importante que o código social. Os próprios códigos sociais se tornaram mais flexíveis, refletindo que sim, os sentimentos são mais importantes que as leis simbólicas dos homens, da sociedade e dos deuses.
O romantismo deslocou assim o problema do niilismo para uma questão sentimental, uma questão de amor. Não o amor sexual – embora na maioria das vezes seja dele que se trata – mas do amor enquanto paixão por algo que eleve o homem acima de si mesmo, sendo capaz de dotar sua vida de sentido. O mote de um romântico moderno bem poderia ser “faça o que você ama e sua vida terá sentido”.
Finalmente, a modernidade pode ser definida como o conflito entre racionalistas e românticos, em que ambas vertentes filosóficas coexistem numa complexa síntese. Vivemos numa sociedade cada vez mais técnico-instrumental, apoiada no desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo em que ansiamos por um refúgio para as angústias do mundo tecnocrata na busca pelo amor, na esperança de uma vida mais autêntica, ideais evidentemente românticos.
Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.
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Crédito da imagem: Oleg Oprisco
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