Jorge Pontual é um dos jornalistas mais bacanas do mundo. Além de ser especialista em relações internacionais, ciências sociais, divulgação científica e bactérias, também parece ter sido o principal responsável por trazer ao programa GloboNews em Pauta um quadro semanal onde, vejam só, recita poemas de grandes poetas da história.
Por isso tudo ele já merecia a nossa admiração. Mas quando resolver recitar Jalal ud-Din Rumi, então passou definitivamente a merecer o nosso amor...
(clique na imagem para abrir o vídeo no site da GloboNews)
***
[Momento de felicidade]
Felicidade é este momento,
você e eu sentados na varanda -
duas formas, dois rostos,
mas uma alma,
você e eu.
A beleza das flores
e o canto dos pássaros
nos dão a água da vida
quando entramos neste jardim,
você e eu.
As estrelas do céu vêm nos ver,
e mostramos a elas a lua,
você e eu.
Você e eu,
unidos em êxtase de alegria,
livres do juízo e da razão -
você e eu.
Os beija-flores do Paraíso bicam açúcar
quando nós rimos,
você e eu.
Mais incrível ainda,
estamos aqui ao mesmo tempo
no Iraque, na Pérsia,
você e eu -
numa forma aqui na Terra,
e noutra forma, no Paraíso.
E na Terra do Açúcar,
você e eu...
Há mais um projeto atualmente em andamento nas Edições Textos para Reflexão. Este muito especial, por se tratar da primeira tradução da mais nova integrante de nossa equipe: Hipátia (pseudônimo de Kamila Janaina Pereira), também colaboradora do blog Queremos Querer.
O livro em questão é The Will to Believe (A Vontade de Crer), de William Janes, e trata de uma discussão quanto às filosofias e crenças presentes no mundo acadêmico e científico. Como Kamila trabalha na área de psicologia, pensamos que seria uma boa ideia ela estrear por aqui traduzindo um dos fundadores da psicologia moderna.
Abaixo, segue um trecho da sua tradução (lembramos que os direitos da tradução pertencem inteiramente a tradutora, estaremos somente a editando e publicando)...
***
Vamos dar o nome de hipótese a qualquer coisa que seja proposta a nossa crença; e, assim como os eletricistas tratam de fios vivos e mortos, vamos tratar qualquer hipótese como viva ou morta. Uma hipótese viva é aquela que se mostra como uma possibilidade real àquele a quem ela é proposta. Se eu lhes pedir para acreditar em Mahdi [1], essa ideia não faz qualquer conexão elétrica com sua natureza – ela se recusa a cintilar com qualquer credibilidade. Como uma hipótese, está completamente morta. Para um árabe, todavia (mesmo que ele não seja um dos seguidores de Mahdi), a hipótese está entre as possibilidades da mente: ela está viva. Isto mostra que a morte e a vida em uma hipótese não são propriedades intrínsecas, mas se relacionam ao pensador individual. Elas são medidas pela disposição do indivíduo em agir.
O máximo de vivacidade em uma hipótese significa disposição em agir de forma irrevogável. Na prática, isto significa fé; mas há alguma tendência em crer em qualquer lugar que haja disposição em agir.
Em seguida, vamos nomear qualquer decisão entre duas hipóteses como opção. Opções podem ser de vários tipos. Elas podem ser: 1) vivas ou mortas; 2) forçadas ou evitáveis; 3) momentosas ou triviais; e, para nossos propósitos, podemos chamar uma opção como genuína, quando ela for do tipo forçado, viva e momentosa.
1. Uma opção viva é aquela em que ambas as hipóteses estão vivas. Se eu lhes digo: “Sejam teosofistas ou sejam muçulmanos”, essa é provavelmente uma opção morta, porque para vocês nenhuma das hipóteses tem probabilidade de estar viva. Mas se eu digo: “Sejam agnósticos ou sejam cristãos”, acontece o contrário: dada a sua formação, cada hipótese tem seu apelo, ainda que pequeno, à sua crença.
2. Em seguida, se eu lhes digo: “Escolham entre sair com ou sem guarda-chuva”, eu não lhes ofereço uma opção genuína, pois não é forçada. Vocês podem facilmente evitá-la ao não sair. Da mesma forma, se eu disser “Amem-me ou me odeiem”, “Chamem minha teoria de verdadeira ou a chamem de falsa”, sua opção é evitável. Vocês podem permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me odiando, e vocês podem se recusar a fazer qualquer julgamento a respeito da minha teoria. Porém, se eu digo “Aceitem esta verdade ou a deixem para trás”, eu lhes dei uma opção forçada, pois não existe escolha além das alternativas. Todo dilema baseado em uma disjunção lógica completa, sem a possibilidade de não se escolher, é uma opção do tipo forçado.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e lhes propusesse se juntar a minha expedição ao Polo Norte, sua opção seria momentosa; pois esta seria provavelmente sua única oportunidade semelhante e sua escolha presente iria excluí-lo totalmente do grupo imortal do Polo Norte ou dar-lhes-ia alguma chance disso ocorrer. Aquele que se recusa a aceitar uma oportunidade única perde o prêmio tão certamente como se ele tivesse tentado e falhado. Ao contrário, a opção é trivial quando a oportunidade não é única, quando a aposta é insignificante ou quando a decisão é reversível se ela se mostrar imprudente posteriormente. Tais opções triviais abundam na vida científica. Um químico considera uma hipótese viva o suficiente para gastar um ano em sua comprovação: ele acredita nela a esse ponto. Mas se seus experimentos se mostrarem inconclusivos de qualquer maneira, ele está redimido de sua perda de tempo, sem qualquer dano vital.
Facilitará a nossa discussão se mantivermos todas as distinções em mente.
***
[1] Nota da tradutora: Mahdi, de acordo com as versões xiitas e sunitas da escatologia islâmica, é o redentor profetizado do Islã, que chegará a Terra alguns anos antes da chegada do juízo final, o Yawm al-Qiyamah (“Dia da Ressurreição”). Os muçulmanos acreditam que o Mahdi, juntamente com Jesus, livrará o mundo do erro, da injustiça e da tirania.
Então, ainda há este cheiro de azedume,
este pântano onde muitos se debatem
e poucos encontram em si
a vontade para sair.
Então, você ainda pode ver esta multidão
que caminha sem direção,
e morre aos poucos
enclausurada em suas próprias gaiolas.
