As grandes questões do ocultismo (tomo final)
Imagine esta noite, há dez mil anos, fria e úmida, nalgum canto europeu onde tudo o que os homens sabiam acerca de outros homens se resumia a tribos que foram vistas de passagem pela margem da floresta, e que logo se esconderam dos olhares estranhos. Um mundo ancestral, onde vivíamos isolados, andarilhos vivendo da caça e da coleta, temerosos dos trovões e da raiva dos deuses. Conectados, em todos os momentos, à Natureza em nossa volta, ao ponto de nem precisar lhe dar um nome: a Natureza já era todo o mundo.
Alguns poucos dentre nós eram escolhidos, geralmente desde a infância, para serem os discípulos do xamã da tribo, aprendendo com ele todos os dias e todas as noites a se comunicar com os espíritos de antigos heróis e sábios tribais, assim como com os seres etéreos da natureza; e, de vez em quando, até mesmo com alguns dos seus deuses. Um xamã abandonava seu corpo, sua mortalha, para ir habitar do outro lado, e então o seu discípulo assumia o seu lugar, e logo escolheria outro para também um dia lhe substituir no futuro, pois que nenhuma tribo era capaz de sobreviver por muito tempo sem o auxílio daquele que se comunica com espíritos, que dá conselhos sobre as caçadas e conhece todos os segredos das ervas medicinais.
Imagine esta noite, ao redor da fogueira, onde o velho xamã canta (acompanhado de alguns tocadores de tambor) antigos poemas sobre caçadas épicas, tempos de fartura de frutos, e metamorfoses de seu próprio ser com diversos animais – vivenciadas em transe profundo, no único lugar onde todos os seres fantásticos, os espíritos, os deuses e demônios existem incontestavelmente: a mente humana.
Nessa era, quando todos os conhecimentos espirituais eram centrados na figura do xamã, a magia sequer tinha um nome. Por se tratar “de tudo o que tem relação com o espírito humano”, ela não precisava realmente ser rotulada, reduzida a uma palavra, um signo... no entanto, se um xamã fosse intimado a falar acerca da sua teologia, ele provavelmente responderia como um sacerdote xintoísta respondeu a Joseph Campbell: “nós não temos teologia, nós dançamos”.
Desde os primórdios da humanidade, a mente e o espírito sempre encontraram caminhos propícios para transbordar sua subjetividade no mundo objetivo, para de alguma forma estranha, tornar possível a migração de informações do mundo das ideias, do mundo interior, onde tudo é fluido, onde tudo pode ser simplesmente imaginado, até o mundo das coisas, até o mundo exterior, onde tudo tem corpo e forma, onde tudo tem o seu tempo de nascer, viver e morrer. Assim, sempre nos pareceu (e para a maioria de nós ainda parece) que este mundo dito objetivo é mais como uma passagem, um entrecruzamento de vias férreas, onde os trens de nossas vidas podem apitar uns para os outros, por breves períodos, até que precisem novamente zarpar para a próxima estação.
Lá no início de tudo, lá, muito antes da linguagem, a magia já brotava como uma espécie de noivado com a consciência. Através da magia, o que era somente imaginado pôde, passo a passo, ser transferido para o mundo lá fora. Na falta de um nome melhor, lhe chamamos A Arte...
Enclausurados no fundo das cavernas, com pouquíssima iluminação, se valendo de sangue animal e de tintas arcaicas, os xamãs gravaram no ventre da própria Terra imagens de suas caçadas, do que vivenciavam em seus transes, e da morte e renascimento em suas próprias iniciações, quando também eles vieram desvanecer no ventre da Mãe, para renascerem como filhos de Gaia, irmãos de todos os demais xamãs do mundo. E isto, que hoje chamamos de arte rupestre, nada mais foi do que o surgimento da pintura.
Muitos também aprenderam a talhar a pedra não somente para produzir pontas de lanças e flechas, como para trazer ao mundo das formas sólidas as figuras dos mais antigos deuses, sobretudo a Deusa Mãe, com suas formas fartas, garantidora da vida e da fertilidade da tribo. Assim surgiu a escultura.
Da música e da poesia nós já falamos, mas considere como ambas foram reunidas com danças e encenações, quando já não bastava mais somente contar uma história: era preciso reencená-la novamente, e quantas vezes fossem precisas, nas noites em que a tribo rememorava antigos acontecimentos dignos de nota. Muito tempo, e algumas civilizações depois, tais encenações passaram a ser independentes da religião em si, e foram chamadas de teatro pelos gregos antigos. Conforme a ópera e o próprio cinema não poderiam ter surgido sem o teatro, há que se considerar que todos eles ainda derivam, em última instância, da Arte.
Finalmente, foi inventada a escrita, e todas as histórias ancestrais puderam fluir da mente daqueles que as recitavam de memória para os símbolos que, se eram incapazes de trazer consigo todo o sentimento, toda emoção daqueles que um dia cantaram ao redor das fogueiras ancestrais, ao menos podiam registrar com exatidão inimaginável algo que se passava tão somente na mente do xamã. Milhares de anos depois, o próprio ocultismo iria se basear largamente na forma como certas palavras são recitadas, assim como no estilo com a qual elas eram guardadas nos livros e nos grimórios. A isso tudo nós também demos outro nome: literatura.
