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Texto de Arthur Schopenhauer em “Da morte, metafísica do amor, do sofrimento do mundo” (Ed. Martin Claret), tradução de Pietro Nassetti – Trechos das pgs. 67 a 72. Os comentários ao final são meus.
É verdade que não podemos levar a cabo a representação de tudo o que foi dito acima sem recorrer a noções de tempo; e todavia, essas noções deveriam ser excluídas quando se trata de coisas-em-si. Entretanto, pertence aos limites insuperáveis de nosso intelecto que ele não possa libertar-se inteiramente dessa forma primeira e mais imediata de todas as suas representações, para depois operar sem ela [1]. Assim, somos conduzidos aqui a uma espécie de metempsicose, porém com a diferença importante de que a nossa metempsicose não concerne à psique, isto é, ao ser que conhece, mas apenas à vontade, que, com isso, suprime muitos absurdos ligados à doutrina da transmigração de almas [2]; e com a consciência de que a forma do tempo intervém aqui apenas como acomodação inevitável à natureza limitada de nosso intelecto.
[...] [O novo ser nascido] agora, conforme a sua natureza e as modificações que sofrer guiado pelo curso necessário das coisas, sempre em harmonia com sua natureza, recebe agora, por um novo nascimento, um novo intelecto, com o qual seria um novo ser, que não teria recordação de uma existência anterior, pois o intelecto, único capaz de memória, é a parte mortal, ou a forma; a vontade é o elemento eterno, a substância do nosso eu: disso resulta que a palavra palingenesia é mais adequada para designar essa doutrina, que metempsicose [3]. Esses renascimentos perpétuos constituiriam então a série dos sonhos de vida de uma vontade em si indestrutível, até que ela, instruída e aperfeiçoada por tantos e tão diversos conhecimentos sucessivamente obtidos, sempre em novas formas, viesse a se suprimir a si mesma [4].
[...] A verdade aqui expressa não era totalmente desconhecida, embora jamais tenha sido remetida ao seu sentido real e exato, como o permite fazer nossa teoria da essência superior e metafísica da vontade, e da natureza secundária e apenas orgânica do intelecto. Com efeito, encontramos a doutrina da metempsicose, dos tempos mais antigos e mais nobres da humanidade, sempre espalhada sobre a terra, como a crença da grande maioria do gênero humano, e mesmo, na verdade, como doutrina de todas as religiões, com exceção da judaica e das duas religiões que surgiram desta [5]; todavia, no budismo, como já disse, nós a encontramos na sua expressão mais sutil e próxima da verdade. Enquanto os cristãos se consolam pela esperança de se reverem em um outro mundo, onde se reencontra, ao mesmo tempo, a individualidade completa, para as outras religiões, pelo contrário, aquele reconhecimento começa a se operar desde já, embora incógnito.
Isto é, no círculo de nascimentos e em virtude da metempsicose, ou palingenesia, as pessoas que hoje estão em contato ou relação íntima conosco também nascerão, ao mesmo tempo que nós, na próxima geração, e terão relações e disposições idênticas, ou pelo menos análogas, sejam estas amigáveis ou hostis.
[...] Sobre a universalidade da crença na metempsicose, Obry nos diz, com razão, no seu excelente livro Du Nirvana indien, p.13: “Esta velha crença fez a volta ao mundo, e estava de tal modo expandida na alta antiguidade, que um douto anglicano a julgou sem pai, sem mãe, e sem genealogia”. Já ensinada nos Vedas, como em todos os livros sagrados da Índia, a metempsicose é, como se sabe, o núcleo do bramanismo e do budismo, e reina até hoje por toda a Ásia não conquistada pelo islamismo, isto é, em mais da metade do gênero humano, como a crença mais sólida, e como influência prática de uma força inimaginável. Ela foi também um elemento de fé dos egípcios (Heródoto, II, 123); Orfeu, Pitágoras e Platão a adotaram com entusiasmo, e os pitagóricos, sobretudo, a mantiveram firmemente. [...] Ela era também o fundamento das religiões dos druidas. Existe até uma seita maometana no Hindustão, os bohrahs [6]. [...] Mesmo entre os americanos (índios) e povos negros, a até mesmo entre os australianos (aborígenes), encontram-se traços dela.