Ante olhares curiosos, que em realidade
nada veem e nada sentem,
você continua batendo suas asas
e planando junto aos ventos do leste.
“Que outro mundo é este?” – você pode perguntar...
Ora, é o mesmo!
Não é o mundo que muda, ó andarilho dos ares,
mas o seu ponto de observação...
Afinal, foi você quem rompeu seus grilhões;
você quem se arremessou sobre o abismo profundo
que havia além da sua antiga gaiola;
e foi você, ó ser alado,
quem criou estas asas de amor,
e renasceu nesta nova forma,
e aprendeu a ver todas as coisas do alto!
Mas ainda é cedo para celebrar.
Este sonho é apenas um breve deslumbre
da Grande Colheita na Alvorada.
Sim, eu sei o quanto é difícil
voar tão alto,
e contemplar a luz nascendo além do horizonte,
apenas para acordar novamente lá embaixo.
Mas é esta, precisamente, a sua tarefa,
o compromisso que assumiu com seus irmãos –
vir buscar as sementes que nascem aqui,
no alto do Sinai,
e então, descer
para semear todo o mundo.
Vá! Vá, pequeno pássaro!
Suas asas ainda são frágeis
e o seu bico aguenta somente uma semente...
Mas vá!
Voe de volta aos vales de abaixo
e escolha com todo cuidado e sabedoria
onde plantá-la.
Voa! Voa!
Voa para bem longe daqui...
Deixe que a manhã do mundo
venha novamente lhe buscar,
mas lembra,
lembra deste sonho
no Dia da Colheita!
raph’25.05.14
***
Nota: Este é o último poema do Sefirat ha Ômer que eu devo publicar no blog. Mas, se tudo correr bem até o Dia da Colheita, isso tudo ainda deve se transformar num livro de poesia mística...
Neste caminho há um abismo
aparentemente intransponível.
Até a sua escarpa
a via foi dura e sofrida,
mas ao menos os livros ainda nos aconselhavam
sobre a melhor forma
de desviar deste ou daquele obstáculo,
e de evitar este ou aquele perigo.
Depois desta passagem, no entanto,
não há nada que as palavras possam fazer,
e nem mesmo os nosso instrutores mais sábios
poderão nos ajudar...
Ó, desbravadores de novas terras,
aventureiros de adentro,
não há quem possa erguer a ponte
e dar o primeiro passo desta travessia –
ninguém, além de nós mesmos!
Neste caminho há um abismo
vasto e profundo.
Até a sua beira
a jornada ocorreu em nossa própria margem;
mas do outro lado,
onde a música ecoa sem cessar,
iremos transbordar
e inundar o mundo inteiro!
Ó, construtores de pontes,
engenheiros da Alvorada,
certifiquem-se de que a sua corda
esteja bem fincada do outro lado;
e, ao dar o primeiro passo nesta travessia,
não se voltem para o que deixaram para trás
e nem olhem para baixo,
mas se concentrem, isto sim,
nos passos que ainda têm pela frente.
Neste caminho há um abismo
a separar os dois mundos.
Até este lado
a vida seguiu fria e sem sentido,
mas na outra margem
os sol já aquece as campinas,
a música já nos convida para a festa,
os deuses já se vão a dançar embriagados
e as cornucópias já estão postas à mesa...
raph’22.05.14
***
A cornucópia (imagem que ilustra o poema) é um símbolo representativo de fertilidade, riqueza e abundância. Na mitologia greco-romana era representada por um vaso em forma de chifre, com uma abundância de frutas e flores fluindo de seu interior.
Crédito da imagem: Wonderpolis.org/Google Image Search
Este vídeo – na verdade o vídeo de uma projeção – está em péssima qualidade, mas por se tratar de uma conversa entre dois seres plenos de espiritualidade, achei por bem trazer para cá...
Em 1991 o Dalai Lama, líder espiritual tibetano que foi obrigado a se exilar de sua terra natal devido a opressão do governo chinês, concedeu uma entrevista a Carl Sagan, provavelmente o maior divulgador de ciência do século XX, e que também sempre demonstrou interesse genuíno pela história das religiões – particularmente as orientais.
O que vemos no vídeo acima é, no entanto, apenas uma parte do diálogo, que transcrevo abaixo [as notas ao final são minhas]:
[Carl] Então deixe-me perguntar agora, se me permite, algumas perguntas sobre religião... O que acontece se a doutrina de uma religião, digamos o budismo, seja contrariada por algum achado, alguma descoberta na ciência, digamos, o que um crente no budismo faz nesse caso?
[Dalai] Para os budistas isso não é um problema. O próprio Buda deixou claro que o importante é a sua própria investigação. Você deve conhecer a realidade, não importa o que a escritura diz.
No caso de você encontrar uma contradição, em oposição a explicação das escrituras, então você deve confiar na descoberta em vez da escritura [1].
[Carl] Isso não é muito parecido com a ciência?
[Dalai] Sim, isso mesmo. Então eu acho que o conceito budista básico é que no início vale mais a pena permanecer cético [2]. Em seguida, realizar experimentos através de meios externos, bem como meios internos.
Se através da investigação as coisas se tornarem claras e convincentes, então é hora de aceitar ou acreditar [3]. Se, por meio da ciência, existir prova de que após a morte não há continuidade da mente humana, ou continuidade da vida; se isto for provado, então teoricamente falando, os budistas terão de aceitar isso [4].
[Carl] Então, o que isso faria com a doutrina da reencarnação?
[Dalai] Bem, eu não acho que, veja você, no que diz respeito à existência de uma continuidade da mente ou da vida após a morte... Esse conceito [a reencarnação], eu acho, tem mais razões coerentes.
Embora a aceitações desse tipo de teoria não consiga resolver todas as suas dúvidas, e não podem lhe dar a satisfação completa, ainda assim, tal teoria ainda é melhor do que a teoria da não-existência. Se não houver continuidade da vida, ou do ser, então a questão permanece: Qual a causa original de todas as galáxias, incluindo este planeta?
Por exemplo, há a Teoria do Big Bang... Tudo bem se foi assim que aconteceu, mas não importa... Então, por que aconteceu? [5] Então, ou você tem de aceitar que as coisas acontecem por acaso [6], sem uma causa específica, o que é desconfortável, pois várias perguntas permanecem; ou outra explicação seria [a existência de] um Criador.
Do ponto de vista budista, isso também não soa como resposta. Por que é que um Criador cria essas coisas? Mais perguntas permaneceriam...
