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30.9.14

Deus tá vendo essa zoeira!

É este o slogan de um dos jogos de cartas mais polêmicos dos últimos tempos, o Pequenas Igrejas, Grandes Negócios.

Quando ouvi falar a primeira vez deste projeto, foi da boca do seu próprio criador, meu amigo Marcelo Del Debbio. O Marcelo, como muitos devem saber, é um dos divulgadores de ocultismo e espiritualidade mais conhecidos do país, assim como um dos críticos mais veementes da “picaretagem” de alguns dos ditos espiritualistas de todos os credos.

A primeira coisa que pensei foi que a temática do jogo parecia ser, em geral, um ataque meio gratuito aos evangélicos. Tive medo de que o resultado final fosse um tanto generalista e enfiasse todos os evangélicos no mesmo saco. Obviamente, para muitos evangélicos “picaretas”, é exatamente isso o que pensam do jogo desde o primeiro momento em que souberam dele.

Mas o resultado final não foi bem esse... Antes de chegarmos lá, é preciso lembrar que o sistema do jogo já vinha sendo bolado há cerca de quatro anos pelo Marcelo e o seu amigo, Norson Botrel, ambos designers de jogos de RPG há muitos anos. Porém, na hora de finalizar tudo e efetivamente criar as ilustrações, imprimir as cartas, etc., eles tiveram de pedir ajuda a diversos outros amigos...

As ilustrações ficaram a cargo do Roe Mesquita, o design e o projeto gráfico, com Rodrigo Grola, e o marketing e a edição dos vídeos de divulgação com o PH Alves (do Conversa entre Adeptus). Todo esse pessoal é muito gente boa e também faz parte da comunidade espiritualista que se criou em torno do blog do Marcelo, o Teoria da Conspiração, mas ainda faltava um elemento essencial: Como pagar o trabalho dessa gente toda? Como pagar a impressão dos primeiros baralhos?

Foi aí que o Marcelo decidiu recorrer ao crowdfunding, usando o site Catarse. No crowdfunding, um projeto qualquer é apresentado com uma meta de financiamento (em reais) e, geralmente, uma série de bônus para aqueles que doarem valores maiores. No caso do Pequenas Igrejas, Grandes Negócios (PIGN), a meta mínima para a produção do jogo era de 29 mil reais. A cada 5 mil reais extras arrecadados, eram prometidos novas cartas e suplementos disponíveis desde o lançamento. Se o financiamento total ultrapassasse a última marca da lista, 75 mil reais, eles ainda prometiam entregar sleeves (embalagens plásticas) para cada carta do baralho a quem houvesse investido acima de certo valor.

Ao final de cerca de 2 meses de crowdfunding, o PIGN se tornou um dos projetos mais bem sucedidos do Catarse, tendo arrecadado quase 93 mil reais! Eu mesmo fui um dos 12 que doaram os valores mais altos disponíveis (400 reais, nem tanto se comparado a outros projetos do Catarse), e garanti uma carta com o meu pastor no jogo, o Bispo Sinésio!

Há algumas semanas atrás a minha edição do jogo chegou por correio, com assinaturas de diversos integrantes do projeto, e com quase 400 cartas, incluindo todas as cartas bônus disponíveis... A grande questão então passou a ser: será que eu usaria esse jogo apenas para ficar rindo das cartas, ou será que daria para jogá-lo realmente? Bem, com a ajuda do pessoal que segue o blog do Marcelo aqui na minha cidade, consegui jogar algumas partidas bem divertidas...

Na verdade o jogo é bem mais do que uma simples crítica bem humorada a “picaretagem” de alguns ditos espiritualistas. Ele realmente funciona como jogo, e acredito que não deveríamos esperar menos de designers como o Marcelo e o Norson. Como não sou exatamente um especialista em jogos de cartas do tipo (eles mesmos dizem que se inspiraram em Magic: The Gathering, BANG!, UNO e Munchkin para criar o mix de regras), não posso afirmar que se trata “do melhor jogo de cartas de todos os tempos”, mas certamente é um jogo tão divertido de jogar quanto o Munchkin (o que mais conheço da lista anterior), com a vantagem de ser ambientado num “universo brasileiro” – ou melhor, “num mundo onde as igrejas são usadas por pessoas trapaceiras e inescrupulosas para lavar dinheiro do crime, vender porcarias inúteis, explorar a boa fé de pessoas ignorantes e obter poder político; um universo muito diferente da nossa realidade, onde as igrejas são centros comunitários de ajuda ao próximo, gerenciadas por baluartes do bom caratismo”.

