Deus tá vendo essa zoeira!
É este o slogan de um dos jogos de cartas mais polêmicos dos últimos tempos, o Pequenas Igrejas, Grandes Negócios.
Quando ouvi falar a primeira vez deste projeto, foi da boca do seu próprio criador, meu amigo Marcelo Del Debbio. O Marcelo, como muitos devem saber, é um dos divulgadores de ocultismo e espiritualidade mais conhecidos do país, assim como um dos críticos mais veementes da “picaretagem” de alguns dos ditos espiritualistas de todos os credos.
A primeira coisa que pensei foi que a temática do jogo parecia ser, em geral, um ataque meio gratuito aos evangélicos. Tive medo de que o resultado final fosse um tanto generalista e enfiasse todos os evangélicos no mesmo saco. Obviamente, para muitos evangélicos “picaretas”, é exatamente isso o que pensam do jogo desde o primeiro momento em que souberam dele.
Mas o resultado final não foi bem esse... Antes de chegarmos lá, é preciso lembrar que o sistema do jogo já vinha sendo bolado há cerca de quatro anos pelo Marcelo e o seu amigo, Norson Botrel, ambos designers de jogos de RPG há muitos anos. Porém, na hora de finalizar tudo e efetivamente criar as ilustrações, imprimir as cartas, etc., eles tiveram de pedir ajuda a diversos outros amigos...
As ilustrações ficaram a cargo do Roe Mesquita, o design e o projeto gráfico, com Rodrigo Grola, e o marketing e a edição dos vídeos de divulgação com o PH Alves (do Conversa entre Adeptus). Todo esse pessoal é muito gente boa e também faz parte da comunidade espiritualista que se criou em torno do blog do Marcelo, o Teoria da Conspiração, mas ainda faltava um elemento essencial: Como pagar o trabalho dessa gente toda? Como pagar a impressão dos primeiros baralhos?
Foi aí que o Marcelo decidiu recorrer ao crowdfunding, usando o site Catarse. No crowdfunding, um projeto qualquer é apresentado com uma meta de financiamento (em reais) e, geralmente, uma série de bônus para aqueles que doarem valores maiores. No caso do Pequenas Igrejas, Grandes Negócios (PIGN), a meta mínima para a produção do jogo era de 29 mil reais. A cada 5 mil reais extras arrecadados, eram prometidos novas cartas e suplementos disponíveis desde o lançamento. Se o financiamento total ultrapassasse a última marca da lista, 75 mil reais, eles ainda prometiam entregar sleeves (embalagens plásticas) para cada carta do baralho a quem houvesse investido acima de certo valor.
Ao final de cerca de 2 meses de crowdfunding, o PIGN se tornou um dos projetos mais bem sucedidos do Catarse, tendo arrecadado quase 93 mil reais! Eu mesmo fui um dos 12 que doaram os valores mais altos disponíveis (400 reais, nem tanto se comparado a outros projetos do Catarse), e garanti uma carta com o meu pastor no jogo, o Bispo Sinésio!
Há algumas semanas atrás a minha edição do jogo chegou por correio, com assinaturas de diversos integrantes do projeto, e com quase 400 cartas, incluindo todas as cartas bônus disponíveis... A grande questão então passou a ser: será que eu usaria esse jogo apenas para ficar rindo das cartas, ou será que daria para jogá-lo realmente? Bem, com a ajuda do pessoal que segue o blog do Marcelo aqui na minha cidade, consegui jogar algumas partidas bem divertidas...
Na verdade o jogo é bem mais do que uma simples crítica bem humorada a “picaretagem” de alguns ditos espiritualistas. Ele realmente funciona como jogo, e acredito que não deveríamos esperar menos de designers como o Marcelo e o Norson. Como não sou exatamente um especialista em jogos de cartas do tipo (eles mesmos dizem que se inspiraram em Magic: The Gathering, BANG!, UNO e Munchkin para criar o mix de regras), não posso afirmar que se trata “do melhor jogo de cartas de todos os tempos”, mas certamente é um jogo tão divertido de jogar quanto o Munchkin (o que mais conheço da lista anterior), com a vantagem de ser ambientado num “universo brasileiro” – ou melhor, “num mundo onde as igrejas são usadas por pessoas trapaceiras e inescrupulosas para lavar dinheiro do crime, vender porcarias inúteis, explorar a boa fé de pessoas ignorantes e obter poder político; um universo muito diferente da nossa realidade, onde as igrejas são centros comunitários de ajuda ao próximo, gerenciadas por baluartes do bom caratismo”.
O que nos traz de volta a questão inicial: será que o PIGN coloca num mesmo saco tanto os “picaretas” quanto os verdadeiros espiritualistas? Na verdade, não, nem de longe... Para começar, apesar do jogo se focar, como o próprio título diz, nas igrejas, a verdade é que há críticas a “picaretas” de várias vertentes religiosas – para citar dois exemplos, temos no baralho os pastores “Mãe Binah” e “ET Bilu Bilu”, que estão longe de se referirem a pastores evangélicos do “mundo real”.
Além disso, em nenhum momento é citado o nome de Jesus. Não que isso por si só fizesse alguma diferença, mas não deixa de ser revelador o respeito que mantiveram ao seu nome. Em PIGN, encontramos “Jezuis”, e não “Jesus”.
Por fim, o que mais achei curioso no jogo é que todas as cartas de ataque (o objetivo do jogo é acabar com a reputação dos pastores adversários, daí existirem as “cartas de ataque”) se referem a notícias que foram vinculadas na mídia real (independente de serem verdadeiras ou não, mas o absurdo todo é que a grande maioria é verdadeira).
Assim, quando atacamos nossos amigos na mesa de jogo usando cartas como “Igreja é dona do maior complexo de saunas gays da Europa” (carta #215), “Religioso afirma que sexo ilícito é causa dos terremotos” (#187), “Pastor ex-gay quer criar ‘Conselho estadual para a defesa dos direitos héteros’” (#192), “Barak Obama está possuído pelo demônio, afirma pastor que faz exorcismo por Skype” (#162), ou ainda “Ex-obreira fica grávida do Diabo e dá à luz 3 caveiras de plástico!” (#31), ficamos nos perguntando se este jogo chegou mesmo a conseguir ser mais absurdo do que a nossa realidade – e então, ao menos nos resta o consolo: Deus tá vendo essa zoeira!
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» O PIGN pode ser adquirido na loja online da Daemon Editora
Crédito das imagens: Divulgação/PIGN
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