[Carl] Então, você acredita em Deus?
[Dalai] Deus, no sentido de alguma realidade última – então sim, nós aceitamos isso. Mas Deus no sentido de um Criador todo-poderoso, os budistas não aceitam.
[Carl] Portanto, não há constatação concebível da ciência que faria você dizer que a doutrina budista está errada, ou que você não é mais um budista?
[Dalai] Eu acho que uma descoberta científica [realizada] através de cuidadosos experimentos, isto os budistas terão de aceitar de uma vez. Sem problemas.
Alguns cientistas, ou alguns budistas com mentalidade científica – como acho que deveríamos chamá-los –, dizem que não consideram o budismo como uma religião, mas sim uma ciência da mente. Às vezes eles chamam o budismo de uma ciência interior...
Assim, de acordo com a minha própria experiência, como resultado de me encontrar com cientistas – nos últimos anos tive muito contato com eles –, principalmente no campo da cosmologia, da neurobiologia, e também da física, principalmente no campo da mecânica quântica; e, claro, da psicologia – acho que nestes campos há muitos paralelos em comum.
Acho que nessas discussões que realizamos ao longo desses campos [7]... Eu como budista me beneficiei muito do que aprendi com suas descobertas. É muito útil para um budista [participar dessas conversas]. Ao mesmo tempo, alguns cientistas também mostram um interesse genuíno nas explicações budistas para os assuntos envolvidos.
E uma coisa é muito clara: No que diz respeito as ciências mentais, o budismo é altamente avançado.
***
[1] Reparem que o Dalai Lama fala em “nossa própria investigação”. Enquanto Sagan afirma que “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”, há muitos que se comprazem com o fato de muitas alegações espiritualistas não haverem (ainda) sido comprovadas em laboratório. Porém, a espiritualidade (e particularmente o budismo) vive de evidências extraordinárias, porém subjetivas. O máximo que conseguimos medir por aparelhos, até o momento, é o estado cerebral de monges budistas em meditação – e isto já é material para anos e anos de estudo. Sobre o tema, recomendo a leitura do livro O cérebro espiritual, do Dr. Mario Beauregard e Denise O’Leary (Ed. BestSeller).
[2] Eu pessoalmente estenderia este conselho a toda e qualquer prática espiritualista. Não há como se crer profundamente sem haver tido a experiência, é como “acreditar que a água do mar é salgada” porque se leu sobre isso nalgum livro... Mergulhar, e sentir o sal nos próprios lábios, é um outro nível de evidência – uma evidência que não se encontra em livros nem em experimentos científicos objetivos.
[3] Reparem como esta abordagem budista em nenhum momento procura “evangelizar” a própria crença, nem muito menos convencer ninguém de nada. O budismo, como ciência da mente, confia que cada um de nós – seres que possuem mentes – será capaz de, ao seu tempo, encontraras suas próprias evidências, e crer ou descrer por experiência própria. Isto nada tem a ver com evangelizações de crentes ou descrentes.
[4] Obviamente que, como Sagan gostava de dizer, “a ausência da evidência não é a evidência da ausência”, ou seja: é muito difícil comprovar objetivamente que algo não existe. No entanto, existem vários fenômenos “estranhos” que ocorrem em hospitais do mundo inteiro que parecem corroborar com uma ideia de continuidade da consciência durante o processo de morte. Sobre o tema, recomendo a leitura do livro O que acontece quando morremos, do Dr. Sam Parnia (Ed. Larousse).
[5] É precisamente esta abordagem que separa os espiritualistas dos cientistas mais céticos. Uma coisa é se perguntar, “Como funciona a gravidade, como ela afeta os corpos celestes?”, outra muito diferente é se perguntar, “Por que, afinal, existe a gravidade? Por que a Terra foi formada a partir da poeira estelar? Por que existe a vida?”.
[6] O que não é muito diferente de aceitar que não sabemos por que diabos elas acontecem, e desistimos de continuar tentando saber... É este o tal “desconforto” ao qual o Dalai Lama se refere. Talvez fosse mais honesto dizer, numa postura genuinamente agnóstica, “São tantas as variáveis em jogo que hoje o mistério do surgimento do espaço-tempo nos parece algo sem causa definida, pois é impossível conhecermos todas essas variáveis atualmente”. Segundo Immanuel Kant, tal mistério pode nunca ser totalmente solucionado...
[7] A visão preconceituosa de que os budistas ficam “meditando sem fazer nada isolados do restante do mundo” está um tanto distante da realidade. Se forem perguntar a um monge budista “o que ele faz além de meditar”, ficará um tanto surpreso com a sua agenda agitada – incluindo animadas discussões existenciais, científicas e filosóficas.
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Crédito da foto: Divulgação/Google Image Search (Carl Sagan e Dalai Lama)
Obrigado a Luc Anderssen por haver postado o vídeo legendado no YouTube
Até ontem havia uma peste negra
espalhada em nossa comunidade.
O seu mal se originou
no coração dos próprios discípulos
que desejaram alcançar a santidade antes do tempo,
e foram atraídos para a mais ardilosa das armadilhas –
crer que um mestre é feito
apenas de leitura e recitações.
Até ontem havia uma peste negra
espalhada em nossa comunidade.
Ela tornou os dias acinzentados
e as noites plenas de tristeza.
Porém, assim como as manhãs sucedem aos crepúsculos,
alguma grande luz estava destinada a surgir
de tamanha escuridão...
Milhares padeceram desta doença vil,
mas nosso rabi sempre nos disse,
“Ninguém pediu para ser doente,
e é a doença que nos ensina
a aproveitar os tempos saudáveis.”
Assim, os poucos discípulos que sobreviveram
decidiram acender fogueiras pela noitinha
para lembrar dos seus amigos que se foram,
e os orientar em sua jornada ao outro mundo.
Ó, buscadores do inefável,
quantas doenças, quantas mortes e quantas vidas
foram necessárias para que chegassem até aqui?
Quanto gemido e ranger de dentes
em plena solidão, em plena escuridão,
foram necessários para que encontrassem tais fogueiras?
Nos vales das sombras da morte
o vento corre gelado
e apaga todas as velas
acesas nas encruzilhadas...
Mas hoje é o dia do esplendor!
Hoje todas as fogueiras ardem
e as salamandras dançam
no ritmo do cintilar dos sóis!