É bem verdade que os primeiros magi (magus, no singular) eram sacerdotes do zoroastrismo, que mais tarde vieram a ser rotulados de “praticantes de magia” pelos gregos, que ironicamente não viam o que eles faziam com bons olhos. Assim, quando a Arte recebeu o nome “magia”, foi mais por um acidente da história. É curioso como, mais ou menos desde essa época, tudo o que era realizado pelas religiões dos povos estrangeiros foi considerado “magia”, sobretudo como forma de diferenciação para com as práticas sagradas da religião oficial do próprio país. Até hoje é fácil se encontrar coisa parecida: “macumba é magia negra, mas as minhas simpatias, as minhas orações aos santos, isso é tudo coisa de Deus”.
Na realidade, como pudemos ver, desde o xamanismo antigo, a própria religião, a própria religação a Natureza, ao Cosmos e aos deuses, esteve indissociada da Arte. Religião também é, e sempre será, uma forma de magia (uma das mais antigas, por sinal).
Aliás, quando a então famosa pitonisa de Delfos, Temistocleia, iniciou Pitágoras em seus conhecimentos ocultos, ela ainda poderia ser rotulada como “religiosa”. Foi somente quando o próprio Pitágoras ganhou sua fama (basicamente evangelizando a sabedoria de sua mestra), que ele eventualmente foi chamado de “filósofo”: amante (filos) da sabedoria (sophia). Assim surgiu a filosofia no Ocidente, e também ela, obviamente, é filha da Arte.
Desde Demócrito os antigos “filósofos da Natureza” (título que, aliás, foi assumido por alguns desta estirpe até poucos séculos atrás) começaram a focar sua atenção também nos eventos que ocorrem lá fora, e investigaram tanto os átomos quanto as constelações. Eratóstenes já sabia que a Terra não era plana cerca de 2 séculos antes de Cristo, e chegou a calcular sua circunferência com precisão invejável. Mas foi alguma espécie de deus ou semideus, Hermes o Três Vezes Grande, quem antecipou em milênios a física de partículas e o estudo de outros sóis e outros mundos: pelo menos desde a antiga Grécia ele já havia arriscado dizer que “tudo vibra, e nada está parado”, e que as leis que regem o Alto são as mesmas que regem o que acontece por aqui.
Quando Nicolau Copérnico publicou o seu célebre Das revoluções das esferas celestes, algumas linhas abaixo da primeira ilustração do heliocentrismo estava descrita a sua maior inspiração: Hermes Trimegistus. Diz a “história oficial” que a Igreja mandou um de seus monges (Giordano Bruno) para a fogueira simplesmente por defender que a Terra girava em torno do Sol. Eles preferem ignorar o que realmente se passou, e como Bruno quis fundir o cristianismo com o hermetismo, criando uma nova religião cósmica. Tivesse tido sucesso, o mundo ocidental seria hoje muito, muito diferente...
Em todo caso, fato é que o que havia se iniciado lá em Demócrito hoje está plenamente consolidado na era moderna: a separação definitiva entre a Arte e a ciência, entre a alquimia e a química, entre a astrologia e a astronomia, entre o conselho xamânico e a psicanálise.
Diz o atual dogma científico que nada do que escapa ao puramente objetivo deve ser considerado pela ciência. Nem sempre foi assim, mas hoje a Academia prefere relegar o que pode ser chamado de “sobrenatural” as “esquisitices da mente” e ao efeito placebo. Que seja, que a magia seja a arte de se catalisar efeitos placebo. E, quanto à mente, bem, é justamente nela que se passa toda a nossa existência, seja ela “esquisita” ou “normal” (não sabemos o que é mais estranho).
Foi mais ou menos assim que a Arte se decompôs em inúmeras partes, infindáveis campos de estudo, incontáveis maneiras de se contemplar a Natureza. No entanto, se pudéssemos voltar atrás, e reconciliar toda a nossa sociedade de acordo com os preceitos arcaicos do xamanismo, ainda seríamos divididos entre caçadores e artistas. Ora, felizes aqueles que não necessitam caçar para sobreviver, e podem se dedicar plenamente a Arte, e a sua Grande Obra. Para isso, sim, meus irmãos, para isso vale a pena estar aqui, para isso vale a pena apontar nossos espelhos pequeninos para a luz do Alto, a luz que se encontra espalhada por tudo o que há, mas que ainda é invisível para quem se arrasta sonolento pela existência.
Acorde! Recorde que você é um homem, que veio de uma estrela, que está em uma estrela, que irá para outra estrela...
Imagine esta noite, há dez mil anos, com você sentado ao redor da fogueira. Imagine, sinta como a sua chama lhe aquece. Feche os olhos e veja: na sua frente, do outro lado da fogueira, está um xamã ancestral, também de olhos fechados. Ele abre os olhos, e lhe encara... de alguma forma, você sabe, você sempre esteve lá. Isto é Ars Magica.
Pouse suavemente. Os mensageiros orientam...
raph’18
***
Crédito das imagens: [topo] TASS/Vladimir Smirnov (xamã siberiana); [ao longo] Sisse Brimberg/National Geographic (arte rupestre na caverna de Lascaux, França); Google Image Search (Angkor Wat).
Marcadores: arte, artigos, artigos (271-280), ciência, espiritualidade, filosofia, hermetismo, história, magia, ocultismo, xamanismo