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Este artigo pretende ser uma análise filosófica e espiritualista do filme Blade Runner 2049, aqui não irei me focar especificamente em aspectos técnicos ou artísticos (embora a direção de Denis Villeneuve seja belíssima), mas antes na minha própria análise pessoal da simbologia do filme. Obviamente, o texto a seguir contém spoilers que podem atrapalhar a experiência de se assistir a obra pela primeira vez. Assim sendo, se ainda não a viu, recomendo enormemente que vá assistir antes de prosseguir nesta leitura.
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Pistis Sophia
Ainda no gnosticismo, num dos evangelhos considerados apócrifos há uma referência a Pistia Sophia como “a Toda Progenitora”, ou seja, a criadora de todas as coisas da alma. Sophia, que também quer dizer “sabedoria”, é também muitas vezes vista como o aspecto feminino de Deus, ou a Alma ela mesma, isto é: a Alma do Mundo.
Segundo algumas vertentes gnósticas, é de Sophia que vieram todas as almas, mas infelizmente acabaram aprisionadas no mundo do Demiurgo, o mundo material, e o equivalente a Jornada do Herói de cada alma individual seria justamente, através da gnose espiritual, conseguir retornar para sua casa, a Grande Alma.
Ora, quando K. vai investigar o orfanato onde teria crescido a criança que procura, acaba tendo uma experiência de rememorar algo que supostamente havia sido implantado em seu cérebro de replicante: uma memória de quando era criança, sendo que ele teoricamente nunca havia sido criança. Ao encontrar o objeto que havia escondido na época de sua memória, um pequeno cavalo esculpido em madeira, no mesmo local, só que no mundo real, K. prontamente passa a considerar que ele mesmo poderia ser a criança, isto é, que ele próprio era o milagre que estava buscando.
Mas ele duvida, a memória poderia ser falsa ainda assim, e tudo poderia ser algum complô estranho. Assim, K. vai até a designer de memórias de Wallace: Dra. Ana Stelline, uma freelance que trabalha fornecendo as memórias infantis mais realistas possíveis para a nova linha de androides. Ao encontrá-la num galpão hermeticamente vedado, K. descobre que a designer havia nascido com uma doença grave (que lhe conferia baixa imunidade), e que havia passado boa parte da vida naquele galpão, isolada atrás de uma barreira de vidro. No entanto, naquele espaço puro, livre do peso e das doenças daquele mundo de chumbo, a designer, isto é, a própria Sophia, podia trabalhar livremente naquilo que sabia fazer melhor: criar belas memórias. Mesmo assim, memórias falsas.
Ocorre que K. pede a ela que analise sua própria memória, que não é exatamente uma memória feliz, e ela percebe que se trata de uma memória real, “pois memórias reais trazem sentimentos reais, e são facilmente identificáveis”. O estranho da cena toda é que, apesar de K. ficar transtornado com a confirmação de que sua memória era real, a própria designer parece ainda mais abalada que ele. Só saberemos o porquê na última cena do filme [1].
A terrível perfeição
Ainda segundo as antigas fontes gnósticas, uma das intepretações associa o Demiurgo a Samael, o Anjo da Morte, o Anjo Caído, o Deus Cego. O fato de Wallace ser inteiramente cego no filme apenas corrobora esta metáfora. Ora, Samael, tendo sido expulso do Céu, leva consigo sua hoste de “anjos perfeitos”, que assim atuam em seu nome. Obviamente que tais anjos são terríveis em sua perfeição, pois seguem as ordens do Demiurgo sem pestanejar, como seres sem alma, psicopatas. No filme, a personagem Luv é justamente um desses anjos, um anjo replicante, que segue o Deus Cego de forma dogmática.
Porém, tanto K. quanto Luv são fruto da nova linhagem de androides, e de certa forma ambos perseguem o mesmo milagre (a criança), ainda que por razões diversas. Outra questão interessante sobre ambos é que K., apesar de passar por fortes reações sentimentais em seu interior, praticamente não as demonstra; já Luv, que age sempre de maneira fria e calculista, por diversas vezes derrama lágrimas no filme, lágrimas que parecem tão artificiais quanto sua alma [2]. Impossível não reconhecer aqui, novamente, a dualidade entre nossos pensamentos materiais (Luv) e espirituais (K.); sim, pois como já disse Joseph Campbell, todos os mitos dizem respeito a nós mesmos.
A cena onde K. derrota Luv literalmente debaixo d’água é mais um simbolismo de nosso inconsciente: o pensamento materialista não foi extirpado de nós, continua lá no fundo, mas agora é nosso lado espiritual que surge do inconsciente para dar real significado a vida. O monstro terrível, angelical e sedutor, foi enfim domesticado – K. é o herói a assumir o timão de sua própria embarcação.
Deckard, o Ancião
Em sua longa investigação, K. acaba descobrindo que a mãe replicante era Rachel, a personagem pela qual Deckard, o Blade Runner do primeiro filme, se apaixona. Eventualmente K. parte para encontrar Deckard escondido num cassino abandonado numa zona de alta radiação, onde teoricamente não habitam humanos. Seguem-se algumas das cenas mais belas do cinema neste nosso século, e eles eventualmente se encontram. Inicialmente Deckard tenta se livrar de K., mas acaba sendo convencido de que ele viera para ajudar.
Nesta altura K. acredita que Deckard é seu pai, mas não chega a contar nada. Ainda que de forma brevíssima, Deckard assume o papel de Ancião ou de Mestre, aquele que aconselha o herói. Infelizmente, no entanto, não há muito tempo para que eles convivam, pois os lacaios de Wallace vêm em seu encalço e acabam sequestrando Deckard.