O sopro da ignorância
pode aniquilar a chama de uma vela,
mas o que poderá fazer
contra um exército de incendiários?
Hoje as crianças correm e brincam em torno do fogo
sem perigo algum;
que este fogo foi aceso
no coração de cada um dos discípulos
que sobreviveram a tal peste...
E, ainda que fosse somente um,
ainda teria valido a pena;
pois basta que um consiga carregar a tocha
para que a pira se acenda
e sinalize sua luz
para o universo inteiro!
Hoje é um dia assim;
um dia para celebrar o fim da escuridão;
um dia para refletir a luz destas fogueiras
até os confins de nosso mundo.
Ó, agentes da Alvorada,
a luz foi criada
para ser refletida
adiante, adiante, adiante...
Isto não tem fim!
raph’17.05.14
***
Crédito da imagem: Youth Olympic Games, Singapore 2010 (Divulgação)
In May 9th 2014, during the meditation of the Counting of the Omer (Sefirat ha Ômer), those words came to me. A day afater, my friend Fabio Almeida (author of the portuguese blog, podcast and videocast Música & Magia [Music & Magic]) gave me this wonderful gift, with music than seens to come from the same place from where came those words (*)...
The ancient used to look upon the night sky
and connect those dots of light,
imagining a variety of forms and shapes
and symbols
and gods…
If the nights were even more filled with stars,
shining too close,
their light would dazzle us
and, being blind like this,
we wouldn’t take note of any constellation…
In the same way, we know
that there are nights full of storms
and so densely clouded,
that it’s thick veil overshadows all light.
Yet, even in the middle of the torrential rains,
lightning comes down
to warn us
that light still lingers,
untouched and pure,
even within the darkest night…
Oh, villagers of the lost tribes,
hear that thunder,
feel that rumble
shaking the entire world!
And then, think about this truth:
“It’s only because there is darkness
that we know what light is.
It’s only because there are storms
that we know what tranquility is.
And it’s only because there is so, so much loneliness,
that we remember the world from which we came from,
where all the stars of the endless night
formed, in the view of their inhabitants,
a single symbol,
a single god;
and his name was –
The one who lives in everything.”
raph’05.09.14 (also translated from portuguese by raph)
Desde que a primeira tribo
passou a colher mais trigo e cevada
do que necessitava para comer,
surgiram os estoques de grãos,
os vilarejos
e os salteadores...
Desde esse tempo
que há guerra
entre os que buscam conquistar tais riquezas
e os que as vigiam e defendem.
Mas contam as lendas
que, de tempos em tempos,
passava pela Terra
um nobre rei.
E a sua nobreza residia
no desejo de lutar e dominar territórios
não no mundo de fora,
mas no de dentro.
Ora, nós vimos grandes imperadores
que marcharam do Ocidente ao Oriente,
deixando um rio de sangue em seu caminho.
Tais homens foram lembrados e honrados
por todos aqueles que viveram em sua época.
O nobre rei, no entanto,
enviou todo o seu exército para o abismo
de sua própria alma;
e, tendo marchado montanha acima,
até tocar o próprio céu,
se tornou o Monarca das Campinas do Vasto Horizonte.
E este rei é lembrado, até o dia de hoje,
por todos aqueles que sentem
esta saudade perene
de tudo o que é eterno...
raph’12.05.14
***
Crédito da imagem: cena de Irmão Sol, Irmã Lua (Divulgação)
Produzido pelo studio canadense Heliofant, I, Pet Goat II é um curta animado que se tornou um viral na web. Apesar de não trazer praticamente nenhum diálogo, ele é repleto de simbolismo místico, numa história perturbadora que fala sobre a atual situação do mundo, e sobre a promessa de uma nova Alvorada.
Segundo a Heliofant, "A animação é uma história sobre o fogo no coração do sofrimento. Trazendo ao seu encontro dançarinos, músicos, artistas gráficos e animadores em 3d, o filme traz uma visão crítica dos eventos atuais. Nele há uma figura misteriosa, navegando em seu barco através de uma terra escura e desolada, em sua jornada em busca da paz interior."
O filme consegue realmente tocar a nossa essência ao trazer tantos símbolos que, afinal, dizem respeito ao que existe em nossa alma. O mundo que vemos lá fora é sobretudo um reflexo do que cultivamos adentro. A animação é uma crítica óbvia ao atual sistema político (sobretudo o americano), a falência das ideologias modernas, as igrejas fossilizadas em seus dogmas, e o culto ao "deus do consumo", como o gosto de chamar. No entanto, nele também há a promessa de um novo amanhecer, onde aquele que estava dormindo em nosso interior, acordará novamente, e trará o fogo de volta ao mundo... Vejam:
Até o dia seguinte ao sétimo sábado contareis cinquenta dias; e oferecereis uma nova oferta de cereais a Jeová. E quando segardes as searas da vossa terra, não segareis totalmente os cantos do vosso campo, nem colhereis o rabisco da vossa seara; para o pobre e para o estrangeiro o deixareis: eu sou Jeová vosso Deus – Levítico, 23:16 e 23:22 (Sociedade Bíblica Britânica)
Contagem do Ômer, ou Sefirat ha Ômer, é o nome dado a contagem dos 49 dias ou sete semanas entre Pessach e Shavuót, feriados judaicos correspondentes, respectivamente, a Páscoa e ao dia de Pentecostes. A Pessach, também conhecida como “Festa da Libertação”, celebra a fuga dos hebreus da escravidão no Egito em 14 de Nissan no ano aproximado de 1280 a.C. Ora, Nissan é o mês do calendário judaico que se inicia com a primeira lua nova durante a época em que a cevada já plantada atinge o seu amadurecimento. A Contagem do Ômer (sefirat significa “contagem”) tem, portanto, a sua utilidade prática, que é a contagem dos dias até que a cevada esteja pronta para a colheita. Ômer era uma medida antiga de grãos secos, e equivalia a aproximadamente 2,2 litros.
O caráter festivo mais antigo de Shavuót é o de uma festa campestre. Ao final da Contagem, já no mês de Sivan do calendário judaico, era realizada a colheita da cevada e de outros cereais. Grandes grupos de agricultores afluíam de todas as províncias, e o país adquiria um aspecto animado e pitoresco. Todos se dirigiam a Jerusalém, acompanhados durante todo o trajeto pelos alegres sons das flautas. Em cestos decorados com fitas e flores, cada qual conduzia a sua oferenda: primícias do trigo, cevada, uvas, figos, romãs, azeitonas e tâmaras. Chegando à Cidade Santa eram acolhidos com cânticos de boas vindas e adentravam ao Templo, onde faziam a entrega de seus cestos ao sacerdote. A cerimônia se completava com hinos, toques de harpas e outros instrumentos musicais.