O que nos traz de volta a questão inicial: será que o PIGN coloca num mesmo saco tanto os “picaretas” quanto os verdadeiros espiritualistas? Na verdade, não, nem de longe... Para começar, apesar do jogo se focar, como o próprio título diz, nas igrejas, a verdade é que há críticas a “picaretas” de várias vertentes religiosas – para citar dois exemplos, temos no baralho os pastores “Mãe Binah” e “ET Bilu Bilu”, que estão longe de se referirem a pastores evangélicos do “mundo real”.

Além disso, em nenhum momento é citado o nome de Jesus. Não que isso por si só fizesse alguma diferença, mas não deixa de ser revelador o respeito que mantiveram ao seu nome. Em PIGN, encontramos “Jezuis”, e não “Jesus”.

Por fim, o que mais achei curioso no jogo é que todas as cartas de ataque (o objetivo do jogo é acabar com a reputação dos pastores adversários, daí existirem as “cartas de ataque”) se referem a notícias que foram vinculadas na mídia real (independente de serem verdadeiras ou não, mas o absurdo todo é que a grande maioria é verdadeira).

Assim, quando atacamos nossos amigos na mesa de jogo usando cartas como “Igreja é dona do maior complexo de saunas gays da Europa” (carta #215), “Religioso afirma que sexo ilícito é causa dos terremotos” (#187), “Pastor ex-gay quer criar ‘Conselho estadual para a defesa dos direitos héteros’” (#192), “Barak Obama está possuído pelo demônio, afirma pastor que faz exorcismo por Skype” (#162), ou ainda “Ex-obreira fica grávida do Diabo e dá à luz 3 caveiras de plástico!” (#31), ficamos nos perguntando se este jogo chegou mesmo a conseguir ser mais absurdo do que a nossa realidade – e então, ao menos nos resta o consolo: Deus tá vendo essa zoeira!

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» O PIGN pode ser adquirido na loja online da Daemon Editora

Crédito das imagens: Divulgação/PIGN

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28.9.14

O último voo de Saint-Exupéry

Em Janeiro de 2015 a obra-prima de Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Principe, ou O Pequeno Príncipe, entrará finalmente em domínio público em boa parte do mundo (exceto nos EUA e na França).

Como podem imaginar, lançaremos nesta data mais um livro digital das Edições Textos para Reflexão, com a tradução cuidadosa de Rafael Arrais, e todos os desenhos originais da obra, de autoria do próprio Saint-Exupéry, a cores, em boa definição e ocupando páginas inteiras!

Já que ainda não podemos lhes trazer trechos da tradução (afinal, o original em francês ainda não se encontra em domínio público), pensamos que seria interessante lhes trazer o epílogo completo, assim como, ao final, a capa, em que fizemos o máximo para homenagear a capa original da década de 1940:

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Epílogo: O último voo de Saint-Exupéry

O Pequeno Príncipe, um clássico adorado por pessoas grandes e pequeninas, completa 70 anos...

Em Abril de 2014 a exposição The Little Prince – A New York Story, em plena Nova York, trouxe os manuscritos originais de Antoine de Saint-Exupéry, o francês autor da obra. Pouca gente sabe que ele morou em Nova York por dois anos, durante a Segunda Guerra Mundial, e escreveu o livro enquanto residia na América. A primeira edição foi publicada, em 1943, por uma editora americana, e não francesa.

A curadora da exposição, Christine Nelson [1], diz que a ideia para o livro sempre esteve rondando a cabeça de Saint-Exupéry, e prossegue, “Desde que era pequeno, gostava de desenhar, mas nunca foi um desenhista profissional, e nunca havia ilustrado um livro antes. Mas você via frequentemente em seus manuscritos alguns pequenos desenhos nas margens, e muitas vezes o desenho retratava uma pequena pessoa. E chegando perto da publicação de O Pequeno Príncipe, os traços dessa pequena pessoa passaram a tomar a forma do personagem.”

