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31.7.13

Sobre a leitura e os livros

Texto de Arthur Schopenhauer em "A arte de escrever” (Ed. LP&M) – trechos do capítulo “Sobre a leitura e os livros”. Tradução de Pedro Süssekind. As notas ao final são minhas.

A ignorância degrada os homens somente quando se encontra associada à riqueza. O pobre é sujeitado por sua pobreza e necessidade; no seu caso, os trabalhos substituem o prazer e ocupam o pensamento [1]. Em contrapartida, os ricos que são ignorantes vivem apenas em função de seus prazeres e se assemelham ao gado, como se pode verificar diariamente. Além disso, ainda devem ser repreendidos por não usarem sua riqueza e ócio para aquilo que lhes conferiria o maior valor.

Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental, do mesmo modo que um estudante, ao aprender a escrever, refaz com a pena os traços que seu professor fizera a lápis. Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. É por isso que sentimos um alívio ao passarmos da ocupação com nossos próprios pensamentos para a leitura. No entanto, a nossa cabeça é, durante a leitura, apenas uma arena de pensamentos alheios. Quando eles se retiram, o que resta? [2]

Em consequência disso, que lê muito e quase o dia todo, mas nos intervalos passa o tempo sem pensar em nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo – como alguém que, de tanto cavalgar, acabasse desaprendendo a andar.

Mas é este o caso de muitos eruditos: leem até ficarem burros. Pois a leitura contínua, retomada de imediato a cada momento livre, imobiliza o espírito mais do que um trabalho contínuo, já que é possível entregar-se a seus próprios pensamentos durante esse trabalho. Assim como uma mola acaba perdendo a sua elasticidade pela pressão incessante de outro corpo, o espírito perde a sua pela imposição constante de pensamentos alheios.

E, assim como o excesso de alimentação faz mal ao estômago [...], também é possível, com excesso de alimento espiritual, sobrecarregar e sufocar o espírito. Pois, quanto mais se lê, menor a quantidade de marcas deixadas no espírito pelo que foi lido: ele se torna como um quadro com muitas coisas escritas sobre as outras. Com isso não se chega à ruminação: mas é por meio dela que nos apropriamos do que foi lido, assim como as refeições não nos alimentam quando comemos, e sim quando digerimos [3].

[...] Além de tudo, os pensamentos postos em papel não passam, em geral, de um vestígio deixado na areia por um passante: vê-se bem o caminho que ele deixou, mas para saber o que ele viu durante o caminho é preciso usar os próprios olhos [4].

Nenhuma qualidade literária pode ser adquirida pelo simples fato de lermos escritores que possuem tal qualidade. Contudo, se já as possuímos in potentia, podemos evocá-las, trazê-las à nossa consciência, podemos ver o uso que é possível fazer delas, podemos ser fortalecidos na inclinação, na disposição para usá-las, podemos julgar o efeito de sua aparição em exemplos e, assim, aprender a maneira correta de usá-las; e só assim possuiremos tais qualidades in actu.

Essa é a única maneira de a leitura ensinar a escrever, na medida em que ela nos mostra o uso que podemos fazer de nossos próprios dons naturais; portanto, pressupondo sempre a existência deles. Sem eles, não aprenderemos coisa alguma pela leitura, a não ser uma forma fria e morta, de modo que não nos tornaremos nada mais do que imitadores banais [5].

[...] Quem não sentiria vontade de chorar, à vista dos grossos catálogos editoriais, se pensasse que, de todos aqueles livros, já em dez anos não haverá nenhum vivo. Ocorre na literatura o mesmo que na vida: para onde quer que alguém se volte, depara-se logo com o incorrigível vulgo da humanidade. [...] Isso explica a quantidade de livros ruins, essa abundante erva daninha da literatura que tira a nutrição do trigo e o sufoca. Pois eles roubam tempo, dinheiro e atenção do público, coisas que pertencem por direito aos livros bons e a seus objetivos nobres, enquanto os livros ruins são escritos exclusivamente com a intenção de ganhar dinheiro ou criar empregos [6].

Nesse caso, eles não são apenas inúteis, mas realmente prejudiciais. Nove décimos de toda a nossa literatura atual não têm nenhum outro objetivo a não ser tirar alguns trocados do bolso do público: para isso, o autor, o editor e o crítico literário compactuam [7].

Um golpe pior e mais maldoso, porém mais digno de consideração, foi dado pelos literatos, pelos escritores prolixos que fazem da literatura o seu ganha-pão, contra o bom gosto e a verdadeira formação da época, possibilitando que eles levem todo o mundo elegante na coleira, tornando-o adestrado a ler no momento certo, isto é, fazendo todos lerem sempre a mesma coisa, o livro mais recente, a fim de ter um assunto para conversar em seu círculo.

[...] Como as pessoas leem sempre, em vez dos melhores de todos os tempos, apenas a última novidade, os escritores permanecem no círculo estreito das ideias que circulam, e a época afunda cada vez mais em sua própria lama [8].

Por isso é tão importante, em relação ao nosso hábito de leitura, a arte de não ler. Ela consiste na atitude de não escolher para ler o que, a cada momento determinado, constitui a ocupação do grande público [9]. [...] Quanto às obras ruins, nunca se lerá pouco quando se trata delas; quanto às boas, nunca elas serão lidas com frequência excessiva. Livros ruins são veneno intelectual, capaz de fazer definhar o espírito.

Para ler o que é bom uma condição é não ler o que é ruim, pois a vida é curta, e o tempo e a energia são limitados.

***

[1] Vale lembrar que na época de Schopenhauer os pobres trabalhavam por quase todas as horas despertas de seus dias, sobrando muito pouco tempo livre para o lazer que, em todo caso, devido ao analfabetismo geral, geralmente nada tinha o que ver com livros.

[2] O autor faz um elogio da leitura como “fuga da realidade” sem se esquecer de seu maior perigo: a alienação pela fossilização da capacidade de pensar por si mesmo. Na sequência ele fala do problema e de como remedia-lo.

[3] Apesar da metáfora meio bruta com a ruminação, Schopenhauer está falando de algo essencial a todo leitor, estudante ou buscador da sabedoria: a reflexão. Não à toa este blog tem o título que tem :)

[4] Neste curto parágrafo o autor resume todo o problema da linguagem e das palavras: serão sempre, como bem disse o poeta John Galsworthy, tão somente cascas de sentimento. Nenhum manual de natação poderá algum dia nos fazer experimentar exatamente o que sente aquele que mergulha no mar – somente saberemos ao mergulharmos nós mesmos.

[5] Khalil Gibran resumiu o tema numa frase: “Homem algum poderá revelar-vos senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entendimento”. Alcançar, desvelar e desenvolver aos próprios dons naturais é e sempre será muito mais importante do que o mero acúmulo mental de frases, citações e histórias de outros autores.

[6] Se já criticava ferozmente a crescente produção de livros irrelevantes naquela época, imagina o que o autor acharia do atual mercado editorial!

[7] Não é de surpreender que Schopenhauer tenha feito tão poucos amigos, e tantos inimigos, no meio acadêmico de sua época. Entretanto, apesar de não medir as palavras que utilizava, ele falava muitas verdades inconvenientes. De fato, até hoje as coisas não mudaram quase nada.

[8] As Edições Textos para Reflexão foram criadas também no intuito de remediar um pouco este quadro que, afinal, dura até hoje. Lá irão encontrar grandes obras em domínio público, e pelo preço de um café (no caso das versões digitais). Obs.: Infelizmente não há nenhuma tradução de Schopenhauer para o português em domínio público, mas temos uma de Nietzsche já publicada.

[9] Muito embora, em raríssimas ocasiões, o “grande público” seja incitado a ler obras grandiosas, como por exemplo os livros de J. R. R. Tolkien, na ocasião do lançamento das versões deles nos cinemas mundiais.

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Crédito da imagem: Joel "Boy Wonder" Robinson

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29.7.13

Uma entrevista com Papa Francisco

Em uma entrevista histórica, a primeira (exclusiva) desde que se tornou Papa, Francisco responde sem hesitação (e com toda a doçura que lhe é peculiar) a todas as perguntas do jornalista Gerson Camarotti da GloboNews, provavelmente um dos homens que mais compreende a política vaticanista; mesmo estando fora do Vaticano. A entrevista foi concedida na semana passada, enquanto o Papa participava da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no Rio de Janeiro.