Há uma outra razão para o Shavuót ser tão festivo. Ocorre que a Contagem do Ômer (os 49 dias que o antecediam) não era exatamente um período de grandes alegrias, mas sim de introspecção, e até mesmo melancolia... Nesses dias, os hebreus também refaziam em seu imaginário os passos da jornada de seus antepassados do Egito ao Monte Sinai, em sua fuga angustiada do jugo do Faraó.
Posteriormente, o período da Contagem também passou a ser considerado um período de luto em memória à peste que matou centenas de discípulos do rabino Akiva. Costumeiramente os homens não se barbeavam e nem celebravam casamentos neste período. O único dia em que se abandonava o luto era no Lag Baômer, o trigésimo terceiro dia da Contagem (Hod shebe Hod), e o dia que marcou o fim definitivo dos casos da doença.
Este dia era também o dia em que faleceu o rabino Shimon bar Yochai, considerado o grande precursor da Cabala, uma vertente mística do judaísmo tradicional. E foi exatamente através da Cabala que a Contagem do Ômer deixou de ser somente uma tradição agrícola, ou histórica, para se tornar um dos maiores rituais de meditação e autoconhecimento do mundo, praticado simultaneamente por milhares (quiçá milhões) de pessoas em todo o globo, todos os anos.
Nesta Contagem mística, meditamos todos os dias relacionando sete das esferas da Árvore da Vida com elas próprias e também com as demais, totalizando exatamente os 49 dias de Contagem (7x7=49). A Árvore da Vida, na tradição da Cabala, representa um sistema hierárquico que pode ser lido de duas formas: De cima para baixo, se inicia na centelha divina (Kether), e vai se tornando mais “densa”, até atingir o mundo físico (Malkuth). De baixo para cima, se inicia na consciência “mundana”, que vai se elevando, esfera por esfera, até que se abra inteiramente para a comunhão com a divindade do Cosmos. Estes dois caminhos representam tanto a criação de tudo que há a partir desta substância primeira, como o caminho de religação que a consciência humana precisa galgar para que consiga se reunir novamente com sua origem divina.
Apesar de a Árvore conter, na realidade, 10 esferas, há 3 delas que se situam tão próximas da centelha divina, do transcendente e inefável, que também estão além das conceitualizações da linguagem. Neste sentido, as meditações diárias da Contagem usam somente 7 das 10 esferas:
Chesed ou Bondade (Misericórdia) Chesed se situa abaixo de Chokmah. É a misericórdia. Representa o desejo de compartilhar incondicionalmente. Representa a vontade de doar tudo de si mesmo e a generosidade sem preconceitos, a extrema compaixão.
Geburah ou Disciplina (Rigor) Geburah se situa abaixo de Binah. É o rigor. Representa o desejo de contenção e de questionar os próprios impulsos. Canaliza sua energia por meio de objetivos concretos, com o intuito de superar obstáculos e transformar a própria natureza.
Tiferet ou Compaixão (Beleza) Tiferet se situa abaixo e entre Chesed e Geburah. É a beleza. Transforma em beleza Chokmah, Binah e Kether (as 3 esferas superiores). É a sabedoria e o entendimento sob a luz do conhecimento. Representa a divisão da árvore em macrocosmo e microcosmo.
Netzach ou Tolerância (Vitória) Netzach se situa abaixo de Chesed. É a vitória. Representa a energia dos sentimentos. Se relaciona com a vontade de reciprocidade, a busca pelo próximo e a superação dos próprios limites, propagando o pensamento eterno. Funciona como o princípio fertilizador do esperma masculino.
Hod ou Humildade (Esplendor) Hod se situa abaixo de Geburah. É o esplendor. Representa o pensamento concreto. É um canal de aprimoramento interno, de identificação com o próximo, sendo uma forma de aceitação do pensamento, assim como do reconhecimento dos opostos. Funciona como o princípio receptivo do óvulo feminino.
Yesod ou Compromisso (Fundação) Yesod se situa abaixo e entre Netzach e Hod. É a fundação. Representa o Plano Astral. Funciona como um reservatório onde todas as inteligências emanam seus atributos, que são então misturados, equilibrados e preparados para a revelação material. É a compilação das oito demais emanações (Malkuth não tem emanação).
Malkuth ou Nobreza (Reino) Malkuth se situa na posição central inferior da árvore. É o reino. Representa o mundo físico, onde é revelado o material compilado e emanado por Yesod (das oito demais emanações). É o canal da manifestação, desejando a recepção das demais esferas. É a distância de Kether que provoca esse desejo, criando a sensação de falta e de solidão. É, assim, o início do caminho ascendente.
Vejam abaixo uma ilustração da Árvore da Vida, por Rodrigo Amorim Grola:
***
Durante 49 noites, enquanto este lado do globo vira suas costas ao sol, eu tenho meditado sobre tais esferas, sobre o microcosmo e o macrocosmo, sobre a lua e as estrelas, sobre a noite escura e a manhã vindoura, sobre a solidão e a tristeza, e sobre o amor que é eterno...
Tais meditações têm se transformado em poemas, e os seus títulos correspondem exatamente ao dia da Contagem em que chegaram para mim. Não sei até onde isso tudo vai dar, mas o vídeo abaixo é somente um exemplo do que tem ocorrido em minha vida durante a Contagem do Ômer.
Boa reflexão a todos!
Em 9 de Maio de 2014 (Netzach shebe Netzach), durante a meditação da Contagem do Ômer, estas palavras chegaram para mim. Um dia depois, meu amigo Fabio Almeida (autor do blog, podcast e videocast Música & Magia) me deu este presente maravilhoso, com música que parece ter saído do mesmo lugar de onde vieram as tais palavras...
Os antigos olhavam para o céu noturno
e ligavam seus pontos luminosos,
imaginando as mais variadas formas,
os mais variados símbolos
e deuses...
Se as noites fossem ainda mais repletas de estrelas
brilhando próximas demais,
a sua luz nos ofuscaria
e, cegos assim,
não catalogaríamos constelação alguma...
