Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.
Entre a pobreza e a desigualdade
Os seus críticos dizem que é o livro mais vendido e menos lido dos últimos tempos, mas fato é que desde que publicou O Capital no Século 21, Thomas Piketty foi subitamente catapultado ao posto de “economista pop star”, algo que certamente não temos visto com tanta frequência por aí.
A tese principal que o economista francês traz ao mundo em sua obra, amparada por calhamaços de estudos e estatísticas econômicas, é a de que os países desenvolvidos vêm registrando uma elevação da concentração de renda num ritmo consideravelmente mais rápido do que o próprio crescimento econômico. Ora, isto significa basicamente dizer que, sob o signo do capitalismo moderno, a desigualdade entre os ricos e os pobres vem se tornando um abismo cada vez mais instransponível. Ele tem razão?
Na verdade, não poderia estar mais correto. E não é que essa desigualdade seja algo “concebível”, como aquele varejista que tem uma renda 20 vezes maior do que um dos seus gerentes de setor, ou aquele milionário “bem nascido” que recebeu uma herança superior ao patrimônio total de todos os habitantes de uma cidadezinha de Minas, não, é algo que realmente vai além da imaginação: estamos falando de algumas pessoas que detém mais riqueza do que o PIB de inúmeros países somados.
Um estudo apresentado pela entidade Oxfam às vésperas do Fórum Econômico Mundial de Davos, no início de 2015, demonstrou que a eclosão da crise econômica mundial, em 2008, fez com que o ritmo da desigualdade se acelerasse ainda mais. Segundo o estudo, em 2009, os 1% mais ricos do planeta acumulavam cerca de 44% do PIB global; em 2014, chegamos a relação de 1% para 48%; e, em meados de 2016, a previsão é a de que os 1% mais ricos deterão metade das riquezas do mundo. Não sei quanto a vocês, mas sempre que penso nisso me dá a impressão de que a desigualdade é tão avassaladora que simplesmente não conseguimos concebê-la racionalmente, ou talvez simplesmente não queiramos pensar muito sobre o assunto...
Já li muitas críticas às estatísticas que Piketty usou como base para elaborar sua tese. Mas, ainda que ele tenha errado num ou noutro cálculo, fica muito difícil desmontar a essência da sua tese. É fato, a desigualdade no mundo sempre foi grande, mas hoje está atingindo níveis simplesmente estratosféricos. E sabem por quê? Porque na realidade nunca acumulamos tanta riqueza – no passado éramos mais pobres por igual, e hoje somos mais ricos, embora de maneira enormemente desigual.
Essa constatação histórica do desenvolvimento da economia humana, juntamente com a ciência e a tecnologia, é precisamente a única forma viável de contrapormos as ideias de Piketty. Neste sentido, acredito que o economista italiano radicado nos EUA, Luigi Zingales, seja a voz mais sã a se levantar e analisar de forma crítica o best-seller de Piketty.
Como professor da Universidade de Chicago, Zingales está literalmente no centro do pensamento liberal, e como tal, traz aquela outra visão que muitos simpatizantes da esquerda fazem questão de ignorar, a de que, se o capitalismo moderno trouxe muita desigualdade, também trouxe muita riqueza. Assim, chegamos àquela pergunta fatídica: É melhor sermos pobres por igual, ou relativamente ricos, enquanto uma pequena elite se torna absurdamente rica?
Vamos deixar esta resposta para depois. Primeiro, é preciso considerarmos que, a despeito de suas visões de mundo, nem Zingales nem Piketty podem ser situados precisamente nas extremidades da esquerda ou da direita, como aliás é comum com todos os grandes pensadores...
Quando perguntado por um repórter da Folha de São Paulo sobre a relação do título do seu livro com a obra-prima de Karl Marx, numa alusão a possiblidade de ser um comunista ou anticapitalista, Piketty respondeu assim:
“O problema é que há gente que vive ainda na Guerra Fria e tem necessidade de inimigos anticapitalistas. Não sou esse inimigo. Creio no capitalismo, na propriedade privada e nas forças do mercado.
Nasci tarde demais para ter a menor tentação que seja pelo comunismo de tipo soviético. Isso não me interessa. Ao mesmo tempo, acho que temos necessidade, basta ver a crise de 2008, de instituições públicas muito fortes para regular o mercado financeiro e as desigualdades produzidas pelo capitalismo.”
Pulemos então para a entrevista com Zingales no Estadão. Quando lhe perguntaram se existe alguma intervenção aceitável do Estado na economia, eis o que ele disse:
“O mercado precisa de regras para operar. A pergunta é quem vai implementá-las e mantê-las funcionando. Mas, além disso, é importante entender que a criação de uma rede de proteção social pode ser considerada uma intervenção pró-mercado.