No Estúdio I de hoje à tarde, Camarotti confessou que o Vaticano não havia aprovado a entrevista exclusiva, e que "tudo dependeu da intuição do Papa em aceitar falar". Além disso, ocorreu algo muito raro para o caso de uma entrevista a um chefe de Estado: nenhuma pergunta foi vetada a priori. Ou seja, Camarotti podia perguntar sobre o que quisesse perguntar - e não faltaram perguntas difíceis, como as que remetiam aos problemas de corrupção no chamado Banco do Vaticano (IOR) e as recentes manifestações nas ruas do Brasil. Sobre o que sabia responder, Francisco respondeu pausadamente e com enorme clareza, nos trazendo uma sabedoria que vai muito além da mera intelectualidade. Sobre o que não sabia responder, teve a humildade de admitir:

Alguns trechos selecionados da entrevista acima:


Trecho sobre o inconformismo da juventude

Um jovem que não protesta não me agrada. Porque o jovem tem a ilusão da utopia, e a utopia não é sempre negativa. A utopia é respirar e olhar adiante.

O jovem é mais espontâneo. Não tem tanta experiência de vida, é verdade, mas as vezes essa experiência nos freia. O jovem tem mais energia para defender suas ideias. O jovem é essencialmente um inconformista, e isso é muito lindo! Isso é algo comum a todos os jovens.

Então eu diria que, de uma forma geral, é preciso ouvir os jovens, dar-lhes meios de se expressar e cuidar para que não sejam manipulados.

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Trecho sobre a idolatria do dinheiro

O mundo atual em que vivemos caiu na feroz idolatria do dinheiro. Há uma política mundial impregnada pelo protagonismo do dinheiro. Quem manda hoje é o dinheiro.

Isso significa uma política mundial economicista, autossuficiente, sem qualquer controle ético, que vai arrumando os grupos sociais de acordo com essa conveniência.

O que acontece então? Quando reina no mundo a feroz idolatria do dinheiro, se concentra muito no centro, e as pontas da sociedade, os extremos, são mal atendidos, mal cuidados, descartados.

Até agora, vimos claramente como se descartam os idosos. Há toda uma filosofia para descartar os idosos: "Não servem. Não produzem". Os jovens tampouco produzem muito, pois é uma carga que precisa ainda ser formada. O que estamos vendo agora é que a outra ponta, a dos jovens, está em vias de ser descartada.

O alto percentual de desemprego entre os jovens da Europa é alarmante. Em certos países já há mais da metade dos jovens desempregados. Nós vemos um fenômeno de jovens descartados.

Então para sustentar este modelo político mundial, estamos descartando os extremos... Curiosamente, estes que são a promessa para o futuro. Porque o futuro quem vai dar são os jovens, que seguirão adiante, e os idosos, que precisam transferir sabedoria aos jovens. Descartando ambos, o mundo desaba.

Falta uma ética humanista em todo o mundo.

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Trecho sobre a Torre de Babel

Se me der um minuto, direi algo a mais sobre esse tema (Camarotti: "lógico que dou").

No século XII havia um rabino muito sábio que escrevia explicando à sua comunidade, com fábulas, os problemas morais que havia em algumas passagens da Bíblia.

Uma vez, falou sobre a Torre de Babel. Ele explicava assim:

Qual era o problema com a Torre, porque houve o castigo divino?

Ora, durante a construção da Torre, era necessário fabricar tijolos do barro, meter-lhes palha, levá-los ao forno e, já cozidos, transportá-los para o alto da edificação. Cada tijolo era um tesouro, devido a todo o trabalho envolvido em sua fabricação. Quando caía um tijolo do alto da Torre, era uma catástrofe, e o operário que o deixou cair era castigado.

Mas se caísse um operário, nada acontecia...

Hoje, há crianças que não têm o que comer no mundo; há crianças que morrem de fome e desnutrição; há doentes que não têm acesso a tratamento; há mendigos que morrem de frio no inverno; há crianças que não têm educação nem perspectivas de futuro. Nada disso é notícia.

Mas quando as bolsas de algumas capitais caem 3 ou 4 pontos percentuais, isso é tratado como uma grande catástrofe mundial. Compreende?

Esse é o drama desse "humanismo" desumano que estamos vivendo. Por isso é preciso recuperar os extremos da sociedade, os idosos e os jovens, e não cair numa globalização da indiferença em relação a esses dois extremos que são o futuro do mundo.


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28.7.13

Lançamento: Os Evangelhos de Tomé e Maria

Os evangelhos apócrifos são basicamente todos aqueles que não foram incorporados “oficialmente” ao Novo Testamento [NT]. Eles se relacionam claramente com Jesus Cristo e trazem alguns dos eventos citados no NT, muitas vezes sob outra ótica ou interpretação. A maior parte dos evangelhos apócrifos que chegaram à modernidade faz parte da Biblioteca de Nag Hammadi, um conjunto de pergaminhos antigos que foram enterrados em vasos no deserto, e só vieram a ser descobertos em 1945.

Esta edição traz dois dos textos mais profundos encontrados em Nag Hammadi: Os Evangelhos segundo Tomé e Maria Madalena. Os acompanha uma série de contos (O Mensageiro) inspirados no gnosticismo e escritos por Rafael Arrais, autor deste blog e tradutor e editor de diversos livros ligados a espiritualidade, a poesia e a filosofia.

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Abaixo, o prefácio do livro (uma cortesia de Giordano Cimadon):

Houvessem sido encontrados na forma de antigos pergaminhos escondidos no interior de velhos jarros de cerâmica enterrados nas silenciosas areias de algum deserto oriental, os contos que formam O Mensageiro seriam hoje considerados narrativas gnósticas escritas por algum místico iluminado dos primeiros tempos da era cristã.

Seu estilo se aproxima bastante daquele empregado por muitos dos antigos gnósticos quando narravam a vida do Salvador e os seus ensinamentos. Ao lado de preceitos éticos e filosóficos apresentados com grande clareza, existem verdades esotéricas veladas por uma poesia que pode ser facilmente confundida com aquela nascida da pena de um sábio persa, ou pelos diálogos que evocam a sabedoria dos enigmáticos mestres orientais.

Embora as palavras que tecem os contos tenham sido empregadas com a destreza que se espera de um escritor moderno, a sensação que nos transmitem é de que foram deliberadamente arranjadas por algum hábil criptógrafo dos tempos medievais. Símbolos e alegorias bastante significativos aguardam o momento em que serão decifrados por todo aquele que carregue em seu coração a chave da gnosis.

O personagem central de O Mensageiro é apresentado como um homem excepcional, um enviado de Deus, mas um homem que hesita, que num primeiro momento não compreende a sua missão, que considera a si mesmo um homem simples, comum como todos os outros. À exemplo dos gnósticos, ele descobre a verdade dentro de si mesmo e por seus próprios esforços, e pretende ajudar os seus semelhantes a encontrarem, eles também, a verdade, cada qual à sua própria maneira.

Este humano mensageiro possui um mestre de terras distantes, um sábio budista que viaja às terras do Oriente Médio em busca de um enviado divino. Sua mensagem sobre o Reino dos Céus é esotérica, podendo ser compreendida em diversos níveis, por cada um que a ouve, à sua maneira. Este é o caso do conto em que o mensageiro conquista a simpatia e contrai a amizade e o respeito do demônio tentador das sombras que o ameaça, e ainda o converte em um de seus mais dedicados discípulos.

Outro de seus grandes amigos foi um guerreiro que pretendia sacrificar a vida de muitos em nome de uma liberdade ilusória. Ao invés de repreender seu amigo pela disposição assassina movida por uma ignorância justificada, o mensageiro prefere ensinar a ele uma lição definitiva, oferecendo a si próprio como um sacrifício solitário, com o objetivo de garantir a todos a possibilidade de uma liberdade autêntica, que é a liberdade da alma.