Da mesma forma, nós sabemos
que há noites de céu tempestuoso
e tão densamente nublado,
que o seu véu espesso nos priva de toda a luz.
Porém, mesmo em meio às chuvas torrenciais,
descem os relâmpagos
para nos avisar
que a luz ainda perdura,
pura e intocada,
em meio a noite mais escura...
Ó, aldeões das tribos perdidas,
ouçam a este trovão,
sintam a sua vibração
chacoalhar todo o mundo!
E depois, reflitam sobre esta verdade:
“É somente porque há escuridão
que sabemos o que é a luz.
É somente porque há tempestade
que sabemos o que é a tranquilidade.
E é somente porque há tanta, tanta solidão,
que lembramos do mundo de onde viemos,
onde todas as estrelas da noite infinita
formavam, aos olhos dos seus habitantes,
um único símbolo,
um único deus;
e o seu nome era –
Aquele que existe em tudo.”
As Edições Textos para Reflexão têm o prazer de lançar o primeiro livro de Igor Teo, colunista do portal Teoria da Conspiração e autor do blog Artigo 19:
"O que possuem em comum um xamã e um psicoterapeuta do século XXI? E o que os diferenciam? Separados pelo tempo e o espaço social, ambos lidam em seus respectivos pressupostos com a complexidade da existência.
Esta obra é uma pequena jornada pela mente humana, em seus níveis cognitivo, emocional e corporal, demonstrando como estes estão relacionados com a linguagem, e em última instância, a própria palavra. Pois tudo é narrativa, dos mitos às notícias, da história dos povos à nossa própria história. Façamos aqui então uma narrativa psicoterápica."
Um caçador entra na tenda de um xamã. É um xamã antigo, que o conhece desde que ele nasceu. Como de costume, ele já sabe o que o caçador irá perguntar, “Onde devo caçar amanhã, o que dizem os deuses?”, e se prepara para o início do ritual – afinal, a sobrevivência de toda a tribo depende de boas caçadas.
Deixemos este planeta pequenino girar milhares de vezes em torno de seu astro, e teremos outra cena, onde um executivo, CEO de uma multinacional que vai muito mal na bolsa de valores, adentra a sala do seu terapeuta cheio de questões existenciais e angústias encarceradas em sua infância e adolescência.
As perguntas serão mais complexas e as respostas, provavelmente menos objetivas, mas a função do terapeuta, mesmo assim, não é tão diferente da do xamã. Separados pelo tempo e o espaço, ainda assim continuam lidando com o mesmo elemento – a alma humana, e a complexidade da existência.
Hipócrates, “pai da medicina”, dedicou sua vida ao estudo de formas racionais para o tratamento de doenças. Era avesso a superstição e as práticas de “barganhas” com os deuses em busca de curas milagrosas. Dizia que “tudo acontece conforme a natureza”, que a cura “está ligada ao tempo e às vezes também às circunstâncias”, e por isso mesmo nenhum médico poderia prometer cura, e sim tratamento: “Tuas forças naturais, as que estão dentro de ti, serão as que irão curar suas doenças”.
A medicina moderna, no entanto, parece ter a tendência a analisar o corpo como uma máquina. Fascinados pelos avanços da tecnologia, talvez tais médicos pensem que a maquinaria avançada possa fazer todo diagnóstico e tratamento quase que no “piloto automático”, e que eles devem tão somente estar muito bem informados acerca das últimas descobertas das ciências médicas.
Para os materialistas eliminativos, que levam a ideia de “máquina biológica” às últimas consequências, a própria subjetividade, a ideia de que temos uma consciência e que participamos em suas escolhas de alguma forma, nada mais é do que uma ilusão persistente.
Segundo o arqueólogo Peter Watson, “as ciências sociais, psicológicas e cognitivas permanecem enlatadas em palavras e conceitos pré-científicos. Para muitos de nós, a palavra “alma” é tão obsoleta quanto “flogístico”, mas os cientistas ainda usam palavras imprecisas como “consciência”, “personalidade” e “ego”, para não falar em “mente”. Os artistas ainda podem divertir-se com esses conceitos, mas os assuntos mundiais sérios já seguiram em frente” [Not Written in Stone, New Scientist, 29/08/2005].
Sem dúvida que os artistas ainda se divertem. Segundo Alan Moore (vocês ainda ouvirão falar mais dele neste livro), “a magia, como a arte, é uma ciência da linguagem, do uso de símbolos para induzir alterações na consciência”. Isto quer dizer que, se é que existe a alma, ela parece existir neste fluxo de estados de consciência, onde a chave que abre e fecha suas intermináveis portas é nada mais que a palavra, a linguagem.
Dessa forma, das pinturas rupestres ao cubismo de Picasso, dos rituais para Dionísio ao último sucesso da Broadway, das esculturas da Deusa Mãe ao hiper-realismo de Ron Mueck, das antigas máscaras tribais ao garotinho que veste a máscara do Homem-Aranha no último sucesso de Hollywood, estamos ainda, todos nós, encenando os fatos da mente humana através destes símbolos que, a despeito das promessas do racionalismo da pós-modernidade (ou como diabos chamem isto hoje em dia), não estão desvanecendo, não estão indo embora, e jamais irão!
A maior capacidade do ser humano é, afinal, a interpretação de símbolos. É somente isto que nos separa das máquinas mais avançadas, que somente computam, somente seguem algoritmos e programação de ponta, mas não imaginam, não criam, não interpretam; são, enfim, apenas “machadinhas mais elaboradas”.
E, se você, como eu, acredita nisso, esta obra que tem em mãos pode ser de enorme utilidade para que possa conhecer melhor os meandros da sua própria mente, da sua própria alma, e de tudo o que os xamãs, novos ou antigos, têm encontrado em seu vasto universo interior.
Afinal, nós somos universos nós mesmos, com tantos neurônios flutuando em nosso crânio quanto estrelas no espaço-tempo observável, e com tantos mitos e construções da realidade quanto pudemos, ao longo de nossa história, transportar para as palavras e a linguagem.
E, a grande ironia disso tudo é que toda a linguagem humana foi criada, no fundo, para falar daquilo que não pode ser dito. Como diria o poeta inglês, John Galsworthy, “as palavras são apenas cascas de sentimento”.
Cabe aos terapeutas e aos xamãs trazer este sentimento à tona...
