Pular para conteúdo
29.11.10

A outra margem

No início do século XIX, a Família Real portuguesa, juntamente com sua corte, decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro, fugindo da agressividade de Napoleão na Europa. Os “quadrilheiros”, que faziam o papel de polícia na cidade, não pareciam ser suficientes para proteger a corte na colônia brasileira – cerca de 60mil pessoas, mais da metade escravos.

Então em 1809, D. João VI, o príncipe regente, criou a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte, formada por 218 guardas com trajes idênticos aos da polícia de Lisboa. Nessa época ainda existia a escravidão e os direitos das mulheres eram praticamente nulos, existia uma margem muito bem estabelecida entre os príncipes e a nobreza, os eclesiásticos, os grandes comerciantes e burgueses, e os camponeses e escravos. Ninguém poderia vislumbrar uma travessia a outra margem; Não é que se entendiam como raças distintas, era até mesmo além disso: segundo alguns “religiosos”, escravos nem mesmo tinham alma!

Alma é um termo que deriva do latim anǐma, este refere-se ao princípio que dá movimento ao que é vivo, o que é animado ou o que faz mover. Quem não possuía alma, segundo os “grandes estudiosos de outrora”, não fazia parte do gênero humano, não poderia chegar ao céu, e havia nascido para ser subjugado (como os animais, também sem alma) por aqueles que tinham alma. Aos escravos, portanto, restava apenas cumprir o seu papel de subjugação e servir aos seus “mestres”...

O tempo passou e as mentes se iluminaram. Houve a independência da colônia e a proclamação da república brasileira, a abolição da escravidão e o reconhecimento dos direitos das mulheres. Agora, tanto mulheres quanto escravos têm alma, e mesmo os eclesiásticos admitem (esperamos que chegue a vez dos animais um dia)... Mas nem tudo correu tão bem. Houveram guerras, e não foi apenas a do Paraguai.

Dizem que uma alma colhe tão somente aquilo que planta. Mas, e a alma de um país, o que terá colhido? Por um lado, os escravos passaram a ser tratados como pessoas, gente com alma mesmo... Por outro, foram largados a própria sorte num mundo desconhecido, fora das senzalas. Como sempre, tudo o que fizeram desde então passou a ser pré-julgado como algo perigoso – a margem que existia entre eles e seus antigos “mestres” ainda era muito extensa.

Um dia os cânticos da Umbanda já foram caso de polícia, assim como as primeiras rodas de samba. Talvez os abastados tivessem medo que eles viessem a se vingar, a se reunir, se organizar, e atacar a sociedade hipócrita que um dia lhes deu a “liberdade”. Liberdade em termos, meia-liberdade, meia-alma... Mas os antigos escravos apenas tocaram a vida, e o tempo passou, e hoje seu sangue corre na veia de quase todos nós, e sua cultura é também a nossa. Mas não bastou a ciência provar que não existem raças humanas além do homo sapiens, há muitos de nós que ainda crêem nessa margem que nos separa uns dos outros – sua ilusão é persistente.

E o Rio de Janeiro, que já foi o Distrito Federal, que ainda ostenta a mesma polícia que um dia protegeu o príncipe regente, é o símbolo máximo dessa divisão: o corte profundo que fez sangrar, e esse sangue preencheu a margem entre todos nós na cidade maravilhosa.

Subindo o bairro da Gávea e adentrando a Rocinha, temos em vista um verdadeiro milagre: as mansões mais luxuosas próximas aos barracos da favela. De alguns deles, é possível ver a cantina de um dos colégios mais caros da cidade, assim como as piscinas refletindo o céu azul. Mas o milagre não está na desigualdade, pois esta existe em todo mundo. O milagre está no fato de que esse povo consegue viver a maior parte do tempo sem conflito algum.

Apesar da falta de oportunidades, do descaso histórico, secular, para com os filhos dos filhos dos filhos dos escravos, a grande maioria deles é honesta, trabalhadora, de bem com a vida, sorridente, apreciadora de coisas simples como um bloco de carnaval de rua ou uma roda de samba. Mesmo em meio a esgotos em céu aberto e a casas de pouquíssimos metros quadrados, eles não se revoltaram, não se rebelaram, jamais realizaram aquela “temida revolução” que seus antigos “mestres” predisseram. Alguns deles, aliás, são hoje parte da considerada “elite abastada”...