Além disso, foi inspirado e levado pelos anjos dos Céus a conhecer, momentos antes de sua partida, a personagem gnóstica mais importante da era que marcou a difusão da essência de sua mensagem esotérica. Esta mulher foi escolhida para ser não só a sua mensageira e a sua divulgadora, mas também a sua discípula e sua amiga, alguém que parecia desfrutar de grande intimidade espiritual com o mensageiro.

Atrás de todas estas narrativas envolventes estão escondidas pérolas de conhecimento universal que o autor, em seus momentos de inspiração, elaborou através de sua poesia. Os esforços realizados pelo leitor que almeja a sabedoria oculta na representação heterodoxa de Jesus em O Mensageiro serão absolutamente recompensadores, e mais ainda em virtude da possibilidade de realizar este mesmo mergulho nas profundezas dos outros dois textos que o acompanham nesta edição primorosa: Os Evangelhos de Tomé e Maria.

No primeiro deles encontramos um Jesus absolutamente místico e mensageiro de ensinamentos revolucionários, os quais ensinam seus discípulos a encontrar o Reino dos Céus no fundo de suas próprias consciências, e não em algum lugar no tempo e no espaço. Este mensageiro do Evangelho de Tomé afirma que o Reino dos Céus está ao alcance de todos os seres humanos, e que estes podem alcançá-lo mediante a gnosis, a sabedoria divina, a qual é capaz de transformá-los radicalmente.

Através de suas palavras conhecemos um Jesus que não se apresenta como um intermediário entre o homem e o Reino dos Céus, mas como alguém que alcançou sua iluminação interior mediante seus próprios esforços, e que agora pretende indicar, com precisão esotérica, um caminho que levaria os demais até este mesmo estágio interior.

Esta iluminação é, portanto, uma busca, e uma busca que traz sofrimento e espanto, já que está relacionada com a descoberta íntima da natureza espiritual do homem e do universo que o cerca. Mudança de identidade e de percepção dos mundos físico e espiritual através do conhecimento que começa em si mesmo, eis aí o que propõe Jesus neste Evangelho que pode ser lido como uma mensagem espiritual bastante subversiva.

E uma mensagem como esta somente poderia ter sido concebida e entregue por um professor absolutamente libertário como era o Jesus retratado pelos gnósticos. Um professor que não se limitava à ensinar uma verdade através de uma forma única, pretendendo que ela servisse da esma maneira a todos os corações. Esta sua característica pode ser vista no Evangelho de Maria, o segundo evangelho que acompanha esta edição, onde encontramos um Jesus que ensinava a cada qual segundo sua inclinação particular para aprender, e tinha mensagens individuais que entregava a seus discípulos.

Foi exatamente o que aconteceu com Maria Madalena, sua discípula e companheira, quem recebeu do mensageiro um ensinamento particular e íntimo, que mais tarde entregou também aos demais discípulos. Entre outros motivos, este talvez tenha sido um dos que provocou a antipatia de Pedro por aquela mulher preferida entre os apóstolos.

Na ótica dos antigos gnósticos, aquele que se transformaria na pedra angular da Igreja de Cristo, segundo os evangelhos canônicos, não via com bons olhos a intimidade de Maria Madalena com o Salvador, e relutava em aceitar o papel de liderança que ela exercia naquela comunidade de primeiros cristãos.

É provável que a rivalidade de Pedro para com Maria Madalena não estivesse somente relacionada com uma disputa pelo poder. Talvez sentimentos mais corriqueiros sustentassem esta rivalidade. Pedro poderia muito bem sentir-se envergonhado ao lembrar do momento da prisão e da crucificação de seu Mestre, quando ao invés de ter seguido o exemplo de Maria Madalena e ficado junto ao Salvador em seus momentos de maior angústia, chegou até mesmo a negar tê-lo conhecido. Pode também a raiva de Pedro encontrar seu fundamento no sentimento da inveja, já que após a sua ressurreição Jesus decidiu aparecer primeiro diante de uma mulher, e não de seus discípulos homens.

Contudo, esta provável mesquinhez de Pedro não deve fechar os olhos da alma do leitor para a possibilidade de que também esta que parece ser apenas mais uma rivalidade banal entre discípulos encerre um sentido oculto que aguarda ser revelado. Pois sempre há um sentido esotérico dado pelos antigos gnósticos aos seus escritos, e este deve ser encontrado por cada um. Caso contrário, como nos avisa Tomé, fogo sairá das pedras lançadas pelos transtornados e este mesmo fogo os consumirá.

É oportuno buscar também a este sentido esotérico nos contos que formam O Mensageiro, pois tal sentido é como um espírito imortal que anima suas palavras, além de ser o fio que os enlaça com a tradição gnóstica de séculos passados. Através da estética que o caracteriza, proporcionará uma leitura agradável aos olhos da carne, mas através da essência que lhe dá vida, será alimento para toda alma que anseia pela plenitude.


Giordano Cimadon é psicólogo, escritor, professor gnóstico e coordenador das atividades da Sociedade Gnóstica Internacional (www.sgi.org.br).


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Oremos por Francisco

Ele que veio do "fim do mundo", retornou para demonstrar que o Reino se espalha por onde quer que existam corações abertos para ele. Afinal, o mundo não terá fim enquanto existirem corações a pulsar...

Veio nos relembrar de que a Igreja, a verdadeira, é feita de pedras vivas e de sementes a aflorar nos campos, e não de orações repetidas da boca para fora dentro de quatro paredes de pedras mortas.

Veio andar entre nós sem blindagens nem pompa. Veio beber chimarrão do mesmo copo de seus conterrâneos. Veio sorrir junto ao povo pelos corações entreabertos que lhe reservaram um espaço; e que agora se encontram cada vez mais abertos. Isto tudo lembra mais aos pastores andarilhos do que os eclesiásticos sedentários. Isto tudo lembra mais a Igreja do futuro, a Igreja que renova a si mesma, a Igreja que canta novamente o Pai Nosso em latim, mas com outro espírito e outro pensamento...

"Uma Igreja pobre para os pobres". Não vai ser fácil. Por isso tantos pedidos de oração. O Papa Francisco precisa mesmo delas, pois que passará mais perigo nos corredores do Vaticano do que nas areias de Copacabana. Ele vai tentar reformar a Igreja de fora para dentro, e não de dentro para fora. Passo a passo, uma planilha do IOR de cada vez.

Isto não significa que a Igreja deixará de ser conservadora. Não significa que o Papa e os católicos vão, do dia para a noite, aceitarem grandes reformas em sua fé e em seus dogmas. Ora, há muitos que, como eu, continuarão discordando de um ou diversos dogmas da Igreja... Porém, se a Igreja puder "sair as ruas", se puder ser novamente cristã, se puder ser mais franciscana e menos hierárquica; se puder, enfim, seguir o exemplo do Papa Francisco, e olhar as pessoas na mesma altura, e não de cima para baixo, isto será um enorme ganho para todo o mundo!

Por tudo isso, oremos por Francisco; mas oremos também por Maradiaga em sua "batalha" pela reforma da Cúria em Roma. Pois que será lá, principalmente, o campo onde será decidido o futuro da Igreja. Não torço pelo fim da Igreja do Cristo, torço pelo seu início...

Boa viagem, Francisco, e até breve.

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Crédito da imagem: UOL

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23.7.13

Quem é Debora Noal?

Quem é Debora Noal? Uma psicóloga do Médicos Sem Fronteiras (*)? Uma estudante da Alma? Alguém que ainda consegue ver luz e esperança em meio aos escombros do mundo? Apenas "uma menina que encontrou sua missão"?

Nada disso: tudo isso, e muito mais. Debora Noal não é uma celebridade nem alguém em especial na grande mídia. Quando ela chega noutros países, não se estendem tapetes vermelhos para ela. Não, ela não é famosa, mas é importante. Importante por que soube fecundar as sementes do próprio coração, até que sua Fonte transbordasse a ela mesma, e alcançasse as almas sedentas do Haiti, da África e de outras tantas zonas carentes do mundo que mal aparecem na TV...