[...] Essa doutrina disseminada por todo o gênero humano, e tão evidente para os sábios como para o povo, encontra uma obstáculo no judaísmo e nas duas religiões que dele se originaram, cuja teoria da criação a partir do nada tem a difícil tarefa de estabelecer conexão com a crença de uma permanência eterna de seu ser a parte post. Se é verdade que, a ferro e fogo, essas religiões conseguiram expulsar da Europa e de uma parte da Ásia aquela crença originária e consoladora da humanidade, resta saber por quanto tempo. Conseguir isso sempre foi difícil: atesta-o a história dos primeiros tempos da igreja; a maior parte dos heréticos, por exemplo, os simonistas, basilidianos, valentinianos, marcionistas, gnósticos e maniqueus, admitiam aquela crença antiga [7]. Os próprios judeus, em parte, a incorporaram, como testemunham Tertuliano e Justino (em seus diálogos). O Talmud relata que a alma de Abel passou para o corpo de Seth, e depois para o de Moisés. Até mesmo a passagem da Bíblia, em Mateus 16, 13-15, só adquire um sentido razoável dentro da hipótese do dogma da metempsicose. Lucas, que certamente também a admite (9, 18-20), acrescenta que um dos antigos profetas ressuscitou, insinuando aos judeus a suposição de que um antigo profeta possa ter ressuscitado em carne e osso: mas, como eles sabiam, tal profeta já estava enterrado no túmulo havia seiscentos ou setecentos anos, portanto era pó havia muito tempo, e isso seria uma absurdo manifesto.
A transmigração de almas e expiação por meio desta de todas as faltas cometidas em uma vida anterior, o cristianismo substituiu pela doutrina do pecado original, isto é, pela expiação pelo pecado de um outro indivíduo. As duas doutrina identificam, e por certo com uma intenção moral, o homem existente com um outro que existiu anteriormente: a transmigração de almas por uma assimilação imediata, o dogma do pecado original por uma aproximação indireta [8].
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[1] Não conseguimos representar a eternidade em nosso próprio pensamento, pois o próprio ato de representação é temporal. Desse modo, é preciso filosofar acerca da eternidade de uma forma “aproximada”.
[2] Schopenhauer entendia a reencarnação como um mecanismo pelo qual sua “força da vida” fazia com que as potencialidades dos seres (a espécie, a vontade) se desenvolvessem ao infinito. Ele certamente não acreditava que as personalidades (o indivíduo, o intelecto) permaneciam intactas de geração em geração – estas eram aniquiladas, pois que surgiam com o nascimento e “eram esquecidas” com a morte.
[3] E outros a chamam reencarnação, mas termos são apenas termos: o importante é o que cada um compreende de seus conceitos.
[4] Apesar de não ficar muito claro o que o filósofo alemão quis dizer, podemos tirar daí a curiosa concepção de que a “força da vida” também pode evoluir, e que todos somos partes de sua evolução. Me lembrei da famosa frase de Carl Sagan: “Nós somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo”.
[5] Em realidade, mesmo na forma mais profunda do judaísmo, a cabala, existia a crença arraigada na reencarnação – e que persiste até os dias atuais entre inúmeros judeus. “Não é possível entender a cabala sem acreditar na eternidade da alma e suas reencarnações” (Rabi Arieh Kaplan). Entre os essênios e gnósticos, que muitos compreendem como “os verdadeiros cristãos primitivos” (antes de Constantino inaugurar sua Igreja), a reencarnação e o evolucionismo também sempre foram pontos chave de sua doutrina espiritualista. Mesmo na Bíblia “editada” por Constantino “sobraram” algumas passagens que remetem a tal conceito, conforme o próprio Schopenhauer descreve a seguir.
[6] Os Drusos e algumas outras seitas islâmicas crêem na reencarnação, embora muitas delas não creiam. As seitas islâmicas que aceitam a reencarnação sustentam suas controvérsias citando passagens do Alcorão, as quais prestam-se a uma interpretação a favor de tal crença. Por exemplo; “Como deixais de acreditar em Alá se estivestes mortos e Ele vos deu a vida. Depois Ele vos dará a morte, e novamente a vida, e depois para Ele voltareis”. (Surah. 2 versículo 28); e “E Alá vos fez com que nascesseis da terra, fazendo-vos depois voltar a ela, e Ele vos dará a luz novamente, um nascimento.” (Surah. 71, versículos 17-18). M. M. Picktall. The Meaningof the Glorious Koran: An Explanatory Translation. New York: The New American Library, 1953.
[7] Vê-se que Schopenhauer estudou a fundo inúmeras religiões e suas histórias, antes de falar do assunto – provavelmente muito, muito mais do que a grande parte dos eclesiásticos que resume todo seu conhecimento apenas a sua própria doutrina (a qual, muitas vezes, creem ser “infalível”).
[8] Que cada um julgue, por si só, por toda a lógica e toda a justiça que é capaz de conceber, qual faz mais sentido, qual está mais próxima da realidade que a Natureza nos exibe em todos os dias e todas as noites.
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Crédito da imagem: Bobaumicheduw
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