Há muito tempo se sabe  que os neandertais são uma espécie extinta, do gênero homo, que habitaram o Oriente Médio e a Europa desde cerca de 300  mil anos atrás. Também por muito tempo acreditou-se que os neandertais eram uma "espécie inferior" ao homo sapiens – chamados homo neanderthalensis –, e que eram  seres quase irracionais, praticamente “homens das cavernas”, que sequer tinham  a capacidade de falar qualquer linguagem. Segundo essa crença, a extinção dos  neandertais, há cerca de 29 mil anos atrás, estaria explicada pela competição  com o homem moderno na medida em que este avançava para ocupar todo o globo,  incluindo as terras nativas onde os neandertais se desenvolveram por milhares  de anos.
Em 1856, três anos  antes da publicação de “A origem das espécies”, do co-autor da teoria da  evolução, Charles Darwin, foram encontrados os primeiros fósseis de neandertal  numa gruta do pequeno Vale de Neander, na Alemanha [1]. Este vale, que também  emprestou seu nome a própria espécie neandertal, foi assim batizado em homenagem  a Joachim Neander: pastor e compositor do séc. XVII, autor de cânticos religiosos ainda hoje  populares entre os protestantes alemães. Consta que ele gostava de procurar  inspiração neste vale, então com uma paisagem idílica. Numa tradução para o  português, o nome deste vale seria Vale  do Homem Novo. Numa feliz coincidência, os neandertais não poderiam ter  sido batizados por nome mais apropriado – os homens novos.
Para compreender como a mesma ciência que um dia classificou os  neandertais como “homens das cavernas”, recentemente “desmistificou” esta  crença, e descobriu evidências de uma espécie que, em sua época, era  provavelmente tão ou mais desenvolvida que o homo sapiens, precisamos antes voltar ainda mais no tempo...
Uma comparação moderna do DNA de hominídeos (espécies ancestrais do homo sapiens) e humanos vivos sugere que  o homo sapiens surgiu entre 120 mil e  220 mil anos atrás na África. Um grupo de talvez apenas 10 mil deles então  deixou o continente entre 50 mil e 100 mil anos atrás, talvez pelas mudanças  climáticas ocasionadas por uma erupção vulcânica monumental na ilha de Sumatra  (há cerca de 71 mil anos), talvez simplesmente porque decidiram explorar o  horizonte à frente. 
Esse movimento migratório não deve ser compreendido como um movimento exploratório,  mas como uma lenta migração onde a maior parte dos descendentes terminava por  permanecer nas terras próximas de onde nasceram, enquanto apenas alguns poucos  continuavam seguindo adiante... Já os neandertais evoluíram a partir de um ancestral comum dos homo sapiens, provavelmente o homo erectus, e já haviam chegado a Europa e ao Oriente Médio quando os primeiros exploradores sairam da África. 
Depois de um breve período de coexistência no Oriente Médio, onde tanto o homem moderno quanto os neandertais geraram filhos uns dos outros, os homo  sapiens partiram para dominar a Ásia, a Oceania e as Américas – através da  Ponte Terrestre de Bering, que hoje derreteu. Os neandertais preferiram, por  alguma razão, continuar no próprio Oriente Médio e na Europa. Nalgum dia  histórico da pré-história, os homo  sapiens finalmente decidiram adentrar a Europa, e encontraram seus primos  entre uma e outra caçada. O que terão pensado uns dos outros? Teria a tradição  oral de suas tribos selvagens conservado as histórias de suas origens em comum?  É quase certo que não – é quase certo que se entenderam como seres  completamente distintos.
Os neandertais desenvolveram-se em homens e mulheres mais atarrancados,  com braços e pernas menos alongados, para que pudessem conservar melhor o calor  corporal no frio europeu do Pleistoceno. Seus narizes eram mais largos e sua  faces, quem sabe, mais “grotescas”. Os cérebos, porém, eram maiores e algumas  gramas mais pesados – os neandertais tinham aproximadamente “uma bola de bilhar”  a mais de massa cerebral, em relação aos seus primos.
A teoria de que os neandertais careciam de  uma linguagem complexa foi difundida até 1983, quando um osso hióide de  neandertal foi encontrado na caverna Kebara, em Israel. O osso encontrado é  praticamente idêntico ao dos humanos modernos. O hióide é um pequeno osso que  segura a raiz da língua no lugar, um requisito para a fala humana e, dessa  forma, sua presença nos neandertais implica alguma habilidade para a fala.
Muitos acreditam que mesmo sem a evidência do osso hióide, é óbvio que  ferramentas avançadas como as do período musteriense, atribuídas aos  neandertais, não poderiam ser desenvolvidas sem habilidades cognitivas  incluindo algum tipo de linguagem falada. Pesquisadores identificaram genes extraídos  de fósseis que comprovariam que os neandertais possuíam capacidade de falar.  Sua fala teria sido lenta, compassada e naralizada.