Debora Noal não é famosa aqui deste lado. Mas, do outro lado, ela é reconhecida, cuidada, recompensada: sua família é todo o mundo. Este é o seu depoimento para o TEDxVer-o-Peso:

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» Veja também: Raízes aéreas

(*) Médicos sem Fronteiras, ou Médecins sans Frontières (MSF), é uma organização internacional não-governamental sem fins lucrativos que oferece ajuda médica e humanitária durante situações de emergência, em casos como conflitos armados, catástrofes naturais, epidemias, fome e exclusão social. É a maior organização não governamental de ajuda humanitária do mundo, na área da saúde.

» Contribua com o MSF, seja um doador sem fronteiras!


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19.7.13

Manifestações

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


A primeira manifestação da noite ocorreu dentro do ônibus.

Era um ônibus de integração do metrô carioca. Estávamos parados já há uns 20 minutos na rua em frente ao Jardim Botânico, e eu já havia analisado minuciosamente todos os painéis com fotografias ampliadas da exposição do Sebastião Salgado. Eu via aqueles indígenas em "trajes de festa" e pensava como em muitos pontos o sistema tribal nunca deixou de existir, apenas "evoluiu" e, quem sabe, se corrompeu.

A manifestação do ônibus opôs a tribo dos "classe média com pressa de chegar em casa" a tribo dos "funcionários do metrô que seguem as regras a risca". Geralmente essa tribo "classe média" até gosta muito que outras tribos sigam as regras a risca, mas não poder abrir a porta do ônibus fora do ponto após 20 minutos parados no mesmo lugar já era demais. Vencemos nossa manifestação (afinal, eu era da tribo "classe média" também) e pudemos saltar livres e faceiros para seguir a pé até a Gávea.

A Gávea foi onde cresci, cercado de montanhas e com vista para uma das maiores favelas urbanas do mundo (também conhecida como Comunidade da Rocinha). Segundo algum grande poeta do século passado, "o Céu era ter uma cobertura na Gávea". Eu concordo plenamente, mas dificilmente um dia terei uma, visto que desde que eu era moleque a Gávea passou de um bairro de classe média para um baixo de ricaços. Eu estava, portanto, fora da minha tribo...

No Shopping imponente da Marquês, entrei para tomar um café antes de ir encontrar com uma amiga nas manifestações na porta do prédio onde reside o governador Cabral, no Leblon (o Leblon já há muito tempo é um bairro da tribo dos ricaços; tirando aqueles que ainda residem com os avós, quem sabe). Lá dentro constatei que a conversa dos anciãos da tribo se referia, sobretudo, ao medo "da tribo da Rocinha haver descido"... É que o trânsito estava ainda totalmente parado, e havia boatos de uma "outra manifestação" na frente da Rocinha que estava trancando todas as vias que fluem para a Barra da Tijuca (que é praticamente outro país dentro da cidade do Rio de Janeiro).

Este "medo da descida da favela" tem rondado o imaginário da elite tribal há muitos anos. De fato, nunca ocorreu da maneira que temiam. O máximo que houve foi uma procissão pacífica (de algumas semanas atrás) até a porta do Cabral, e que tampouco recebeu qualquer resposta do governador na época. Mas fato é que alguma "eletricidade urbana" fluía e pairava pelo ar. Alguma espécie de estranhamento e de medo do novo se mesclava ao velho pensamento do "investimento conservador" em se manter tudo do jeito como está para ver como fica. Ocorre que os jovens nunca foram muito adeptos desse tipo de pensamento, e é sobretudo graças a eles que os pensamentos se renovam entre as gerações.

Eu fui caminhando até o Leblon e por muitas vezes agradeci aos céus por não ter um carro.

Chegando perto da praia, me deparei com uma fila indiana de cerca de dez policiais em trajes cinematográficos, que estavam ali parados de pé ao lado de uma árvore, impassíveis e muito sérios. Eu fiquei imaginando o que iria ocorrer mais tarde naquele dia, e também fiquei considerando quais seriam minhas "rotas de fuga" preferíveis se alguma algazarra lacrimogênea fosse eclodida. Aquela rua certamente não seria parte de minha rota... Em todo caso, fiz uma cara de "leitor feliz da Veja" e passei pelos policiais em direção ao mar.

No posto doze, em frente ao prédio do Cabral, encontrei minha amiga e seu namorado, e ficamos observando as projeções de vídeos dos manifestantes na fachada de outro prédio praiano que, convenientemente, era branco. Vimos muitas daquelas máscaras dos quadrinhos do Alan Moore. Não sei se leram, mas o personagem que usa a tal máscara não é exatamente "bonzinho", nem muito menos crê que uma manifestação totalmente pacífica é combustível suficiente para mudanças mais profundas na estrutura política de uma cidade ou país. E aquelas eram máscaras brancas, mas a minha volta eu via seres encapuzados assustadores por si mesmos, com máscaras totalmente negras, com seus sorrisos cromados refletindo a luz das câmeras fotográficas que disparavam sem parar. Era óbvio que estes seriam aqueles que entrariam em conflito com os policiais.

Lá no alto do céu havia dois helicópteros filmando tudo. Em algum canal que nunca desliga, toda a tribo de ricaços e classe média podia assistir a tudo como num filme... Mas havia também os cinegrafistas NINJAs, que filmavam in loco com câmeras de celular e transmitiam tudo ao vivo e online (com visão de videogame). Na internet, todos podiam agora ver o que realmente ocorria nesse tipo de manifestação, sem o "filtro interpretativo" do canal que nunca desliga.

Em dado momento, minha amiga me levou para conhecer a "fronteira" entre os manifestantes e a fila de policiais cinematográficos. Perto das grades reparei que havia uma aglomeração de observadores e repórteres que estavam todos interessados somente nessa área onde as agressões verbais são fartas e o conflito é iminente... Estranho ninguém filmar a gente de todas as tribos e idades (embora majoritariamente jovem, inclusive na alma) que rondavam o local e não estavam tão interessadas em passar horas gritando em frente aos policiais. Estranho ninguém captar o som das músicas animadas e das cirandas que ocorriam a poucos metros dali. Estranho ninguém haver tirado foto das "patricinhas" com suas máscaras de gás de última geração, perfeitamente trajadas para a ocasião (e que pareciam ser rebentas rebeldes das próprias tribos do Leblon).

Quando cansamos fomos beber um chopp no Jobi, que é um bar tradicionalíssimo do quarteirão imediatamente atrás do Cabral. É tanta "tradição" que um copo de chopp chega a custar mais do que uma garrafa de cerveja noutros bairros "menos tradicionais", por isso bebi somente um chopp mesmo... Quando estávamos pensando em voltar a Gávea, vimos os manifestantes numa animada procissão a contornar a esquina, circulando o quarteirão do governador. Não conseguimos resistir aos gritos de "vem para a rua" e os seguimos até o outro lado da barricada formada pela polícia cinematográfica.

Nessas horas as declarações do Eduardo Galeano na praça Catalunya, na Espanha, não saiam da minha mente. De fato, o entusiasmo dos jovens, ver aquele povo "com os deuses adentrados pela alma", era um forma de resgate do estado original da tribo, uma forma de "descorrupção", literalmente.

"Este mundo de merda está grávido de um outro", e somente compreende a verdade de tal declaração quem caminha novamente entre os jovens, seja por fora ou por dentro de si mesmo...

Mas como o namorado da minha amiga era fanático por futebol, fomos até a Gávea ver um jogo pela TV. E assim prosseguiu a minha noite revolucionária até quando, já bem mais trade, sintonizei no canal que nunca desliga e fiquei observando, através do helicóptero, os seres de máscaras negras colocando fogo nas ruas e atirando algumas pedras em algumas vidraças específicas.

Uma tribo disse que são arruaceiros e saqueadores. Outra tribo disse que estavam atacando alvos específicos: o banco que financiou o estádio superfaturado, a grife que usa trabalho "semiescravo" dos bolivianos paulistas, etc. (mas ninguém soube explicar o motivo ideológico de uma loja de bebidas haver sido saqueada). Enquanto discutiam tudo isso, fiquei pensando em como os helicópteros filmavam tudo e transmitiam madrugada adentro, sem nunca deligar, enquanto a política cinematográfica continuava parada no lugar.