Enquanto caminhamos aflitos,
com as galochas enterradas neste charco
de desejos desenfreados,
descem os instrutores anônimos
e nos deixam mensagens pela manhã fria;
na beleza das gotas de orvalho,
na efemeridade da neblina
e no frescor das brisas...
Aquele que os enviou em nosso auxílio
não se preocupa em ser reconhecido.
Não é como um deus estranho
que deseja ser adorado acima dos demais,
que exige provas de fidelidade,
ou que marcha sobre os exércitos inimigos.
Os instrutores nos ensinam muitas coisas,
mas não o seu nome;
pois que o seu nome já está em tudo,
e seria inútil pronunciá-lo.
Ele é o mais desconhecido dos deuses,
e no entanto todos os altares do mundo
no fundo, o veneram...
Ele é o mais fiel dos deuses,
e no entanto jamais exigiu
sequer uma oferenda, um sacrifício, em retorno...
Ele é o mais pacífico, o deus mais gentil,
e no entanto o seu cajado
é capaz de esmagar qualquer exército...
Ele é aquela essência sagrada
que todos nós temos buscado
a cada momento de nossa existência.
E, no entanto,
é até estranho de se pensar,
mas aquilo que buscamos
também está a nos buscar...
Uma entrevista com Joseph Campbell, por Tom Collins Originalmente publicada na revista The New Story (1985)
Tradução de Gabriel Fernandes Bonfim; Revisão de Rafael Arrais
[Tom] Eu entendo que houve uma série de conflitos entre os conceitos religiosos ocidentais e orientais na igreja primitiva. Acho Pelágio [da Bretanha] uma figura fascinante, por exemplo.
[Joseph] O Pelágio do século IV era ou um galês ou um irlandês, eu acho. Ele manteve a tradição ocidental individualista contra o que eu chamaria o tribalismo do Oriente, e foi considerado um herege. Ele expos os principais argumentos contra as doutrinas nas quais Santo Agostinho, seu contemporâneo, era o campeão. Uma delas foi a doutrina do pecado original. Pelágio disse, “Você não pode herdar o pecado de outro. Portanto, o pecado de Adão não é herança de ninguém.”
[Tom] Os pecados do pai não recaem sobre o filho?
[Joseph] Isso é tudo filosofia oriental, não europeia. Outra coisa que Pelágio disse é que você não pode ser salvo pelo ato de um outro. Isto diz respeito a Jesus na cruz, e derruba toda a crença [de que ele veio “pagar nossos pecados”]. Claro que [sua ideia] foi rejeitada. Pelágio estava defendendo a doutrina da responsabilidade individual. Eu não sei de onde vem, mas certamente era típico, eu diria, dos europeus, em oposição aos pontos de vista orientais. Você era um indivíduo, e não apenas o membro de um grupo.
[Tom] Isso soa como aquele trecho na lenda do Rei Arthur...
[Joseph] “Cada cavaleiro adentrou na floresta num ponto que ele havia escolhido, onde ela era mais escura e não se via caminho algum.” – Isto vem de A jornada do Santo Graal [The Quest of the Sangral], de 1215, aproximadamente, na França.
[Tom] Como é que eles esperam encontrar o seu caminho, então?
[Joseph] Sim. Caso contrário, você iria seguir o caminho de outra pessoa, seguindo por vias já desgastadas com as pegadas de tantos andarilhos. Ninguém no mundo jamais foi você antes, com os seus dons, habilidades e potencialidades. É uma pena desperdiça-los fazendo o que alguém já realizou anteriormente.
[Tom] Você disse certa vez que nenhuma sociedade humana foi encontrada onde os temas mitológicos não eram celebrados – “magnificados em canções e experienciados em êxtases de luz e visões”. O que dizer sobre a nossa sociedade?
[Joseph] O que aconteceu na nossa é que, a nível oficial a tônica recai sobre a economia e as práticas políticas, e tem havido uma eliminação sistemática da dimensão espiritual. Mas ela existe em nossas poesias e artes. Ela existe. Você pode encontrá-la aqui. Está em uma condição recessiva, mas do contrário as pessoas não teriam vida espiritual de maneira alguma.
[Tom] Ela não estaria viva também em algumas fases do movimento ecológico?
[Joseph] Sim. E esse interesse agora no folclore indígena americano, isso não é interessante? O povo brutalizado e rejeitado – e são eles quem trazem a mensagem pela qual este país tem esperado.
Há um provérbio terrível de Spengler, que eu li num de seus livros, “Jahre der Entscheidung”, “ano da decisão”, que são os anos em que vivemos agora. Ele disse, “Quanto a América, é um amontoado de caçadores de dólares, sem passado, sem futuro”. Quando eu li isso na década de 30 eu levei a mal. Eu pensei que era um insulto. Mas no que as pessoas estão interessadas? E então Lenin diz: “Quando estivermos a ponto de enforcar os capitalistas, eles irão competir para nos vender a corda”. E é isso que estamos fazendo. Ninguém está se importando com o que sua cultura representa. Eles estão se perguntando se o agricultor no Centro-Oeste vai votar ou não em você, por você ter vendido o trigo dele para os russos. É uma terrível falta de qualquer outra coisa que não preocupações econômicas, é isto o que estamos enfrentando. Esta é a velhice e a morte; o fim. Esta é a maneira como eu enxergo este assunto. Eu não tenho nada que não julgamentos negativos sobre ele.
Olhe para o que as pessoas estão lendo nos jornais. Você entra no metrô e as pessoas estão lendo todas sobre a mesma coisa – este assassinato, aquele assassinato. Este estupro, este divórcio. Observem os tópicos que não nos saem da cabeça! O foco jornalístico em nossas vidas é o assassinato. Assassinato!
[Tom] Você não vê tal conflito acabar? Não há nenhum tipo de ordem mundial que poderia nos trazer isso?
[Joseph] Ela teria que ser uma ordem mundial, mas então ainda haveria luta dentro dela, assim como há luta dentro de nossa ordem nos Estados Unidos. Nunca me apeguei a nenhuma ideia de revolução, pois já conheci revolucionários demais.
Nota do revisor: Eu penso que Campbell, em sua sabedoria, acreditava que a verdadeira revolução é a que ocorre dentro da alma humana, e não em seu exterior.
[Tom] Se os únicos mitos que existem então são aqueles em que todo o mundo acredita – Cristianismo, Judaísmo, Hinduísmo, Budismo – as pessoas não poderiam criar um novo mito, que atendesse as necessidades de hoje?