Tais ilustrações também se pareciam muito com o próprio autor. Diz a lenda que foi uma amiga sua de Nova York que o incentivou a transformar o personagem em um livro. A amiga se chamava Elisabeth Reynal, e era casada com o dono da editora (Reynal & Hitchcock) que veio a publicar o livro.

Saint-Exupéry escreveu sua obra mais famosa em vários lugares da metrópole norte americana. Tinha um apartamento ao sul do Central Park, escreveu um pouco ali; tinha uma amante – Silvia Hamilton – na Park Avenue, em Upper East Side, e escreveu muito por lá também; tinha um grande amigo da escola de artes – Bernard Lamat –, que tinha um lindo estúdio de arte, e ele também escreveu parte de sua obra por lá; e, finalmente, também trabalhou em Long Island, numa casa que alugou durante um verão.

O tempo que passou em Nova York, entretanto, foi mesmo breve. Saint-Exupéry era um piloto da força aérea francesa, e havia atuado em missões diversas, principalmente no Marrocos. Aos 43 anos, estava prestes a deixar a América para voltar à África como piloto, e foi exatamente neste período que o livro veio a ser publicado. De fato, foi quase na mesma semana, em Abril de 1943, em que ele voltava a atuar como piloto da aeronáutica francesa, que o livro chegava às livrarias de Nova York.

Quando o avião e seu piloto desapareceram durante uma missão para coletar informações do movimento das tropas alemãs, durante a guerra, o seu livro ainda estava longe de alcançar o sucesso mundial que viria a ter mais tarde. Saint-Exupéry decolou o seu P-38 Lightning de uma base aérea na Córsega, em 31 de Julho de 1944, e nunca mais retornou... Passou a viver na memória e, sobretudo, no imaginário de seus leitores.

Levou mesmo um certo tempo para que a magia de O Pequeno Príncipe conquistasse a legião de admiradores que tem até hoje. Uma coisa importante que temos de lembrar é que quando Saint-Exupéry chegou aos Estados Unidos, no final de 1940, ele já era um escritor best-seller. Já tinha publicado Terra dos Homens e Piloto de Guerra, livros que foram grandes sucessos de venda na América daquela época. Quando O Pequeno Príncipe foi lançado em 1943, até alcançou um relativo sucesso de venda, mas ficou na lista dos mais vendidos por uma única semana, enquanto outros livros do autor chegaram a ficar até 20 semanas nesta mesma lista.

O livro não foi, portanto, um sucesso imediato. Foi construindo esse sucesso ao longo dos anos; o que, com certeza, aumentou após o desaparecimento do autor, e quando finalmente veio a ser publicado na França, sua terra natal, em 1946 [2].

Nelson, tentando explicar o sucesso da obra, nos diz que “O Pequeno Príncipe é um livro decepcionantemente simples a primeira vista. Tem uma história muito simples, ilustrações muito ingênuas e, no entanto, várias camadas de leitura. Ele tem uma mensagem muito simples que todos podem apreciar e compreender – claro que estou falando da mensagem da raposa que diz que o essencial é invisível aos olhos e só pode ser sentido com o coração. Uma criança pode apreciar e entender esta mensagem, assim como qualquer adulto.

A questão é que a cada vez que o pequeno príncipe encontra um personagem adulto em sua viagem pelo universo, ele representa algumas características que nós, humanos, enfrentamos ao longo da vida – a arrogância, a vaidade, o materialismo, e, no caso do homem que bebe demais, a vergonha. Isso tudo são características que adquirimos à medida que vamos crescendo e aprendendo a nos relacionar com as outras pessoas”. São “defeitos”, se formos analisar assim, que precisam ser trabalhados e, se tudo correr bem, domesticados.

Há muito de Saint-Exupéry no seu O Pequeno Príncipe, mas também há muito de Saint-Exupéry no personagem narrador da obra, o piloto. Ele também era piloto e também teve um acidente no deserto, como o narrador da história. O foco do livro e suas ilustrações, no entanto, é no narrador contando a história do pequeno príncipe. Então acompanhamos a sua viagem fantástica pela narrativa e as ilustrações, mas não há uma ilustração sequer do narrador, isto é, do piloto (Saint-Exupéry chegou a esboçar uma, mas não foi incluída na versão final).

a raposa é a chave para o segredo do pequeno príncipe. É este personagem quem o ensina o que é mais importante na vida: o essencial é invisível aos olhos. Quando eles se encontram, a raposa quer ser seduzida, quer criar um significado para a sua relação. E, em troca, ela o ensina a ser paciente, saber esperar, curtir o momento, e, finalmente, chegar a ter um vínculo, um vínculo especial, com outro ser que nos cativou, e que também cativamos.