Vai ver naquele horário o filme policial já tinha acabado.

Os manifestantes pediam pela dismilitarização da polícia. Eu já seria mais prático, pediria logo pelo fim da cenografia policial, e também da cenografia política do governo do tal Cabral, que até hoje ninguém sabe onde mora exatamente...

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Crédito da imagem: Google Image Search (Black Bloc)

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18.7.13

Desiderata

Desiderata, do latim "coisas desejadas", é um poema que foi encontrado num livro da igreja de Saint Paul, em Baltimore, nos EUA. Muitos o atribuíram a um autor anônimo, e a data de sua publicação é igualmente considerada por muitos como o ano de 1692. Na realidade, se trata de um poema do escritor americano Max Ehrmann (1872–1945), e que foi escrito em 1927. O motivo da confusão é que em 1956 o poema foi inserido numa compilação de textos devocionais pelo reverendo que na época presidia a igreja de Saint Paul. 1692 é, em realidade, o ano de fundação desta igreja. Isso tudo, entretanto, não retira a grandiosidade do poema:


Vá placidamente por entre o barulho e a pressa e lembre-se da paz que pode haver no silêncio.

Tanto quanto possível, sem sacrificar seus princípios, conviva bem com todas as pessoas.

Diga a sua verdade calma e claramente e ouça os outros, mesmo os estúpidos e ignorantes, pois eles também têm sua história. Evite as pessoas vulgares e agressivas, elas são um tormento para o espírito.

Se você se comparar aos outros, pode tornar-se vaidoso ou amargo, porque sempre existirão pessoas superiores e inferiores a você.

Usufrua suas conquistas, assim como seus planos. Manter-se interessado em sua própria carreira, mesmo que humilde, é um bem verdadeiro na sorte incerta dos tempos.

Tenha cautela em seus negócios, pois o mundo é cheio de artifícios, mas não deixe isso te cegar à virtude que existe. Muitos lutam por ideais nobres e por toda parte a vida é cheia de heroísmo.

Seja você mesmo. Sobretudo, não finja afeições.

Não seja cínico sobre o amor, porque, apesar de toda aridez e desencantamento, ele é tão perene quanto a relva.

Aceite gentilmente o conselho dos anos, renunciando com benevolência às coisas da juventude.

Alimente a força do espírito para ter proteção em um súbito infortúnio. Mas não se torture com temores imaginários. Muitos medos nascem da solidão e do cansaço.

Adote uma disciplina sadia, mas não seja exigente demais. Seja gentil consigo mesmo.

Você é filho do Universo, assim como as árvores e as estrelas. Você tem o direito de estar aqui.

E mesmo que não lhe pareça claro, o Universo, com certeza, está evoluindo como deveria.

Portanto, esteja em paz com Deus, não importa como você O conceba.

E, quaisquer que sejam as suas lutas e aspirações no ruidoso tumulto da vida, mantenha a paz em sua alma.

Apesar de todas as falsidades, maldades e sonhos desfeitos, este ainda é um belo mundo. Alegre-se. Empenhe-se em ser feliz!

***

Crédito da imagem: Joel "Boy Wonder" Robison

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16.7.13

De Tuvalu a Lalibela

Não Conta Lá em Casa é um dos programas mais originais, corajosos e reflexivos da TV paga [1]. Recentemente André Fran, um dos integrantes do quarteto que viaja pelas áreas em conflito do mundo, lançou um livro homônimo (pela Editora Record) em que descreve com maior profundidade o dia a dia de suas aventuras. Esta é uma entrevista com o autor do livro [2]:

1 – Em qual momento da série você decidiu escrever o livro?
Eu sou responsável pelo texto do programa, também escrevia o blog e escrevia eventuais matérias sobre as viagens para outros veículos. E, mesmo assim, isso não dava vazão pra enorme quantidade de anotações em guardanapos surrados, notes no iPhone que iam se acumulando a cada viagem. Percebi então que poderia unir e desenvolver vários textos que já havia escrito que daria um volume legal para um livro. A Record gostou da ideia e voilá!

2 – Como é a estrutura do livro? Funciona como um guia para quem  está disposto a correr algum risco? Ou você não aconselha ninguém a refazer os roteiros?
O livro é um relato pessoal das viagens pelos destinos mais polêmicos do mundo que realizei com o "Não Conta lá em Casa".  Revelo também alguns detalhes divertidos e inusitados dos bastidores das viagens e aproveito para dar umas dicas para quem se aventurar a traçar roteiros tão insólitos como esses. Eu retornaria a cada um deles no momento certo! Todos tem paisagens incríveis, histórias sensacionais e culturas interessantíssimas. 

3 – O que o livro tem de diferente do programa na TV? O que você poder escrever que não teria o mesmo resultado no vídeo?
Como é uma obra autoral, acrescentei algumas conclusões pessoais e "filosofadas" a respeito das situações, causas e dramas que conheci. Quando retornamos dessas nossas "missões" é que, longe do calor dos acontecimentos, a ficha cai e dá pra analisar com mais calma o que passei e assim relativizar e analisar mais profundamente.

4 – O que é o Manual do Nerd na Estrada?
Todos os membros da equipe, cada um a sua maneira, são um pouco nerds. Estamos sempre conectados ou a procura de um sinal de internet. Claro que, devido ao perfil dos destinos que percorremos, nem sempre achar o bendito sinal era fácil. Por isso, eu e Leondre (Leonardo Campos) começamos a compilar algumas dicas de como se virar nos momentos de maior dificuldade para aliviar as crises de abstinência "internética".

5 – Como vocês definem os destinos a serem desbravados? Já houve algum lugar vetado?
Decidimos tudo em conjunto. Às vezes uns tem que convencer mais aos outros, mas geralmente chegamos a um consenso com tranqüilidade. Os casos de veto partiram de vistos negados por parte de países que descobriram nossas intenções e não se sentiram confortáveis em serem retratados pelo programa.

6 – O Japão não estava no roteiro prévio de vocês para a quarta temporada. Como foi a experiência de acompanhar a reconstrução pós-tragédia por lá?
Eu tinha acabado de voltar de uma viagem de férias pelo Japão justamente por achar que o país jamais se encaixaria no perfil de destino do NCLC. Ledo engano. Voltei exatamente no dia do terremoto e tsunami e voltei com meus companheiros de programa menos de um mês depois. Foi incrível ver como aquele povo que tanto preza pela organização, o respeito e a disciplina lidava com uma tragédia de proporções catastróficas. Uma aula de civilidade em um momento tão dramático.

7 – Vocês se preocupam em retratar os aspectos sociais de cada lugar com muitos detalhes. A vontade de mostrar culturalmente cada país é o que move o programa pelo mundo?
Sim! Achamos muito mais interessante quando temos a possibilidade de quebrar algum paradigma, estereótipo ou preconceito do que passar por perrengues ou perigos. O objetivo do programa, e agora do livro, é dar a nossa contribuição para o mundo de alguma forma. E quebrar preconceitos é uma maneira muito importante de dar nossa contribuição.

8 – Qual foi o momento mais hostil? Sentiram medo em algum lugar específico?
Bagdá, sem sombra de dúvida. Fomos  em um momento em que os EUA alardeavam na imprensa que o Iraque voltava ser um país viável, pacífico e que, pouco a pouco o poder voltava as mãos dos iraquianos. Diziam inclusive que turistas começavam a voltar ao local. Pois nos propusemos a fazer parte dessa primeira leva de turistas-cobaias. Acabamos nos deparando com um autêntico cenário de guerra. Atentados, violência e medo por toda a parte. O hotel onde nos hospedamos sofreu um atentado um mês após nossa partida onde mais de 60 pessoas morreram. Lamentável.

9 – Como é preparação para cada viagem? Quanto tempo vocês levam pesquisando e produzindo o roteiro?
Como já é de nosso gosto pessoal esses temas geopolíticos, muitas coisas nós já sabemos. Mas aproveitamos para checar novas fontes e referências como sites, filmes, blogs etc. E, acima de tudo, usamos essa pré-produção para fazermos contatos locais. Estes sim são responsáveis pelas nossas mais interessantes ações e pela garantia de nossa segurança com dicas fiéis e atuais da realidade de seus países.

