Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.
De Obelix a Rasputin
Gérard Depardieu afirmou recentemente que “está pronto para morrer pela Rússia, pois lá as pessoas são fortes, e não tolas como os franceses”. Ele não estava brincando. Apesar de ter nascido na França, desde 2013 adquiriu a cidadania russa, e abandonou definitivamente sua terra natal.
O premiado ator, muito lembrado por sua atuação como Obelix nos filmes de Asterix, na verdade não parece ter nada contra a cultura francesa em geral, mas sim uma enorme preocupação com os seus rumos políticos. Na prática, o que fez Depardieu abandonar os papéis frugais franceses e encarnar russos mais misteriosos, como o místico Rasputin, foi algo um tanto quanto prático: ele queria pagar menos impostos.
Apesar de ter origem humilde, Depardieu fez fortuna como astro do cinema europeu. Mas não foi só: ele também se tornou um grande empreendedor, dono de diversos vinhedos e restaurantes, com cerca de 80 empregados em sua folha de pagamento.
A ironia da coisa toda é que Obelix se mudou da França para a Rússia para fugir do... socialismo! Ou pelo menos é assim que ele classifica a ideologia política do atual governo de François Hollande, e a sua proposta de taxar grandes fortunas. O projeto do presidente francês foi vetado pelo Tribunal Constitucional de seu país, mas somente a possibilidade de haver passado, e que todos os franceses com renda anual acima de um milhão de euros fossem taxados em 75%, já foi motivo suficiente para Depardieu rumar para Moscou, com o aval do presidente russo, Vladimir Putin.
Estima-se que na Rússia ele não vá pagar mais do que 13% de imposto, podendo chegar a míseros 6%! E depois dizem que a Rússia é comunista...
Mas este exemplo de “fuga fiscal” passa longe de ser exclusividade da França ou de um ou outro milionário. Não importa se tiveram origem humilde e se beneficiaram do estado de bem estar social de seus países natais, a maioria dos europeus que se tornam milionários rapidamente se tornam irredutíveis defensores de baixos impostos. Taxar as grandes fortunas, então, soa quase como um ato terrorista.
Aqui no Brasil, apesar de previsto na Constituição de 1988, o imposto sobre grandes fortunas nunca passou de um “princípio de discussão” no Congresso. E, mesmo assim, sempre que o tema surge na pauta, há um verdadeiro exército midiático preparado para jogá-lo a lona o mais breve possível. Mesmo em época de pleno ajuste fiscal, falar em taxar milionários, neste país, é a heresia das heresias.
Mas é preciso reconhecer que, de fato, já existem muitos impostos no Brasil. Sobretudo para os pobres...
O imposto do champanhe
No “país do futuro”, aquele que sonha em ser uma “Suécia tropical”, temos sim uma alta carga tributária, assim como um retorno pífio nos serviços públicos que deveriam garantir o tal bem estar social “sueco”, como saúde, educação e transportes. Isso faz com que aqueles brasileiros que se consideram “classe média”, e que pagam escola e plano de saúde particular para a família, reclamem que “precisam pagar duas vezes pelo mesmo serviço”: uma pelo serviço precário que o Governo não presta, e outra pelo serviço em si, via rede privada.
Ora, disso tudo todos vocês devem saber, afinal não falei nenhuma grande novidade. De fato, isso tudo não está inteiramente errado, mas tampouco inteiramente de acordo com a realidade do país... Uma realidade, aliás, que dificilmente é mostrada nas grandes vias da mídia. Vejamos, ponto a ponto, o que precisa ser “acrescentado” aos fatos do último parágrafo:
1. O que é a tal classe média brasileira
A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República determinou em 2012 que a classe média brasileira tem renda familiar per capta entre R$291,00 e R$1.019,00. Muitos de nós encaramos tais valores como absurdos, mas isso ocorre sobretudo porque temos visto muitos filmes de Hollywood. Ora, a renda da “classe média” de um país é sempre relativa à renda média de seus habitantes. Nesse caso, tais valores equivalem à renda de famílias que recém saíram da miserabilidade, e é isso mesmo o que eles refletem: que a maior parte da população brasileira é pobre, muito pobre, se comparada às classes médias dos filmes americanos.