Mas ainda assim, são muitos, muitos vivendo nessas condições e de olhos abertos para tal desigualdade escancarada. Era de se esperar que alguns deles enveredassem por caminhos obscuros. E esse era para ser o papel da polícia: punir os contraventores e ilegais, de modo a que aprendessem a respeitar a lei. Na prática, no entanto, isso nunca funcionou muito bem. Alguns dos antigos nobres, hoje chamados apenas de ricos mesmo, precisavam praticar seus vícios e um comércio de drogas surgiu ao longo do século XX. De início, os donos das “bocas de fumo” eram vistos com bons olhos pela sua própria comunidade, como verdadeiros robin hoods, usavam o lucro da venda de drogas para ajudar e melhorar as próprias favelas.

Então vieram as grandes guerras e golpes militares, e a repressão policial tornou-se cada vez mais violenta. Foram nas prisões do Rio, o lugar onde deveriam ser reformados, que os pequenos traficantes entraram em contato com os presos políticos, gente de maior educação, que soube se organizar na época da ditadura militar. Resolveram seguir seu exemplo, e criaram as primeiras facções criminosas, e mesmo essas já nasceram divididas...

E a ditadura acabou, os agitadores políticos não tinham mais razão para se organizar de forma obscura, a margem da lei... Mas seus ensinamentos foram muito bem utilizados pelos criminosos: saindo da cadeia, começaram a transformar pequenas bocas de fumo em cadeias de tráfico, e o crime na cidade maravilhosa começou a dar dinheiro, muito dinheiro... Os burgueses de outrora teriam inveja!

Isso foi na década de 80, de lá para cá, após 30 anos de descaso, ineficiência, conivência, ou pura e simplesmente ignorância dos governantes para com o problema, o corte apenas alargou, mais sangue jorrou e hoje temos uma verdadeira hecatombe social. Facções de traficantes que fazem da cidade um tabuleiro de guerra, presídios que sequer conseguem bloquear a comunicação por telefone de seus detentos, agentes penitenciários mal pagos e sem preparo ou perspectiva alguma, policiais corruptos ou correndo eterno risco de vida por sua honestidade, e principalmente os políticos – esses mestres de ilusionismo e sedução, que nos prestam contas apenas de 4 em 4 anos, e ainda assim mal mexeram as pernas, mal elaboraram ou aprovaram leis referentes a questão da segurança nessas 3 décadas... Mas somos nós que votamos neles. No fim, um país também colhe aquilo que planta.

Mas o pior são aqueles que fingem que está tudo bem, consciente ou inconscientemente. Isso não é uma condenação, mas uma constatação. Eu morei quase todo o ano de 2004 no bairro de Vila Isabel, numa vila de casas bem próxima a uma das entradas do Morro dos Macacos, que na época tinha tiroteio dia sim e dia sim também... Acordar de madrugada com estrondos de granada ou mal ouvir minha esposa através do som metálico das metralhadoras não era o pior – o pior era constatar que a velhinha que morava há 50 anos naquela vila, ou o vendedor de balas, o motorista de ônibus, a lojista no shopping, todos haviam aprendido a viver “como se estivesse tudo bem”... “É isso mesmo, o Rio não tem mais jeito!”; “Não adianta sair daqui, pois está ruim em todo lugar!”; “Esse país vai pro buraco mesmo!”

Eu não acreditei que um dia acharia normal ouvir gente morrendo a menos de 1Km de casa, mas fato é que eu também fiquei entorpecido pela situação de caos. Não fosse pela bendita síndrome do pânico, talvez nunca tivesse reaprendido a respirar... Passei quase um ano com dores no peito e respirava muito mal, puro stress, só fui redescobrir a respirar quase um mês após me mudar do Rio. Hoje moro em outro estado e vejo as coisas de longe, mas minha alma sempre será carioca.

Não porque creia em nações ou fronteiras, não porque creia em margens e raças à parte, mas exatamente porque minha alma anseia por ver a cidade dividida voltar a se unir – não apenas num estádio de futebol ou na praia, mas no outro lado da margem. Essa mesma margem sombria que tem nos separado entre senzalas e casas-grande, morros e asfalto, de um e outro lado das grades dos condomínios, ela não é determinação divina ou algo intrínseco a nossa sociedade, ela é apenas fruto de nossa própria falta de visão, falta de contato, falta de alma.