Muita gente não gosta ou despreza esta obra, dizendo que é muito “sentimental”. Nelson ainda nos diz que “certamente este livro não atrai todo mundo, e isto está bom. Eu tenho convivido com este livro há alguns anos – lendo, relendo, e o estudando em todos os detalhes. Tenho o sentimento de que é uma história realmente profunda. Sim, é sentimental. Sim, tem uma mensagem muito simples. Tem uma moral, se preferir, mas acredito que seja uma bela moral. Penso que a história é contada com uma grande sabedoria. As camadas de melancolia e tristeza que estão por baixo são tão profundas, principalmente quando você lembra que a guerra estava ocorrendo, e qual era o sentimento de Saint-Exupéry em relação a ela, que o fato dele ter transformado a sua experiência da guerra, durante um período de tanto desespero no mundo, em uma história tão abundante de esperança, é um enorme triunfo!”

***

Quando partiu da Córsega em seu avião, Saint-Exupéry usava uma pulseira que foi encontrada anos depois do seu desaparecimento. Depois que ele sumiu, em 1944, não ficou claro, por muito tempo, o que exatamente havia acontecido. Mas, em 1998, um pescador na costa de Marselha encontrou em sua rede de pesca uma pulseira de prata, na qual estava inscrito o nome de Saint-Exupéry. Então se descobriu que essa era a pulseira que ele usava quando o avião caiu. Em 2004, os destroços do seu avião também foram achados numa localidade próxima – mas seu corpo jamais foi encontrado...

Em todo caso, quais eram as chances de um objeto tão pequeno ser pescado do mar? Tal achado possibilitou a confirmação do local onde Saint-Exupéry morreu, e também a recuperação dos destroços do seu P-38 Lightning; e foi também mais um incrível elemento a ser adicionado ao mito de Antoine de Saint-Exupéry, o homem que se tornou, ao menos no imaginário de muitos dos seus admiradores, o próprio pequeno príncipe.

Esta obra é, portanto, o seu último voo, um voo eterno pela imaginação das pessoas de todo o mundo – sejam elas grandes ou pequeninas.

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[1] Os depoimentos de Christine Nelson foram retirados do programa GloboNews Literatura que foi ao ar em Abril de 2014, no canal de TV a cabo GloboNews.

[2] Segundo a Universia Brasil, O Pequeno Príncipe é o segundo livro mais traduzido do mundo (após a Bíblia Sagrada), com mais de 250 traduções. Também já vendeu, em todo mundo, mais de 140 milhões de exemplares.

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23.9.14

Emma Watson e a igualdade de gêneros: "Se não agora, quando?"

O discurso integral de Emma Watson na ONU, para o lançamento da campanha pró-feminismo HeForShe. Tradução de Nathália Campos (via Facebook).


Hoje estamos aqui lançando a campanha HeForShe. Eu estou falando com vocês porque precisamos de ajuda. Queremos acabar com a desigualdade de gêneros - e pra fazer isso, todo mundo precisa estar envolvido.

Essa é a primeira campanha desse tipo na ONU. Precisamos mobilizar tantos homens e garotos quanto possível para a mudança. Não queremos só falar sobre isso. Queremos tentar e ter certeza que é tangível.

Eu fui apontada como embaixadora da boa vontade para a ONU Mulheres há seis meses e quanto mais eu falava sobre feminismo, mais eu me dava conta que lutar pelos direitos das mulheres muitas vezes virou sinônimo de odiar os homens. Se tem uma coisa que eu tenho certeza é que isso tem que parar. Para registro, feminismo, por definição é a crença de que homens e mulheres devem ter oportunidades e direitos iguais. É a teoria da igualdade política, econômica e social entre os sexos.

Eu comecei a questionar as suposições baseadas em gênero quando eu tinha oito anos, fui chamada de mandona porque eu queria dirigir uma peça para nossos pais - mas os meninos não foram.