10 – Quais cuidados com a segurança da equipe vocês costumam tomar nas viagens? Já se colocaram em alguma situação de risco?
É impossível realizar esse tipo de programa e cumprir o objetivo de mostrar a realidade desses locais sem se expor a um certo nível de risco. Mas tentamos mitigá-lo ao máximo possível. 

11 – Conseguiram colocar algo em prática com o que aprenderam no treinamento de guerra em Ravenna, na Itália?
A maioria daquelas dicas é meio bom senso, né? "Atravesse a rua se tiver alguém estranho vindo em sua direção". E as outras são para situações extremas demais: "Se um assassino psicopata entrar no supermercado metralhando todo mundo, voe em sua garganta". Espero que eu nunca passe por nenhum delas, mas se passar acho que estou mais preparado, sim.

12 – Vocês costumam viajar com pranchas de surfe. Momentos de lazer aliviam a tensão nestes lugares?
Na verdade, foram poucas as viagens em que levamos pranchas. O fato é que carregá-las por 20 dias não compensa muito quando a única oportunidade de usá-las é em um mar ruim e por apenas duas horas. Mas confesso que elas ajudam no disfarce de "turistas comuns sem noção" em certas ocasiões.

13 – Som, comida e paisagem inesquecíveis durante o programa:
Melhor som: Explosions in the Sky (banda do Texas, EUA) nos acompanhou e serviu de trilha em várias viagens.
Pior som: gritaria da reza das mesquitas durante o Ramadan.

Melhor comida: prato vegetariano na Albânia e sushi no Japão.
Pior comida: biscoito de lama que provei no Haiti e barata que comi na Tailândia.

Paisagens incríveis: lagos azuis da Band-e-Amir, no Afeganistão. Igrejas de pedra em Lalibela, Etiópia. Templos de Bagan, em Mianmar. O terraço do Hyatt em Tóquio. E qualquer praia de Tuvalu.

14 – Quais são os próximos passos n TV? Há uma possibilidade de um novo livro no futuro?
Estreamos nossa 6ª temporada no Multishow no segundo semestre com novidades bombásticas: mudanças na equipe e o destino mais temido e impossível da história do programa! Já estou pensando em um novo livro. Não vai ser uma seqüência exata desse. Quero pegar casos interessantes de determinadas viagens e somar a dados curiosos e histórias interessantes sobre o ato de viajar em si. Aeroportos, vôos, estrada, bagagem, hotéis... A ideia é criar o Manual Definitivo do Viajante. Ou algo assim... :)

***

» Veja também o "trailer" do livro no Vimeo

[1] Ele já foi tema de nossa série de artigos: Todas as guerras do mundo.

[2] A entrevista não foi realizada pelo Textos para Reflexão, estamos apenas ajudando na divulgação da obra, pois acreditamos em obras oriundas da Verdadeira Vontade :)

Crédito da imagem: Divulgação/Record/NCLC

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11.7.13

A educação de Casanova, parte 3

A educação de Casanova

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 2


3.

Era uma noite nem tão fria nem tão quente, em meio ao cheiro de destilados e perfumes nem tão caros nem tão baratos, sob uma iluminação levemente obscura, levemente rubra, e eu conseguia ouvir claramente a tudo o que Asik me dizia, ainda em meio ao som ambiente de conversas irrelevantes e músicas de décadas atrás. Asik falava diretamente da Alma, por isso jamais passaria desapercebido para aqueles que, como eu, já haviam estado lá:

“'O que Deus uniu, o homem não separe'... Dizem isto em seus altares dourados, mas no entanto vivem separados e desconectados uns dos outros, e mantém seus juramentos mais como uma forma de contrato nupcial; um contrato de aparências sociais! Giacomo, me perdoe, mas eu nunca acreditei em nada disso”.

“No entanto continua casado todos esses anos”.

“Mas de onde tirou essa ideia? Eu nunca fiz nenhum juramento a Deus, ele nunca exigiu isso de mim. Nunca houve cerimônia alguma dentro de qualquer igreja, somente fora; e uma longa e bela cerimônia que vem sendo encenada por nós dois a cada momento de nossas vidas. Giacomo, eu me casei com o Agora, eu me casei com o Amor de um pelo outro, reencenado eternamente a cada momento. Eu não sou e nem acredito em 'ser casado', mas eu acredito em estar amando, eu acredito em viver no Amor, eu acredito no vir a ser eterno”.

“Como pode ser isto Asik, se ela não está aqui neste momento? O que ela diria de estarmos os dois numa casa como esta, num prostíbulo obscuro em meio a Beyazit?”.

“Não sei o que ela diria, pois não tenho como entrar dentro dela para pensar como ela. Tenho apenas como ser Um com ela, e sentir o mesmo que ela sente, e o mesmo que toda a Natureza sente por todos nós; mas não tenho como pensar como ela, nem como modificar ou controlar ou censurar o que ela pensa, pois que ela é, como eu, como nós, uma livre pensadora.

E que importa eu haver marcado esta nossa conversa no restaurante mais nobre do bairro mais nobre de toda Istambul? O fato de não haver dançarinas seminuas em cima das mesas não significa que eu não possa estar pensando nelas. E eis uma coisa impossível de se saber, Giacomo: o que diabos outra pessoa está imaginando neste ou em qualquer outro momento; ou seja, o que está vendo com a mente, além do que haveria de ver somente com os olhos”.

“Belo, belíssimo como sempre meu amigo. Não sei onde aprendeu a encantar suas palavras com tamanha luz, mas elas talvez sejam belas na teoria, e nem tanto na prática. Afinal, há de convir que é bem mais provável que pense em certas coisas eróticas e indecentes quando belas formas femininas rebolam para cá e para lá há não mais do que alguns metros dos seus olhos sempre atentos”.

“Pois então vou lhe contar meu segredo, Giacomo. O ‘encantamento’ de minhas palavras e de meus pensamentos veio exatamente da indecência, do erotismo, da Grande Putaria! Eu pratico a Arte da Putaria, meu amigo, mas com erotismo, nunca com vulgaridade; com indecência concreta e original, jamais com decência dissimulada. Afinal, como bem sabe, eu tenho sido um assíduo observador apaixonado da Natureza, e se não fosse já pelos coelhos em sua procriação silenciosa ou pelos grunhidos dos lobos selvagens a acasalar na mata noturna, teria sido pela divina safadeza dos bonobos, estes macaquinhos adoráveis que nos ensinam tanto sobre nós mesmos, e sobre o sexo, e sobre a infatigável ânsia da Vida por ela mesma, por ainda mais e mais e mais e mais... Vida!”.

“Eu acredito em você. Suas palavras, como sempre, são como poções mágicas que dilaceram lentamente o meu tédio e minha apatia, como pequenas ondas a dissolver o calcário escuro que se forma na casca que encobre nossas almas. Mas o fato de acreditar em você não significa que eu seja como você, que consegue passar tantos e tantos anos amarrado a uma única mulher... Como isso é possível, como pode não querer se libertar disto de vez em quando?”.

“Giacomo, meu caro, onde tem aprendido essa linguagem vulgar? Terá sido nessa nova Europa que, apesar de já grávida de outra Europa, ainda guarda os preconceitos e as ideias fossilizadas da antiga?

Quem lhe disse que estou amarrado a alguém? Ainda que cordas estivessem me atando a qualquer mulher que fosse, em minha mente eu estaria ainda livre para pensar e imaginar qualquer outra mulher, real ou imaginária, natural ou lendária... O que uma mísera corda pode fazer contra a imaginação de quem pensa por si mesmo?

Mas eu não estou nem nunca estive amarrado, e esta é precisamente a razão de ainda estar casado no Amor, apesar de nunca haver sido casado. Pois que cordas são tão prejudiciais quanto duas árvores que foram plantadas uma próxima demais da outra, e cujas raízes emaranhadas disputam os mesmos nutrientes do solo. Ora, nós temos uma imensidão a nossa volta, e espaço mais do que suficiente para que todas as raízes encontrem os seus próprios nutrientes sem ter de roubar os nutrientes das demais árvores. Somente assim, algo afastadas umas das outras, as árvores conseguem crescer firmes e sadias, e estender seus inúmeros galhos em direção aos Céus, e beber sua Luz direto da Fonte”.