Que a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte não se engane – todos nós somos membros da mesma corte. Estamos apenas colhendo o que plantamos: enquanto nossas políticas públicas forem baseadas em populismo ou breves shows pirotécnicos, e não em sólido e continuado investimento em educação, em presídios para reformar cidadãos e não para condená-los de vez ao inferno, em obras sociais não apenas nos morros próximos as áreas nobres, mas naqueles tão afastados que a maioria sequer sabe o nome, continuaremos afogados no sangue da margem aberta, do corte que não vai estancar...

É preciso ter alma. De nada adianta encher valas com corpos de criminosos, enquanto eles viverem isolados na sua margem – e nós na nossa –, mais deles virão, e cada vez piores. Seres nascem e renascem todos os dias, mas a alma de todos nós é um imenso coletivo que não suporta mais tropeçar em corpos. É melhor viver do que sobreviver.


Olho por olho, dente por dente, e a humanidade continuará profundamente carente – Gandhi, a Grande Alma.

***

Crédito das imagens: [topo] FeFreitas; [ao longo] AS500 (Rocinha); Fábio Lopez (jogo de tabuleiro baseado no War, da Grow).

Marcadores: , , , , , , , ,

25.11.10

Waste Land

Eu não teria porque postar o trailer de um documentário aqui, seria melhor esperar ele ser lançado para ver se valeria a pena divulgá-lo. Porém, quando o próprio trailer já é uma história relevante por si só, acho que merece ser passado adiante... Waste Land contará a história do trabalho de Vik Muniz (artista plástico brasileiro famoso em todo mundo e que costuma trabalhar com lixo) com os catadores de lixo de Jardim Gramacho, subúrbio do Rio de Janeiro. Vamos ao trailer então:

Marcadores: , , , ,

24.11.10

O canto da espera

Se acaso choras enquanto esperas morrer
Nada esperes desse teu pranto
Quem canta não espera tanto
Apenas põe-se a viver

Estás a morrer neste desencanto
Sombrio de vozes a ranger
Mas do vazio nada tens a temer
A esperança é o melhor canto

Não há que emudecer ante a morte
Ela é somente a noite da estação...
E tens tantos dias em tua mão!

Tua sorte é saber
Quem sabe não espera, canta
Cada novo alvorecer!

raph'10

***

Crédito da foto: playingforchange.com (Tal Ben Ari, "Tula")

Marcadores: , , , , ,

23.11.10

Yeshuah, parte 4

continuando da parte 3

Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.

[...] Jesus ensinava principalmente por parábolas, o que também configura uma novidade no judaísmo. Suas parábolas visavam ao choque e a rudeza, não sabedoria proverbial, levando os ouvintes por um terreno familiar e, em seguida, provocando o choque, para que saíssem da acomodação [1]. As parábolas derrubavam os muros da realidade comum para alcançar uma outra percepção, a percepção da presença do reino de Deus.

Com um estudo mais profundo e minucioso das tradições, lendas e folclores da época, a lenda de Jesus incorporou várias delas [2]. Dentre elas, vários milagres, datas, como a do Natal, o próprio nascimento e características pessoais. Quanto mais se lê os evangelhos como olhos críticos mas buscadores, tanto mais se adquire a convicção da profundidade das camadas que eles contêm: não só camadas históricas, mas camadas de simbolismo e de devoção fecunda.

A maioria dos estudiosos concorda que Jesus, de fato, curava as pessoas. Isso desafiava a ordem existente, mostrando que a cura de Jesus era uma alternativa para o Templo [3]. A exortação de Jesus para que as pessoas compartilhassem refeições com todos, os pobres e os marginais, também era uma quebra das divisões entre classes sociais. Tudo isso fazia dele um agitador popular [4].

Compartilhar refeição era o reino de Deus na terra. Uma forma de deixar entrar algo de fora para dentro. É preciso ressaltar ainda a relação diferente, chocante para a época, que Jesus tinha com as mulheres. Num meio que não permitia à mulher estudar as Escrituras, ler, escrever, que só o homem podia dar carta de divórcio: que o adultério era condenado só quando a mulher o cometia, Jesus andava pela Palestina acompanhado de mulheres e as considerava como iguais.