Os empreendedores buscam com frequência lobbies para conseguirem subsídios. Quando uma empresa está prestes a falir, o empresário diz que precisa de ajuda porque os trabalhadores vão ficar desempregados. O meu ponto de vista é que, se temos uma boa proteção social, não é preciso se preocupar com os trabalhadores, e as empresas podem falir sem problema. Num modelo de livre mercado, as empresas precisam falir, mas os indivíduos não precisam sofrer.”
Ora, é impressão minha, ou parece que os baluartes do socialismo e do neoliberalismo chegaram a concordâncias surpreendentes sobre a economia e a política?
Vejam bem que nem Piketty nem Zingales pretendem carregar tais alcunhas, e ainda que fosse o caso, muitas vezes “socialismo” e “neoliberalismo” são somente palavras cujos significados se perdem na complexidade de um mundo de ideias cada vez mais conectadas, um fluxo onde quase tudo parece poder mudar da noite para o dia.
No fundo, ambos estão defendendo um capitalismo de real livre mercado, livre dos grandes monopólios, cartéis e lobbies políticos, onde nenhuma empresa possa ser “grande demais para quebrar”, mesmo que ela seja um banco, precisamente porque haverá uma rede de proteção e bem estar social capaz de cuidar de uma nova leva de desempregados, até que novas empresas possam absorvê-los. Isso nada mais é do que o socialismo e o capitalismo andando de mãos dadas, às vezes um pouco mais a direita, às vezes um pouco mais a esquerda. Ou seja, o grande terror dos extremistas, mas quem sabe a única solução para o mundo atual...
A resposta para o amanhã
Pobreza ou desigualdade? Privacidade ou segurança? Estado ou Mercado? Socialismo ou capitalismo? Esquerda ou direita?
A verdade é que, se quisermos nos certificar de que teremos um futuro melhor do que o presente, nós devemos responder tais perguntas em debates amigáveis, ou reuniões políticas onde tanto o governo quanto a oposição não somente tenham a voz assegurada, mas que, sobretudo, tenham uma ideologia genuína, e se prestem a defender no poder aquilo que sempre defenderam antes de chegarem ao poder.
Pois nada é mais distante da Política do que este Grande Negócio Eleitoral, onde os discursos são escritos por marqueteiros, e não por estadistas.
Pois nada é mais nefasto para a Política do que ter um grande partido político de ideologia incerta, que ora defende isto, ora aquilo, de acordo com a direção do vento, ou do bocado do Orçamento que conseguirá abocanhar em acordos obscuros em prol da garantia da “boa governança”.
Assim, eu prefiro não responder a nenhuma dessas questões, mas deixá-las em aberto para que vocês, da Mansão do Amanhã, possam não somente refletir sobre elas, como quem sabe até encontrarem alguma inspiração para se aventurarem na Política, com “P” maiúsculo.
Quando foi condenado pela polis ateniense por corromper seus jovens discípulos com novas ideias, foi dada a Sócrates a opção de se exilar e evitar a morte pela ingestão de veneno. O grande filósofo optou por permanecer em sua polis e aceitar o veredito. Há muitos que dizem que sua decisão se baseou inteiramente em seu enorme respeito para com a Justiça de Atenas. Mas, creio eu, talvez o velho sábio não encontrasse muita utilidade em prosseguir com sua existência, se não fosse para incitar os jovens a terem novas ideias...
Assim, ao não aceitar o exílio em troca da própria vida, Sócrates também se recusou a deixar que suas ideias fossem exiladas do mundo. O que essa bela história nos ensina é que a única resposta possível para o amanhã deve necessariamente partir do Amanhã.
Portanto, não é somente reclamando dos nossos representantes no Executivo, no Legislativo e no Judiciário que iremos conseguir mudar alguma coisa mais depressa. Se você quer realmente que este país chegue a ser, finalmente, o “país do futuro”, não há melhor caminho do que ser, você mesmo, um ser da Política.
E, se você é jovem, há todo um universo de possibilidades em aberto. Se for o caso de seguir neste caminho, tão sagrado quanto profano, lembre-se de que a Política não se faz em gabinetes, departamentos ou centrais sindicais isoladas a esquerda ou a direita; a Política se faz entre a esquerda e a direita.
Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política.
Simplesmente serão governados por aqueles que gostam.
(Platão)
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Crédito da imagem: Google Image Search/Divulgação (Thomas Piketty e Luigi Zingales)
Marcadores: economia, Entre a esquerda e a direita, futuro, Luigi Zingales, política, Sócrates, Thomas Piketty