Aos quatorze anos, fui [precocemente] sexualizada por membros da imprensa. Com quinze anos, minhas amigas começaram a sair dos times esportivos porque não queriam parecer masculinas. Aos dezoito, meus amigos homens não podiam expressar seus sentimentos.

[Então] eu decidi que eu era uma feminista. Isso não parecia complicado pra mim. Mas minhas pesquisas recentes mostraram que feminismo virou uma palavra não muito popular. Aparentemente, eu estou entre as mulheres que são vistas como muito fortes, muito agressivas, anti homens, não atraentes...

Por que essa palavra se tornou tão impopular? Eu sou da Inglaterra e eu acho que é direito que me paguem o mesmo tanto que meus colegas de trabalho do sexo masculino. Eu acho que é direito tomar decisões sobre meu próprio corpo. Eu acho que é direito que mulheres estejam envolvidas e me representando em políticas e decisões tomadas no meu país. Eu acho que é direito que socialmente, eu receba o mesmo respeito que homens. Mas infelizmente, eu posso dizer que não existe nenhum país no mundo em que todas as mulheres possam esperar ver esses direitos. Nenhum país do mundo pode dizer ainda que alcançou igualdade de gêneros. Esses direitos são considerados direitos humanos, mas eu sou uma das sortudas.

Minha vida é de puro privilégio porque meus pais não me amaram menos porque eu nasci filha. Minha escola não me limitou porque eu era menina. Meus mentores não acharam que eu poderia ir menos longe porque posso ter filhos algum dia. Essas influências são as embaixadoras na igualdade de gêneros que me fizeram quem eu sou hoje. Eles podem não saber, mas são feministas necessários no mundo de hoje. Precisamos de mais desses.

Não é a palavra que é importante. É a ideia e ambição por trás dela, porque nem todas as mulheres receberam os mesmos direitos que eu. De fato, estatisticamente, muito poucas receberam. Em 1997, Hillary Clinton fez um famoso discurso em Pequim sobre direitos das mulheres. Infelizmente, muito do que ela queria mudar ainda é verdade hoje. Mas o que me impressionou foi que menos de 30% da audiência era masculina. Como nós podemos efetivar a mudança no mundo quando apenas metade dele é convidada a participar da conversa?

Homens, eu gostaria de usar essa oportunidade para apresentar o convite formal. Igualdade de gêneros é seu problema também. Até hoje eu vejo o papel do meu pai como pai ser menos válido na sociedade. Eu vi jovens homens sofrendo de doenças, incapazes de pedirem ajuda por medo de que isso os torne menos homens - de fato, no Reino Unido, suicídio é a maior causa de morte entre homens de 20-49 anos, superando acidentes de carro, câncer e doenças de coração. Eu vi homens frágeis e inseguros sobre o que constitui o sucesso masculino. Homens também não tem o benefício da igualdade.

Nós não queremos falar sobre homens sendo aprisionados pelos estereótipos de gênero, mas eles estão. Quando eles estiverem livres, as coisas vão mudar para as mulheres como consequência natural. Se homens não tem que ser agressivos, mulheres não serão obrigadas a serem submissas. Se homens não tem a necessidade de controlar, mulheres não precisarão ser controladas.

Tanto homens quando mulheres deveriam ser livres para serem sensíveis. Tanto homens e mulheres deveriam ser livres para serem fortes. É hora de começar a ver gênero como um espectro ao invés de dois conjuntos de ideais opostos. Deveríamos parar de nos definir pelo que não somos e começarmos a nós definir pelo que somos.

Todos podemos ser mais livres e é isso que HeForShe é sobre. É sobre liberdade. Eu quero que os homens comecem essa luta para que suas filhas, irmãs e esposas possam se livrar do preconceito, mas também para que seus filhos tenham permissão para serem vulneráveis e humanos e fazendo isso, sejam uma versão mais completa de si mesmos.

Você pode pensar: “Quem é essa menina de Harry Potter? O que ela está fazendo na ONU?”. É uma boa questão e, acreditem em mim, eu tenho me perguntado a mesma coisa. Não sei se sou qualificada para estar aqui. Tudo que eu sei é que eu me importo com esse problema e eu quero melhorar isso. E tendo visto o que eu vi e sendo apresentada com a oportunidade, eu acho que é minha responsabilidade dizer algo. Edmund Burke disse: “Tudo que é preciso para que as forças do mal triunfem é que bons homens e mulheres não façam nada.”