É muito difícil que uma família brasileira que consiga pagar escolas particulares para os filhos, e planos de saúde privados, seja efetivamente de “classe média”. Segundo a média do país, seriam famílias de classe média alta, ou ricas.
2. Nossos impostos são mesmo injustos, mas não da maneira que muitos imaginam
O que torna toda essa situação ainda mais grotesca é que, comparativamente a renda, é exatamente a tal classe média brasileira que arca com os maiores impostos, talvez os mais injustos de todo o planeta.
A taxa máxima do imposto de renda no país é de 27,5%. Nesse quesito, ainda estamos mesmo distantes de uma Suécia, onde ela pode chegar a 58%. Mas, da mesma forma, estamos abaixo de muitos países desenvolvidos, como Alemanha (51%), EUA (46%) e Coreia do Sul (41%), assim como de alguns de nossos vizinhos na América Latina, como Chile (45%) e Argentina (35%).
Ora, e como nossa carga tributária total é tão alta se nosso imposto de renda passa longe de estar entre os maiores do mundo? A resposta é o que torna nossos impostos tão injustos: os impostos indiretos, que são aplicados ao consumo (e não a renda).
É assim que vivemos num país onde um quilo de arroz ou feijão, uma geladeira ou fogão, e quase tudo o que há num supermercado, possuem impostos altíssimos e fixos, ou seja: tanto um milionário quanto um miserável pagam exatamente o mesmo imposto quando fazem as compras do mês ou precisam trocar um eletrodoméstico.
3. Para os ricos, há muitos impostos “simbólicos”
Segundo o abrangente estudo do economista José Roberto Afonso, A Economia Política da Reforma Tributária: o caso Brasileiro, somente o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, arrecada mais com o IPTU, ou seja, o imposto sobre o patrimônio imobiliário, do que toda a área rural do país, com todas as grandes fazendas e latifúndios de terra (ver pág. 9 do estudo). É isso o que chamo de “imposto simbólico”, algo que existe basicamente só para os fazendeiros poderem reclamar que também pagam impostos. Ora, se isso fosse revisado e atualizado, a própria reforma agrária talvez ocorresse naturalmente, sem grandes conflitos além da chiadeira geral dos latifundiários.
É por uma razão muito parecida que pagamos o IPVA, o imposto sobre automóveis, enquanto jatinhos particulares, helicópteros e lanchas luxuosas jamais foram taxadas. Mesmo o nosso imposto sobre heranças é irrisório perto do que é praticado em boa parte do mundo.
Todo o nosso sistema tributário reflete o nosso passado de colônia e de grandes coronéis: se antes a carga pesada do trabalho recaía sobre os escravos, hoje algo muito parecido ocorre com a nossa carga tributária, que pressiona muito mais as camadas pobres da população, enquanto faz cócegas nos realmente ricos, ou nem isso...
Levando tudo em consideração, a nossa carga tributária sobre os ricos ainda é maior do que a russa, mas ao menos aqui Depardieu poderia pegar uma praia e tomar uma caipirinha, ao invés de curtir uma sauna siberiana. Em todo caso, é certamente mais vantajoso para um milionário viver no Brasil do que na Suécia ou na França, ao menos a nível de pura tributação sobre a renda.
Mas a pior notícia é que, a despeito da melhoria do padrão de vida dos nossos miseráveis nas últimas décadas, com o Plano Real e a distribuição de renda (trunfos dos governos tucanos e petistas, respectivamente), a triste realidade é que a carga tributária veio se tornando com o tempo cada vez mais injusta, isto é, aumentou como um todo, mas aumentou bem mais para as camadas mais pobres (ver pág. 9 do estudo).
E, se após décadas de governos que se dizem de esquerda ou centro-esquerda, não houve nenhuma reforma significativa que pudesse ao menos aplainar um pouco tanta desigualdade tributária, fica cada vez mais difícil imaginar que a nossa geração ainda verá um Brasil com impostos mais justos.
Mas em algum iate caríssimo, ancorado em alguma belíssima praia do nosso litoral, eles estão celebrando o “país do futuro”... Quanto será que pagaram de imposto no champanhe? Pouco lhes importa.
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Crédito da imagem: Rasputin/Divulgação (Gérard Depardieu no papel de Rasputin)
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