Objetividade relativa
Texto de Miguel Nicolelis em "Muito além do nosso eu” (Ed. Cia. das Letras) – Trechos das pgs. 449 a 453. Os comentários ao final são meus.
Sem dúvida alguma, as teorias da relatividade especial e geral de Albert Einstein representam a maior expressão de sucesso de uma versão do pensamento relativístico criada pela mente humana [1]. [...] Essencialmente, para Einstein, nem o tempo nem o espaço são absolutos. Assim, a relativização do tempo e do espaço explicam uma série de efeitos contraintuitivos, coisas como a dilatação do tempo, em que o tempo observado – como no exemplo clássico em que dois relógios carregados por um par de observadores – sai de sincronia, e a contração de comprimento de Lorentz, em que o comprimento de objetos se contrai à medida que a velocidade destes se aproxima daquela da luz. [...] Brian Greene, em seu livro O universo elegante, escreve que “A relatividade especial não está em nossos ossos [porque] não a sentimos. Suas implicações não são parte central de nossa intuição”.
A despeito da quase unânime aceitação da teoria da relatividade, o conceito de relativismo permanece sendo o centro de uma controvérsia extremamente acirrada no mundo científico. Dessa forma, não é surpresa que o pensamento relativístico tenha gerado um intenso debate, envolvendo visões extremamente contraditórias sobre o que a prática da investigação científica de fato significa. Nessa disputa interminável, a filósofa irlandesa Maria Baghramian coloca num lado do ringue o argumento de que o conhecimento científico é universal, uma vez que ele pode ser verificado em qualquer lugar, a qualquer momento.
Por exemplo, de acordo com o prêmio Nobel Sheldon Glashow, os cientistas “afirmam que existem verdades universais que são eternas, objetivas, fora da história, socialmente neutras e externas à mente humana, e que a catalogação dessas verdades define o objeto das ciências naturais. Leis naturais podem ser descobertas porque são universais, invariáveis, invioláveis, sem sexo e verificáveis”. Curiosamente, Glashow finaliza seu manifesto dizendo que “essa afirmação eu não posso provar. Essa é minha fé!” [2].
No outro canto do ringue, Baghramian coloca o físico alemão Werner Heisenberg, que – como era de se esperar – mantém sua postura de incerteza ao afirmar, em The physicist’s conception of nature [A concepção da natureza por um físico], que “o objetivo dessa pesquisa não é mais um entendimento dos átomos e seus movimento em si mesmo. Desde o início, estamos envolvidos com o debate entre a natureza e o homem, no qual a ciência desempenha apenas uma parte, de modo que a divisão rotineira do mundo entre subjetivo e objetivo, interior e exterior, corpo e alma, não é mais adequada e nos leva a dificuldades”. Aqui, o homem confronta a si mesmo na mais profunda solidão.
Nesse debate, como em muitos outros assuntos científicos, defiro sem remorsos minha própria opinião em favor das visões defendidas por outro crente imaculado do método científico, o grande paleontólogo americano Stephen Jay Gould. Apesar de não subescrever a filosofia do relativismo, Gould argumenta que “nossas formas de aprender sobre o mundo são fortemente influenciadas pelas preocupações sociais e pelos modos enviesados de pensamento que cada cientista aplica a qualquer problema. O estereótipo de um método científico totalmente racional e objetivo em que cientistas individuais trabalham tão logicamente quanto robôs serve apenas como mitologia de autopromoção classista” [3]. Em vez disso, Gould propõe que:
“A imparcialidade (mesmo que desejada) não pode ser atingida por seres humanos [...]. É perigoso para um pesquisador sequer imaginar que ele pode atingir um estado de neutralidade completa, pois assim ele corre o risco de deixar de se preocupar com suas preferências pessoais e suas influências – o caminho mais fácil para se transformar em vítima de seus próprios preconceitos. A objetividade deve ser definida operacionalmente como o tratamento honesto dos dados, não a ausência de preferências pessoais.
Uma vez que todas as descobertas emergem de uma interação entre a mente e a natureza, os cientistas sábios devem escrutinar os diferentes vieses que registram nossos encontros sociais, nosso momento na história geográfica e política, mesmo as limitações impostas pela nossa maquinaria mental, no júri comparado da imensidão da evolução.”
Em minha definição operacional do ponto de vista próprio do cérebro, o conjunto de restrições fisiológicas que o processo de evolução natural impôs ao sistema nervoso desempenha o papel equivalente àquele que a luz tem na teoria da relatividade, definindo uma constante biológica universal ao redor da qual os modelos cerebrais, criados ao longo de nosso cotidiano, têm de ser relativizados [4]. A evolução das espécies em termos gerais, e a dos mamíferos e primatas em particular, tem de ser considerada como a fonte dos limites ao redor dos quais giram os mecanismos responsáveis pela gênese dos pensamentos, dado que a organização anatômica e fisiológica de nossos cérebros foi modelada pelo processo de seleção natural.
Na realidade, graças a uma série imprevisível de eventos ambientais que se desdobraram ao longo de centenas de milhões de anos, esse processo produziu um arcabouço ótimo para o surgimento do tipo de cérebro de primata que beneficia cada um de nós: desde o arranjo convoluto e compacto do córtex humano, ditado pela necessidade de limitar o tamanho da cabeça de um recém-nascido, de forma que este pudesse escorregar sem problemas pelo canal de parto de sua mãe, até a teia inigualável que prevê a conectividade para dezenas de bilhões de neurônios se comunicarem eletricamente, sempre à mercê do metabolismo, da bioquímica e da fisiologia [5].
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[1] Neste trecho Nicolelis fala sobre o pensamento relativístico num sentido de crítica a crença de que existe uma única “realidade absoluta e objetiva” na natureza. Falo mais sobre as teorias de Einstein nas minhas reflexões sobre o tempo.
[2] É mesmo um grande paradoxo: sabemos, decerto, que as leis da natureza são idênticas e simétricas por toda a parte e em todos os tempos, na Terra e em Andrômeda, hoje ou há bilhões de anos atrás – entretanto, cabe a uma mísera mente de homo sapiens a tarefa de interpretá-las, e a interpretação jamais será totalmente objetiva.
[3] E, em todo caso, como sempre digo: não somos máquinas a computar informações, mas seres a interpretar o Cosmos.
[4] A diferença entre o limite imposto pela velocidade da luz, e o limite imposto pelas limitações biológicas de nosso cérebro, é que ainda não sabemos exatamente até onde nossa imaginação pode realmente nos levar. A luz continuará a percorrer o universo na mesma velocidade (ao menos no vácuo), já nossos pensamentos parecem ter um parentesco mais próximo do infinito (ou da eternidade, por assim dizer).
[5] Apesar de saber muito bem que existe um número finito de potenciais de ação eletromagnética a cada momento em nosso cérebro, Nicolelis é, como todo grande cientista, um eterno maravilhado com a majestosa capacidade que este número finito pode produzir – seja na filosofia, na religião, na ciência, ou até mesmo no futebol arte...
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Crédito da foto: John Smith/Corbis
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