Com os nervos a flor da pele por conta deste discurso e em um momento de dúvida eu disse pra mim mesma: “Se não eu, quem? Se não agora, quando?”. Se você tem as mesmas dúvidas quando apresentado uma oportunidade, eu espero que essas palavras possam ajudar.

Porque a realidade é que se a gente não fizer nada, vai demorar 75 anos, ou até eu ter quase 100 anos antes que mulheres possam esperar receber o mesmo tanto que os homens no trabalho. 15,5 milhões de garotas vão se casar nos próximos 16 anos como crianças. E nas taxas atuais não vai ser até 2086 que todas as crianças da África rural poderão receber educação fundamental.

Se você acredita em igualdade, você pode ser um desses feministas “sem saber” sobre os quais eu falei mais cedo. E por isso, eu te aplaudo.

Estamos lutando, mas a boa notícia é que temos a plataforma. É chamada HeForShe. Eu convido você a ir em frente, ser visto e se perguntar: “Se não eu, quem? Se não agora, quando?”

Obrigada.

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» Veja o discurso no YouTube (em inglês)

Crédito da imagem: Divulgação/HeForShe/ONU

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19.9.14

Caixas quebradas

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Há quase dez anos atrás eu vivenciei um instant karma, ou um carma instantâneo.

Somente quem passou por isso, e crê em carma, pode saber como é. Em todo caso, outro dia tentei descrever nas redes sociais, comentando uma notícia que tinha a ver com o tema:

Um dia eu fiquei muito revoltado com a minha mulher. Acabei dando um soco na lateral do armário, e toda a minha coleção de CDs de música caiu junto com uma prateleira que se deslocou da parte superior. Naquele momento eu pensei comigo mesmo: instant karma! Até hoje, quando vejo as caixas quebradas dos meus CDs ao abrir o armário, lembro da importante lição que aprendi da Natureza naquele dia...

A notícia em questão era uma notícia do blog do psiquiatra Jairo Bauer, onde ele trazia dados de um estudo realizado nos EUA que chegou a aterradora conclusão de que um em cada cinco americanos agredia a sua parceira.

Como era um canto das redes sociais frequentado por feministas, elas logo tratarem de me alertar:

Pesquisas indicam que o soco no armário é só o começo, depois você poderá estar dando um soco na cara da sua mulher, o que provavelmente é o que gostaria de ter feito!

Posso lhe garantir que o trauma que sua mulher passou não se compara as caixas quebradas dos seus CDs de música!

Vocês podem pensar que eu fiquei chateado com esse tipo de reação... Muito pelo contrário, é o tipo de reação que deveria se esperar de mulheres feministas que estão bem informadas sobre o quadro da violência doméstica no Brasil e no mundo. Melhor pecar pelo exagero do julgamento apressado do que pela leniência da maioria, que costuma dizer que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Mas talvez tivesse ajudado se eu houvesse explicado melhor o que eu senti exatamente naquele dia, há quase dez anos atrás...

Como eu estava com uma raiva muito súbita da minha mulher, achei por bem sair do quarto onde estávamos discutindo e ir para outro, e foi assim que entrei no quarto em que soquei a lateral do armário. Ora, é óbvio que eu soquei o armário por estar com raiva, é óbvio que se esta raiva não fosse tratada, compreendida e, quem sabe, domesticada, nalgum dia o alvo do meu soco poderia realmente ser o rosto da minha mulher – e isto é muito grave!

Mas não foi sem a ajuda do instant karma que eu consegui chegar a tal conclusão. Na verdade, eu não dou a mínima para as caixas quebradas dos CDs. De fato, se quisesse eu poderia ter comprado outros CDs. O que me interessa nas caixas quebradas é o símbolo que elas representam, e que me trazem a lembrança daquela vivência:

Quando vi toda a minha coleção de CDs no chão, foi como se ouvisse uma mensagem da Natureza: “Você tem certeza de que quer prosseguir neste caminho? Daqui para frente será só amor corrompido, e cada vez mais corrompido”.