O Evangelho de Maria é o primeiro tratado do papiro de Berlim, que teria sido encontrado num antiquário da cidade de Achmim. Junto com o Evangelho de Tomé, de Pedro, de Bartolomeu, de Felipe, Nag Hammadi nos dá um aspecto diferente do cristianismo tradicional.

É atribuído a Míriam de Magdala [Maria Madalena], primeira testemunha da ressurreição e, por causa disto, considerada pelo apóstolo João como sendo, bem antes de Paulo e de sua visão a caminho de Damasco, a fundadora do cristianismo [5]. Ela é a “iniciada”, que entende os ensinamentos mais sutis de Yeshu [Jesus]. Ela é sua companheira, confidente, mulher. O Evangelho de Maria nos mostra que Jesus era capaz de intimidade com uma mulher, mão só carnal, mas afetiva, intelectual, espiritual. Assim ele podia salvar o ser humano em sua plenitude, introduzindo a consciência e o amor em todas as dimensões de seu ser. Mostra a humanidade de Jesus, ao mesmo tempo seu tamanho espiritual ou divino [6]. O Evangelho de Maria revela a forma de conhecer por meio da imaginação criadora, e não por conceitos intelectuais.

Como seria a história humana dos últimos vinte séculos sem Jesus? Se conseguirmos chegar ao âmago de sua mensagem não só com o intelecto mas também pela intuição, como nos sugere Maria, percebemos que ele não queria fundar uma nova religião nem uma nova Igreja, e sim propor uma nova forma de viver as relações humanas, baseada não mais no poder e sim na fraternidade.


Para quem gostou do texto, recomendo ler também a história em quadrinho “Yeshuah” de Laudo Ferreira (com arte-final de Omar Viñole), lançada em três partes pela Editora Devir, e para a qual este longo prefácio foi escrito.

***

[1] É bem interessante esta análise, e também profunda (“a segunda vista”). Se repararem, é uma prática comum dos grandes sábios. Sócrates, por exemplo, era também mestre nesta “técnica”.

[2] Em realidade os grandes mitos são extremamente persistentes. Estudiosos como Joseph Campbell, que já o definiram como “aquilo que não existe, mas existe sempre”, sabem muito bem que as culturas humanas sempre adaptaram os mitos (ao menos dos povos que não foram totalmente devastados por guerras ou doenças), visto que os reis e imperadores sempre souberam que é muito difícil “aniquilar” um mito.

[3] Interessante como nos dias de hoje as igrejas, principalmente as protestantes e evangélicas de países em desenvolvimento como o Brasil, promovem toda espécie de cura em seus templos. Mas, interessante notar, as curas sempre ocorrem apenas nos templos... Quão raros são os pastores capazes de curar em qualquer lugar, mesmo sem ter plateia ou câmeras de TV à volta. E ainda mais raros aqueles capazes de efetivar a verdadeira cura, a cura da alma.

[4] Quantas igrejas, tempos e ornamentação inútil construídos em seu nome nesses dois mil anos. Tivesse ele retornado, não seria aceito em quase nenhuma delas. Seria tão “marginal” quanto o foi em sua época.

[5] Também existem teses de que ela seria o “discípulo amado” e, portanto, autora do Evangelho de João, presente no Novo Testamento.

[6] Eu costumo dizer que comparar Jesus a Deus não é aumentar Jesus, pois ele foi um dos maiores ou talvez o maior sábio que caminhou pela Terra, e procuramos compreender a Deus por nossos parâmetros humanos. Porém, é diminuir muito a Deus, por razões óbvias.

***

Crédito da imagem: Akiane Kramarik

Marcadores: , , , , , , ,

21.11.10

Frases de Alan Moore

Alguns pensamentos pertinentes presentes no documentário "The Mindscape of Alan Moore":

"Eu posso ver o paganismo como um alfabeto onde cada deus é uma letra. No monoteísmo parecem faltar letras."

"A magia, como a arte, é uma ciência da linguagem, do uso de símbolos para induzir alterações na consciência."

"A maior parte das pessoas parece horrorizada com possuir uma alma, e com a responsabilidade de mantê-la pura."