Noutra cena essencial do filme, Deckard se encontra aprisionado na sede da corporação de Wallace, e este lhe apresenta uma cópia supostamente exata de Rachel (ainda jovem, claro), tentando lhe seduzir para que ele pudesse contar onde diabos está a criança, o milagre. Obviamente, o grande objetivo do Demiurgo é exterminar a alma, e tornar o mundo puramente material. Interessante que os sonhos de ascensão ao Paraíso no mundo de Wallace correspondem às colônias humanas noutros planetas. Porém, são literalmente paraísos artificiais, uma vez que tudo o que Wallace consegue produzir é sintético. Mesmo os seus replicantes não passam de androides estéreis, ele jamais conseguiu fazê-los se reproduzir.
Ao observar a cópia de seu grande amor, no entanto, Deckard afirma para o Demiurgo: “não é ela, eu sei o que é real”. Ora, o que é real é justamente o amor, e o amor pertence à Pistis Sophia, não ao mundo do Demiurgo. Não importa o que ele faça, jamais terá poder para gerar amor, gerar vida real, seja ela humana ou replicante.
É preciso alma para amar
Noutra cena tocante do filme, K. anda pela cidade e, ao atravessar uma espécie de ponte de pedestres, se depara com uma projeção gigante de Joi, a garota-holograma. Ocorre que ele havia guardado a memória de sua própria Joi num aparelho que foi destruído pelos lacaios de Wallace. Assim sendo, a “sua Joi” havia se perdido para sempre, e ali ele via uma “Joi genérica”. E esta Joi o chama pelo mesmo nome usado pela anterior, de “Joe”. Ora, assim fica claro que a paixão entre K. e a sua Joi era mero fruto de uma programação. Não havia alma no seu aparelho de Inteligência Artificial, apenas ele poderia ter uma alma, e é preciso haver alma para haver amor.
Dessa forma, o que K. havia amado era tão somente um ser imaginário. Ao contrário de Deckard, que amou uma replicante com alma, e por isso gerou nela um filho, um milagre. Afinal, Deckard “sabia o que era real”, enquanto K. ainda teria de passar por muitas e muitas aventuras para descobrir.
O fim de uma Jornada é o início de outra
Finalmente, após haver descoberto que na realidade Deckard e Rachel haviam tido uma filha, não um filho, K. mesmo assim não se desvia nem por um momento de sua missão e acaba conseguindo, com muito custo, resgatar Deckard e levá-lo ao encontro de sua filha real.
Pouco antes de entrar no galpão onde ela reside, Deckard pergunta para K. se “está tudo bem”, e ele afirma que sim. Na sequência, K. se deita sobre as escadas e, após Deckard já haver entrado no recinto, ele parece apenas contemplar os flocos de neve caindo levemente do céu. Há uma profunda sensação de paz: o herói cumpriu sua Jornada, e está preparado para a próxima. No fundo, não importava se K. era ou não a criança, o milagre, mas sim se ele tinha ou não uma alma. K. parece ter chegado a conclusão de que, sim, tem uma alma, e daí em diante sua vida passa a ser de fato uma jornada espiritual, livre, na medida do possível, das seduções do Demiurgo. Não será uma vida desprovida de dor, é certo, mas pelo menos uma vida preenchida de sentido.
Já a última e belíssima cena do filme mostra Deckard, o Ancião, o Herói no Fim da Jornada, encontrado o milagre “em carne e osso” pela primeira vez. Sua filha era todo o tempo a própria designer de memórias dos androides de Wallace, a própria Pistis Sophia, a Alma do Mundo. É esta a iluminação, o sentido final de toda e qualquer jornada espiritual – a contemplação da Alma. E aqueles que já sabem disso, tornam-se nesta Criação, cocriadores, artistas do espírito. Este filme é só mais um exemplo disso.
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Obs.: Não deixe de ver também esta profunda análise do Blade Runner original feita pelo meu amigo Acid (do blog Saindo da Matrix). Veja também a parte 1 e a parte 2 de sua análise da simbologia presente na obra.
[1] Inclusive, a primeira cena do filme é justamente o Grande Olho da Alma se abrindo, o que remete ao próprio despertar do protagonista. Aliás, eu recomendo que revejam o filme considerando desde o início que tudo o que transcorre de iluminado, até o último floco de neve, é uma Criação da criança-milagre, Pistis Sophia. Só recomendo que levem algum lenço; isto é, se tiverem alma!
[2] Há outras interpretações menos focadas em mitologia que afirmam que Luv somente derrama lágrimas quando presencia a morte de outros replicantes, jamais de humanos (apesar de que ela parece se emocionar ao assassinar a chefa de K.). De fato, é uma possibilidade, talvez ela estivesse interiormente lutando contra si mesma para se libertar da programação de Wallace. Em todo caso, mesmo aqui continua valendo a interpretação de que K. consegue "desobedecer" a sua programação, enquanto Luv não, e me parece que este "livre-arbítrio" tem tudo a ver com a proximidade da alma, do amor, enfim, do lado mais espiritual da vida.
Nota final: o gnosticismo na obra de Philip K. Dick
Pode parecer estranho, mas Philip K. Dick foi um escritor de ficção científica profundamente ligado ao gnosticismo. Como não sou nenhum especialista em sua obra literária, indico a vocês este artigo de meu amigo Giordano Cimadon, da Sociedade Gnóstica Internacional; e também este texto escrito por Eduardo Pinheiro, um especialista em sua obra, para o blog Papo de Homem.
Crédito das imagens: Blade Runner 2049/Divulgação
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