Certamente os neandertais foram muito mais do que “homens das cavernas”.  Porém, teriam sido eles mais inteligentes e avançados que os homo sapiens de sua época [2]? Se este  foi o caso, como diabos teriam sido extintos? Porque afinal hoje continuamos  nos entendendo como homo sapiens, e  não neandertais?
Em 2008, cientistas anunciaram a decodificação do genoma mitocondrial do  neandertal. Na época, concluíram que as evidências genéticas indicavam que os  neandertais provavelmente não se misturaram com o homo sapiens, apesar de terem convivido com seres humanos modernos  por milhares de anos. O genoma mitocondrial, porém, é só uma amostra do DNA de  um organismo... Nos anos seguintes, até meados de 2010, cientistas sequenciaram  60% do genoma completo dos neandertais e compararam o resultado com o genoma de  cinco pessoas de diferentes partes do mundo (África do Sul, África Ocidental, Papua-Nova  Guiné, China e França).
Os autores do trabalho, detalhado em dois artigos na revista “Science”,  afirmam que os humanos modernos e os neandertais “muito provavelmente” se  cruzaram “em pequena medida”. A área em que os esparsos encontros românticos  ocorreram, provavelmente, foi o Oriente Médio, à medida que o homo sapiens saía da África em direção à  Ásia. De 1% a 4% do genoma do homem moderno parece ser dos neandertais, estimam  os autores [3]. Apenas alguns africanos parecem possuir um genoma “completamente  humano”, todos os outros povos da Terra têm traços do genoma neandertal.
Teriam os neandertais sobrevivido em nós? Seremos nós os filhos dos  neandertais? Sabe-se que os registros de fósseis neandertais foram sumindo  gradualmente na linha de tempo pré-histórica – primeiro, do Oriente Médio,  depois do oeste europeu, então o norte e a região central, até que os últimos  fósseis apontam para a península Ibérica, há cerca de 29 mil anos. O que teria “varrido” os neandertais para oeste, até sua provável extinção? 
Isso, não se sabe ao certo. Mas eis que ainda temos uma última e  extraordinária evidência de que os neandertais encontraram uma forma de,  literalmente, permanecer entre nós: O menino do Lapedo foi descoberto em 1998, numa expedição ao Abrigo do Lagar Velho, na cidade portuguesa de Leiria, para  estudar algumas pinturas rupestres descobertas anteriormente. 
A relevância deste achado arqueológico, com cerca de 24.500 anos, se dá  pelo fato do fóssil ter pertencido a uma criança que teria nascido do  cruzamento de um homo neanderthalensis com um homo sapiens, o que revelaria  que espécies diferentes de humanóides poderiam cruzar entre si e gerar  descendentes. Com o menino do Lapedo podemos também sugerir que o neandertal  desapareceu não por extinção, mas sim por interação entre eles e os homo sapiens, e uma absorção do mesmo.
Nós somos, portanto, os verdadeiros filhos dos neandertais. Carregamos  em nós os registros de seus antepassados, e alguma parte de nosso DNA vêm deles... Talvez, quem sabe, a melhor parte.
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[1] Na verdade partes  de um esqueleto neandertal foram anteriormente encontradas na pedreira de  Forbes, em Gibraltar, ainda em 1848. Mas por alguma razão estranha, a  descoberta dita “original” pela história da ciência, e também certamente a mais  famosa – tanto que deu origem ao nome da espécie –, foi esta alemã. 
[2] Autores mais radicais,  cujas teorias são consideradas fantasiosas pela maioria da comunidade  científica, como Stan Gooch, em "Cities of Dreams: the Rich Legacy of  Neanderthal Man Which Shaped Our Civilization" (1989), defendem mesmo que  os neandertais eram detentores de uma cultura tão complexa quanto as atuais, e  que teria mesmo servido para fundar muitos dos chamados arquétipos universais  existentes entre os humanos modernos, em resultado da sua hibridização com os  neandertais. 
[3] Este valor seria o mínimo, alguns pesquisadores postulam  que poderia chegar a 10% ou até mesmo a 20%. O DNA neandertal é 99,7% idêntico  ao DNA do humano moderno, enquanto o DNA dos chimpanzés, por exemplo, é 99,8%  idêntico ao nosso. Isso sugere, na prática, que somos todos espécies  aparentadas de forma muito próxima... A diferença entre os neandertais e os  chimpanzés é, entretanto, crucial –  os últimos claramente nos precederam em centenas de milhares de anos na árvore  evolutiva, enquanto que os primeiros têm uma origem muito mais recente, talvez não mais do que 100 mil anos anterior a nossa. O DNA  neandertal é, portanto, provavelmente muito mais importante no que tange a  cognição e linguagem humanas, fruto da nossa origem e inteligência em comum.
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Nota: este artigo chegou a ficar cerca de 6h no ar (em 19/06/11) contendo graves erros nas informações científicas, particularmente na nota #3, mas agora está corrigido. Peço desculpas pela falha.
Crédito das imagens: [topo] Joe McNally, National Geographic (reconstituição de uma neandertal fêmea); [ao longo] Bettmann/Corbis (reconstituição de um neandertal macho).
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