Até hoje, toda vez que abro meu armário e troco de roupa, me lembro daquela mensagem da Natureza.


Um estudo do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, especialmente em casos de agressão realizadas por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Neste país, a cada uma hora e meia, em média, morre uma mulher vítima da violência do seu companheiro.

Nos EUA, recentemente, imagens do circuito interno de um hotel flagraram um astro do futebol americano agredindo a sua esposa dentro do elevador. As imagens mostram que ela desmaiou com um único soco, que a fez bater com a cabeça no corrimão de aço do elevador. Alguns andares depois, o jogador a arrasta para fora do elevador e espera ela acordar, enquanto um funcionário do hotel tem o cuidado de segurar a porta para que não se fechasse nas pernas dela.

Devido a enorme pressão popular por conta da divulgação das imagens na web, o Baltimore Ravens, time pelo qual jogava, decidiu demiti-lo, enquanto a liga de futebol americano, a NFL, o suspendeu indefinidamente. Agressões de jogadores as suas esposas ocorrem há anos nos EUA, dificilmente tal caso teria esse desfecho não fosse pela divulgação das imagens.

Mesmo assim, esta foi a mensagem que a esposa agredida divulgou na web, no dia seguinte a agressão:

Tirar algo do homem que amo e que ele se dedicou por toda a vida apenas para ganhar audiência é horrível. Essa é nossa vida! Por que vocês não entendem? Se a intenção era nos machucar, nos envergonhar, nos fazer sentir solitários, tirar toda nossa felicidade, vocês tiverem sucesso.


Esses foram apenas alguns dados estatísticos que refletem o atual estágio de nossa sociedade. Aqui, nos EUA e em boa parte do dito mundo civilizado.

Já foi muito pior, é claro. Não muitos anos atrás a alegação de “legítima defesa da honra” ainda salvava muitos maridos homicidas da condenação pelos seus crimes. Após o caso Doca Street isso mudou. Mas ainda precisamos mudar muito, muito mais!

A própria Lei Maria da Penha, um marco na legislação brasileira, só conseguiu reduzir ligeiramente a mortalidade das mulheres nos primeiros anos após a sua implementação. Hoje a curva da violência doméstica letal já retornou aos mesmos patamares do período anterior a Lei.

Mas ao menos hoje em dia tal assunto não é mais varrido para debaixo do tapete. Ao menos hoje em dia muitos homens e mulheres, feministas ou não, já têm plena compreensão da devastação que a violência doméstica causa em nossa sociedade e em nossas relações, na maioria das vezes, silenciosamente.

O macho é educado para ser viril, para não chorar, para sustentar a casa, etc. Mas o macho também é educado para proteger suas famílias, seus filhos e, sobretudo, para nunca, em hipótese alguma, agredir uma mulher ou uma criança. Como podemos ver, a visão dos machos sobre a própria educação é um tanto quanto seletiva. Muitos provavelmente ainda achariam uma tragédia muito maior chorar em público do que ser visto agredindo a mulher... A educação dos machos falhou, é o que milhares de estatísticas demonstram.

Eu gostaria muito que todo o “homem macho” pudesse um dia sentir, vivenciar, o instant karma que eu passei. Eu gostaria de fazê-los compreender que este tal caminho de “ser muito macho” é uma dos caminhos mais nocivos e corruptores que o ser humano já inventou. Corruptor de almas, nocivo a própria vida.

Eu gostaria, enfim, que todos pudessem um dia ver a si mesmos como eu me vi naquelas caixas quebradas, que em realidade também eram o reflexo de uma alma que vinha se rachando...

Mas eu me consertei a tempo. Espero que outros tenham a mesma sorte. Mas, enquanto a sorte não vem, espero também que as suas companheiras compreendam, cada vez mais, que o amor não tem nada, absolutamente nada, a ver com qualquer tipo de violência.