E assim, sendo transformado pelo fogo de Asik, meu coração acelerava uma vez mais, e o meu tédio ia indo embora... Subitamente, me interessava novamente pelos seios fartos daquela uma, e pelas nádegas suculentas e rebolativas daquela outra.

Porém, estranho de se pensar – eu estava me excitando novamente somente por partes de mulheres, e não por mulheres inteiras. Subitamente, me questionava se não havia, por longos e longos anos, buscado o Amor apenas nestas partes femininas ‘esquartejadas’ pelos olhos: uma imensa bunda, os seios torneados da moda, as coxas de uma amazona ou o quadril inimaginável de uma modelo digital.

Afinal, antigamente eu me excitava com o fato das mulheres esconderem seus corpos em longas saias vitorianas, exatamente por que assim imaginava como elas poderiam ser; mas então percebi que fui ludibriado e tive minha imaginação assaltada por belíssimas formas femininas a estampar os anúncios das novelas e dos outdoors deste mundo moderno. Me ocorreu então que eu não me excitava mais com esta ‘mulher frankenstein’ formada por várias partes desconexas de outras mulheres.

Havia me afastado não somente da Alma, mas do Corpo. Eu não estava entediado com as mulheres, afinal de contas, estava mesmo é entediado com minha própria imaginação viciada e empobrecida. Subitamente, mesmo eu podia começar a compreender como meu amigo Asik conseguia se manter ‘casado no Amor’, pois que cada dia lhe trazia um novo espírito e novíssimos pensamentos e fantasias, ainda que a mulher pudesse ser a mesma, e ainda que ele fosse o mesmo, no fundo estavam sempre se modificando, no fundo pensavam por si mesmos e imaginavam o que bem queriam imaginar, muito além dos outdoors e dos comerciais.

Foi assim que comecei a vencer meu tédio e a me reconectar a Grande Arte da Putaria.


***

Esta foi a terceira parte de A educação de Casanova, por raph em 2013.
Comece a ler do início | Veja a quarta parte


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9.7.13

Frases (15)

Mais frases que vieram com o vento, geralmente primeiro aparecem no meu twitter, depois aqui:


"As metáforas elevam, os dogmas represam."

"Há muitos que desejam entrar para História Mundial. Já eu prefiro viver a história de nossa vizinhança."

"Na Livraria do Ser, o ego é bestseller na seção de ficção. A essência, uma jóia rara, escondida entre os Clássicos."

"Há coisas que só pássaros e crianças sabem. Trepam nas árvores, voam e guardam seus ninhos. Isto é, voam na imaginação: seu ninho alado."


"Quando o Socialismo se livrar do Feudalismo, será ótimo!"

"Nenhuma empreiteira financia uma campanha por ideologia."

"O dia em que tivermos novamente '1 pessoa, 1 voto' em detrimento de 'X reais, 1 voto', teremos novamente Democracia."


"Arte é a magia que flui para dentro. Magia é a arte que floresce da raiz."

"No fundo, tudo na Natureza é anônimo, inominável, inefável... Não é pelo nome que conhecemos outro ser, mas pelos olhos."

"Ao menos no Amor, nenhuma alma pode tornar-se propriedade de outra alma."

"O único casamento em que acredito é o casamento do agora, e todo resto é somente o noivado da Vida."

***

Crédito da foto: Google Image Search

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8.7.13

Ad infinitum: resenha de Igor Teo

Igor Teo é criador e mantenedor do blog Artigo 19, colunista do Portal TdC, escritor e estudante de psicologia.


O infinito e por aí

O convite para escrever sobre o livro Ad infinitum é para mim honroso por dois motivos: primeiro, se tratar de uma publicação de meu amigo Rafael Arrais; segundo, creio que este livro coroa todo um trabalho que acompanho faz tempo.

Em Análise Institucional, há certos acontecimentos que chamamos de Analisadores. Permitam-me uma pequena contextualização aqui: a sociedade é composta por instituições que formam a trama social e que se mantém ou se alteram através de nossas práticas. Uma instituição é, definindo de maneira geral, tudo aquilo que um dia foi instituído e hoje tomamos como normal, usual, corriqueiro, e nelas se incluem comportamentos e pensamentos, modos de agir ou pensar. Entretanto, a sociedade não é algo fixo e imutável ao longo do tempo, mas se transforma constantemente devido a variadas questões históricas, econômicas, políticas, entre outras. Chamamos as mudanças sociais que ocorrem por variados motivos de instituintes, aquilo que visa alterar o instituído. O estudo e a prática da dinâmica instituído-instituinte é o que poderíamos chamar de Análise Institucional.

Quando há a manifestação de algo que não está em conformidade com o instituído, são estas manifestações elas mesmas reveladoras dessa dinâmica que buscamos entender. E as chamamos de Analisadores. Um analisador recente ao momento em que escrevo é a série de protestos que ocorrem no país. Não era comum faz certo tempo a população ir a rua para reivindicar seus direitos, mas aconteceu. E esta manifestação revela que há algo que não vai tão bem como a televisão mostra.

A publicação de Ad Infinitum é um Analisador de uma nova geração de autores. Com a internet, temos visto uma revolução no modo como o escritor atinge seu público. Se antes era necessário toda uma atividade editorial, Rafael Arrais nos mostrou que isso hoje não é mais tão importante assim. O próprio foi responsável por diversas etapas do processo, desde a escrita propriamente até toda a arte e diagramação do livro. Isto revela que estamos testemunhando uma grande mudança de como a informação é transmitida.

A pessoa de Rafael Arrais não está presente apenas na “cara do livro”, mas em seu conteúdo. Os quatro personagens que se encontram para debater diversas questões existenciais são manifestações de seu pensamento e suas próprias dúvidas e respostas que temos acompanhado faz tempo em seu blog Textos para Reflexão. Este livro consagra, portanto, todo um longo trabalho de discussão e reflexão.

No entanto, dizer que apenas Rafael Arrais está presente no livro por outro lado também seria não fazer justiça a obra. Escrita sobre ombros de gigantes, Ad infinitum traz diferentes discursos e pensamentos para dialogarem. Você provavelmente reconhecerá muitos deles, até porque já escutou, leu ou mesmo refletiu sobre eles.

O enredo é uma ode à amizade e à boa conversa. Parece difícil imaginar que um debate que discuta questões tão profundas e que atinge crenças diversas tão valorizadas por seus defensores possa se manter tão pacífico e amistoso como o livro nos apresenta. Mas sim, é possível. Basta pensarmos quais valores nos são mais importantes: a “verdade” a qualquer custo ou a boa convivência e o livre circular das ideias.

Por fim, é sempre importante dizer que nenhuma obra é neutra. Se Rafael Arrais compila discursos e nos apresenta ideias, ele também defende um ponto de vista. Imaginar que assim não seria é ingenuidade, pois qualquer um que tentasse fazer o mesmo, na própria seleção e escolha de argumentos já estaria enviesando um pensamento mais que outro.

Deste modo, Rafael oferece uma nova forma de pensar a espiritualidade. Não a de que um espiritualista seja um alienado, crente em uma fé cega e perdido em mistificações, como muitos podem acreditar. Mas a de que um espiritualista seja alguém como outro qualquer, com suas próprias crenças, e que também pode sustentar um pensamento racional.

Você pode até não concordar com sua lógica por ter preferência própria por outros métodos racionais, mas o que não é possível dizer é que não há lógica.


Igor Teo
Rio de Janeiro, 30 de junho de 2013

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» Ad infinitum se encontra à venda em versão impressa, PDF ou eBook (Kindle)

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5.7.13

O canto de Clara

Há pouco mais de 30 anos nos deixava Clara Nunes, uma das maiores cantoras e intérpretes de canções da história da música popular brasileira. Pesquisadora de música e folclore de povos antigos, particularmente africanos, viajou boa parte do mundo representando o país, e também foi a primeira cantora a vender mais de 100 mil cópias de discos, derrubando um tabu da época de que mulheres não podiam alcançar tal marca.