[Joseph] Não, porque mitos não vêm a existência dessa forma. Você tem que esperar para que eles apareçam. Mas eu não acredito que nada desse tipo vá acontecer, porque existem muitos pontos de vista dispersos ao redor do mundo. Todos os mitos têm estado até agora dentro de horizontes limitados, e as pessoas têm de estar de acordo com suas dinâmicas de vida, suas experiências de vida.
[Tom] Os gregos antigos foram cercados pela presença de deuses – pelas estátuas e as lembranças desses deuses.
[Joseph] Mas isso não funciona mais. O cristianismo não está movendo a vida das pessoas hoje em dia. O que está movendo a vida das pessoas é o mercado de ações e as pontuações do beisebol. O que tem interessado às pessoas? Há um nível de pensamento totalmente materialista que tomou conta do mundo. Não há mais nem mesmo um ideal pelo qual alguém esteja lutando.
***
Nota de Tom Collins (o entrevistador): Minha vez. Eu gostaria de adicionar meus comentários aos de Joseph Campbell que diz respeito à Bíblia [ver parte 3]. Minha intenção em incluir seus comentários não foi para desmerecer as tradições baseadas na Bíblia em relação a outras tradições importantes, como o hinduísmo ou budismo. Do meu ponto de vista, a literatura sagrada de todas estas tradições foi escrita em uma linguagem da era dos impérios, e está profundamente envolvida com a consciência dos senhores da guerra. Se quisermos avançar, precisamos olhar para estes textos com olhos claros, capazes de ver o chauvinismo tribal, o machismo, o militarismo, etc., pelo que eles são. Só então seremos capazes de traduzir a sabedoria que eles de fato têm, em uma linguagem renovada, adequada para a Era Planetária.
***
Nota do revisor: É sempre reconfortante e esclarecedor tomar contato com a sabedoria de Joseph Campbell, mas penso que o fim desta entrevista ressoou particularmente sombrio. Ocorre que, já nos idos da década de 80, o olhar atento de Campbell sobre a sociedade “sem mitos” já antecipava, ainda que intuitivamente, uma crise de sentido da modernidade (ou pós-modernidade, ou seja lá como queiram chamar) que só se revela em todas as suas nuances e conflitos no século XXI.
Creio que este trecho de uma breve entrevista de Eduardo Galeano aos jovens espanhóis que se manifestavam “contra o sistema que aí está”, na Praça Catalunya, há alguns anos, seja ao menos uma espécie de sinalização para alguma luz que chegará, espero, senão com a Primavera, ao menos com a Alvorada:
“Aqui vejo reencontro, energia de dignidade e entusiasmo. O entusiasmo vem de uma palavra grega que significa “ter os deuses dentro”. E toda vez que vejo que os deuses estão dentro de uma pessoa, ou de muitas, ou de coisas, ou da Natureza, eu digo para mim mesmo: “Isto é o que faltava para me convencer de que viver vale a pena”.
Então estou muito contente de estar aqui, porque é o testemunho de que viver vale a pena. E que viver está muito, muito mais além das mesquinharias da realidade política e da realidade individual, onde só se pode "ganhar ou perder" na vida! E isso importa pouco em relação com esse outro mundo que te aguarda. Esse outro mundo possível.
Este mundo de merda está grávido de um outro!
O mundo a espera de nascer é diferente, e de parto complicado. Mas com certeza pulsa no mundo em que estamos. O mundo que "pode ser" pulsando no mundo que "é". Eu o reconheço nessas manifestações espontâneas, como as desta praça.
Alguns me perguntam “o que vai acontecer?”; “e depois, o que vai ser?”. Pela minha experiência, eu respondo: “Não sei o que vai acontecer... Não me importa o que vai acontecer, mas o que está acontecendo!”. Me importa o tempo que “é”.”
Hoje é o primeiro dia do Curso de Amor.
Os alunos carregaram suas cadeiras
da sala de aula até o jardim,
e com elas formaram um círculo
em torno de um pequeno chafariz.
Quando chegou o professor,
todos já estavam apreensivos.
Afinal, nunca haviam realmente
elaborado uma estratégia para o amor,
ou para como lidar com ele ao longo da vida.
Ele era, enfim, a coisa mais preciosa,
e também a mais desconhecida,
da qual toda a Academia se afastara –
menos aquele professor...
Sentado na borda do chafariz,
ao centro de todos,
ele deu início a aula:
Ele não se encontra nas cartilhas nem nos livros acadêmicos,
mas num coração que insiste em bater
e pulsar, a cada momento de nossas vidas.
Meus amigos, se querem compreender o amor,
precisam abandonar esses manuais de natação;
precisam mergulhar em si mesmos,
explorar as suas fossas mais profundas,
e colher todas as pérolas submersas,
uma por uma.
Meus amigos, ninguém pode dar amor
sem ter amor.
Pois o amor não aceita moeda de troca –
ele é o seu próprio valor.
A sua história não se encontra
nos registros das vidas dos reis e imperadores,
nem nas teorias políticas, sociais ou econômicas.
De fato, a sua história ainda não foi contada.
Hoje, ela precisa ser contada por vocês...
A cada dia de suas vidas,
enquanto o sol e a lua se alternam pelo céu,
há uma miríade de pequenos contos
e primorosas novelas
sendo contadas por cada um de vocês;
não em discursos ou livros,
mas em atos de amor!
Nessas histórias, o porteiro pode ser um dos personagens principais,
aquele que pode retribuir cada “bom dia”
com outro “bom dia” ainda mais entusiasmado.
Deem a devida importância a tal personagem,
pois é ele quem guarda a sua porta de entrada
e de saída.
E assim ele prosseguiu sua aula dando inúmeros outros exemplos, até que a tardinha chegou...
Meus amigos, finalmente, eu lhes digo
que há duas formas de se interpretar este mundo,
como que duas ilhas separadas por uma baía:
Numa delas, tudo é separado, esquematizado
e catalogado em pequenas caixas.
Noutra, tudo é uno, vivo
e compartilhado como num grande banquete.
Eu não vim aqui lhes ensinar mais nada,
senão a se embebedarem neste banquete;
até que a própria noção
encarcerada nos termos “eu” e “você”
se dissolva numa doce melodia
que é cantada por todos,
enquanto brindam em homenagem a Vida...
raph’30.04.14
***
Crédito da foto: Hayneedle Outdoor Fountains (Divulgação)