Segundo a falsa ideia de que não é possível reformar a sua própria natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos defeitos em que de boa-vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança para serem extirpados. É assim, por exemplo, que o indivíduo, propenso a raiva, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se confessar culpado, culpa seu organismo, acusando a Deus por suas próprias faltas. (Hahnemann)

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Crédito da imagem: Google Image Search/Conversation

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15.9.14

Esta terra é minha!

se indagava o Chefe Seattle, em resposta a oferta do então presidente americano sobre as terras de seu povo: "Como alguém pode comprar ou vender a terra? Essa ideia é estranha para nós". A ideia de que uma parte da Terra pode "pertencer a um povo", seja pela conquista sangrenta ou pela oferta de riquezas, ia de encontro a crença dos indígenas norte-americanos: "Somos parte da terra e ela é parte de nós. Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida - ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo".

Em This Land is Mine, um curta de animação tão melodioso quanto brutal, Nina Paley parece nos trazer uma reflexão muito parecida com a do Chefe Seattle. Trata-se de uma breve história do que vem ocorrendo no território hoje disputado por Israel e Palestina, e que já foi conhecido por diversos outros nomes, desde a pré-história até os dias atuais... Assistindo até o final, fica difícil não se perguntar: "O que diabos, afinal, tem de santa essa terra?"

» Um pequeno guia dos povos retratados no curta (em inglês)

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Crédito da trilha sonora: The Exodus Song - melodia de Ernest Gold, com letra de Pat Boone e voz de Andy Williams

Crédito da imagem: Divulgação/This Lands is Mine

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14.9.14

O lado animal

Nas tradições místicas em geral o que muitos chamam de "desejos do corpo" está associado ao chamado lado animal. Rumi o chamava de Asno. Mas o interessante é que o lado animal não é algo que exista para ser exterminado, pois neste caso o "extermínio" nada mais será do que o "varrer para debaixo do tapete da consciência". E, quanto mais demônios internos pensamos exterminar, mais e mais Inferno se forma em nosso inconsciente... Até o dia da faxina!

O lado animal não existe para ser exterminado, mas para ser domesticado. E é precisamente nesta domesticação que aprendemos a ser angelicais, por pura dualidade: nos tornamos amigos de nossos demônios internos, os compreendemos e perdoamos, e assim nos tornamos anjos... Afinal, se os anjos moram no Céu, é no Inferno que eles trabalham.

Já o pecado nada mais é do que errar o alvo. Pensar no pecado como algo intransponível e sem solução é, muitas vezes, apenas a desculpa daqueles que desistiram de acertar o alvo. "Já estou no Inferno mesmo, qual a diferença?"... Ora, a diferença é que é exatamente por estarmos no Inferno que devemos buscar o Céu.

O Céu é o alvo, mas não chegaremos lá necessariamente após a vida, nem pelo julgamento de algum deus estranho. O Céu já está espalhado por tudo o que há, só nos faltam olhos preparados para o enxergar!

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Crédito da imagem: Katerina Plotnikova

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7.9.14

Lançamento: Cancioneiro

As Edições Textos para Reflexão voltam a publicar Fernando Pessoa.

Em Cancioneiro, temos uma extensa seleção dos poemas que Pessoa escreveu e assinou o seu próprio nome, isto é, que não pertencem a nenhum dos seus heterônimos.

Se há muitos que já se afastaram desta compilação por haver sido rotulada de esotérica, mística e hermética, nos dias de hoje os amantes de Pessoa são cada vez mais atraídos por ela pelos exatos mesmos atributos...

Um livro digital já disponível nas seguintes lojas:

Amazon Kindle Kobo Livraria Cultura

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Abaixo, seguem alguns poemas da edição:

[Entre o sono e o sonho]

Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho,
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

***

[Tenho tanto sentimento]

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

***

[Grandes mistérios]

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

***

[Fresta]

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quando a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado,

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

***

[Iniciação]

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.

...

O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

...

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.

...

Neófito, não há morte.

(Fernando Pessoa)


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2.9.14

Eu vivia tudo novamente...

Já falamos aqui no blog sobre António Zambujo, um dos músicos e compositores mais genias do fado português moderno. E, se com o seu Fortuna ele criou um fado quase budista, neste Algo estranho acontece ele nos traz uma das letras mais belas da história da música portuguesa, profundamente espiritual e, para aqueles que creem em reencarnação, algo que dificilmente se ouve sem se chorar por dentro (e, as vezes, por fora também).

No vídeo abaixo, temos uma montagem em cima da canção original, por Cristina Cunha Gil:

» Veja António tocando a mesma música, ao vivo.


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