Clara se declarava abertamente espírita e umbandista, e não tinha o menor temor em dizer que muitas das composições que escolhia interpretar eram claramente associadas a espiritualidade. Clara não viveu somente numa época onde a música brasileira ainda era genuinamente popular, mas também numa época em que, apesar dos pesares, o canto dos povos antigos das Américas e da África ainda podiam ser escutados nos horários nobres da TV, ecoando como um soluçar de dor...

Os vídeos abaixo foram escolhidos com a alma:

Ijexá (encerrando o Fantástico da Rede Globo)

Canto das três raças

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Crédito da imagem: Google Image Search/Divulgação

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3.7.13

Como sobreviver numa arena

Em 1999, o mais novo lançamento do mundo dos games de tiro com visão em primeira pessoa (first person shooter ou, pela sigla, FPS) era o Quake III Arena, um jogo brutal em que jogadores do mundo todo jogam online numa arena de guerra onde dois grupos de guerrilheiros (armados com armas de fogo futuristas e extremamente letais) duelam até que um dos grupos tenha sido inteiramente exterminado. Quando isto acontece, todos os mortos retornam a vida e começa um novo duelo, e assim por diante...

Uma das inovações do game, segundo a desenvolvedora (Id Software), era a suposta “nova inteligência artificial” dos bots no jogo. Um bot (abreviação de robot) é uma aplicação de software concebida para simular ações humanas repetidas vezes de maneira padrão, da mesma forma como faria um robô. Durante o jogo, os personagens da arena controlados pelo computador (ou seja, não controlados por jogadores reais e humanos) supostamente observariam o estilo de luta dos demais jogadores, humanos ou bots, na medida em que a simulação das arenas de batalha transcorresse.

Com o tempo, seriam capazes de “pensar” em novas táticas, efetivamente se adaptando as táticas que mais venciam combates, e ignorando as táticas ineficazes para a sua sobrevivência, pois ganha o combate o grupo que sobrevive ao final [1]. Para que a inteligência artificial dos bots pudesse se desenvolver mais profundamente, entretanto, os servidores do jogo deveriam permanecer online, simulando centenas ou milhares de batalhas, por muito tempo a fio. E isto era inviável para os servidores oficiais do game, que precisam passar por manutenção semanal.

De acordo com um misterioso tópico de um fórum online (hospedado no 4Chan), em 2007 um jogador configurou um servidor pirata local do game (ou seja, hospedado em sua própria casa) para rodar indefinidamente simulações de arenas de combate entre 16 bots, sem nenhum ser humano a interagir com eles. Ocorre que este jogador esqueceu completamente do que havia feito, e como em sua casa os computadores ficavam sempre ligados, como servidores locais, a simulação rodou por longos quatro anos, até que em 2011 ele finalmente se lembrou dela!

Cada um dos 16 bots da simulação havia gerado 512 MB de informações táticas aprimoradas por centenas de milhares de partidas letais. Eram 8 GB de informações. O que elas teriam gerado? Atiradores infalíveis? Coordenação perfeita e robótica para matar da forma mais eficiente possível? O jogador resolveu entrar na simulação para ver quanto tempo seria capaz de sobreviver...

Então, para sua surpresa, ele observou que os 15 bots (ele estava jogando como o décimo sexto) nada faziam, apenas olhavam para ele e o seguiam onde quer que fosse. Não pareciam mais duelistas letais, mas antes pacifistas em busca de um sentido para estarem vagueando indefinidamente por uma arena de batalha. Aparentemente, em alguns anos de simulação, a inteligência artificial dos bots chegou a melhor estratégia para a sobrevivência: ninguém morre quando ninguém mata.

A Teoria dos Jogos é um ramo da matemática aplicada que estuda situações estratégicas onde jogadores escolhem diferentes ações na tentativa de melhorar o resultado, ou seja, o retorno de suas escolhas. Inicialmente desenvolvida como ferramenta para compreender comportamento econômico e depois usada pela Corporação RAND para definir estratégias nucleares, a Teoria dos Jogos é hoje usada em diversos campos acadêmicos.

Podemos ilustrá-la de forma simples e direta com o chamado “dilema do prisioneiro”, originalmente formulado por funcionários da RAND:

Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para sua condenação; mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los há 6 meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. A questão que o dilema propõe é: o que vai acontecer? Como o prisioneiro vai reagir?

No “dilema do prisioneiro”, temos uma situação onde o altruísmo e a confiança mútua oferece o melhor resultado final para ambos os jogadores. No entanto, isto não ocorre sem o risco de se ficar calado, confiando em seu parceiro, e ao fim ser traído por ele, e receber em retorno o pior resultado. De certa forma, a Teoria dos Jogos e o “dilema do prisioneiro” se aplicam não somente a economia e as relações de poder entre potências nucleares, mas também a uma partida de Quake III Arena... Será mesmo?

Retornando ao experimento insólito do início do artigo, o jogador resolveu “ver o que acontecia se atirasse em algum outro bot”. Para sua surpresa, ao fazer isso, ele foi atacado (e morto) não somente pelos 8 bots do outro time, como pelos 7 outros bots de sua própria equipe!

Ou pelo menos foi isto que a imagem com capturas de tela do suposto tópico do 4Chan dizia. Muitos sites de games compartilharam a notícia, e ela obteve certa fama também nas redes sociais. No entanto, como muitos podem ter imaginado, era tudo um hoax, ou seja, uma história inventada, como tantas outras que vemos nestes tempos de propagação desenfreada da informação.

Porém, ainda que não tenha ocorrido de verdade, ainda que os 16 bots com suas inteligências artificiais sejam incapazes de interpretar o resultado de suas ações (já que são ferramentas de computação, e não seres de interpretação), esta história ainda nos toca numa questão primordial: ela foi espalhada como algo verossímil, extremamente verossímil.

Penso que muitos de nós têm esta certa queda por acreditar que uma simulação computacional possa, de alguma forma incompreensível, chegar a conclusões que, no fundo, são as nossas própria conclusões, mas que não temos a vontade, ou a coragem, de coloca-las em prática.

Afinal, não se enganem: o bot do game mais avançado do ano que vem não será mais nem menos ferramenta do que um martelo ou uma bomba nuclear. Não é o martelo que mata ou constrói coisas, é quem o empunha. Não foi o material radioativo, e nem mesmo os físicos que descobriram a fissão nuclear quem arrasaram Hiroshima, foram aqueles que deram a ordem: “soltem a bomba”...

Somos, desta forma, todos prisioneiros desta enorme simulação chamada “mundo”, e só sairemos desta prisão de mãos dadas – todos serão livres somente quando não houver mais nenhum prisioneiro.

***

[1] Isto não deixa de ser uma forma de programação genética.

Crédito das imagens: [topo] Quake III Arena (captura de tela); [ao longo] Adrianna Williams/Corbis

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1.7.13

Ad infinitum: baixe gratuitamente a versão digital, somente hoje!

4 personagens. Um diálogo sobre o Tudo.

"Ad infinitum" poderá ser baixado gratuitamente na Amazon Brasil até o final do dia de hoje (01/07/2013), bastando somente que tenha uma conta cadastrada na Amazon (*):

Baixar o eBook na Amazon Brasil

(*) Mesmo sem um Kindle, você pode ler em tablets, laptops ou mesmo smartphones, basta baixar o aplicativo de leitura gratuito. Se puder avaliar o livro na Amazon após o ler, lhe agradeço :)

***

Comentário
Hoje o livro chegou a ficar por cerca de 2h na posição #3 entre os 100 livros mais baixados de toda a Amazon Brasil, e passou boa parte do dia na posição #4. Isto foi bem melhor do que eu esperava, então não posso deixar de agradecer a todos que baixaram e compartilharam a promoção nas redes sociais. Hoje não ganhei nenhum centavo, mas ganhei mais de uma centena de novos leitores, o que é muito mais valioso. Valeu pessoal!


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