"Existe este gigantesco híper-momento onde tudo ocorre, apenas nossa mente está ordenando tudo em passado, presente e futuro."

"Na língua primitiva os aborígenes tinham apenas o tempo presente, contavam seus mitos como se ocorressem agora, e de novo, e ainda novamente, etc."

"O que chamamos realidade é apenas o senso comum de nossa cultura. Ignorar outras culturas é estar cego para outras realidades."

"A ciência (atual) não pode lidar com a consciência nem testar pensamentos, então tenta reduzi-la a eventos químicos e físicos."

"Se vamos admitir o conceito de um 'espaço de idéias', podemos querer explora-lo como artistas, cientistas, ou ocultistas."

"Sistemas filosóficos, religiosos, científicos, políticos, econômicos, etc, são imaginação, são informação, mas todo nosso mundo baseia-se neles."

***

Crédito da foto: Rodrigo Furlan (Alan Moore)

Marcadores: , , , , , , , , ,

18.11.10

Yeshuah, parte 3

continuando da parte 2

Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.

O Evangelho Q é muito semelhante ao Evangelho de Tomé, um dos documentos encontrados em Nag Hammadi, que também é um evangelho de ensinamento e não uma narrativa da vida, morte e ressurreição de Jesus. É um texto gnóstico, apócrifo, ou amálgama extraído dos outros Evangelhos, ou o protoevangelho, das palavras autênticas de Jesus [1]. Transmite uma gnose não dualista. Neste Evangelho, Jesus é um Ser, que procura nos despertar para a consciência dele, para a Realidade Absoluta.

Os quatro evangelhos foram sendo considerados com o passar do tempo como documentos incontestes sobre a vida e a obra Jesus, mas milhares de pesquisas teológicas e históricas chegaram a conclusões contraditórias, umas comprovando que os evangelhos são textos teológicos e outras comprovando que têm validade histórica. Discute-se desde a possibilidade de Jesus ser um mito, sem nunca ter de fato existido em corpo físico, até ter sobrevivido à cruz e se casado, tido filhos e morrido em idade avançada na Índia [2].

[...] Nag Hammadi é uma pequena localidade no Alto Egito, onde, em 1945, um camponês árabe encontrou um grande pote de cerâmica, contendo 13 livros em papiro encadernados em couro. No total, foram descobertos cinquenta e dois textos [3]. Para a surpresa do pesquisador [4], a primeira linha traduzida foi: “Essas são as palavras secretas que Jesus, o Vivo, proferiu, e que seu gêmeo, Judas Tomé, anotou”, que faz parte do Evangelho de Tomé, uma coleção de 114 ditames.

Os manuscritos, conhecidos como Evangelhos Apócrifos (Apocryphon = livro secreto [5]) trazem ensinamentos diferentes dos apresentados nos evangelhos canônicos, com características  gnósticas e de tradições orientais, como, por exemplo, o trecho atribuído a Jesus, o Vivo: “Se manifestarem aquilo que têm em si, isso que manifestarem os salvará. Se não manifestarem o que têm em si, isso que não manifestaram os destruirá.” O legado de Nag Hammadi, portanto, além dos evangelhos secretos, contém poemas, descrições semifilosóficas da origem do universo, mitos, mágica, e instruções para a prática mística [6].

A gnose pode ser definida como uma experiência religiosa baseada numa sabedoria revelada. É um conhecimento total, intelectual e contemplativo que leva a pessoa à união com o objeto contemplado. Significa conhecer-se, o que, num nível mais profundo, é simultâneo a conhecer Deus. O gnosticismo foi banido pelo império romano de Constantino, na campanha contra as heresias, porque nele, a inspiração individual supera as instituições humanas e Jesus não é um deus e sim o último de uma linhagem de profetas [7].

Os papiros encontrados em Nag Hammadi tinham cerca de 1.500 anos, e eram traduções para o copta de manuscritos mais antigos escritos em grego, a língua do Novo Testamento, alguns dos quais foram encontrados 50 anos antes, em outros locais, como, por exemplo, fragmentos do Evangelho de Tomé.

Um comentarista bíblico que surpreende por sua coragem é Padre Méier, padre e professor da Universidade Católica, nos EUA, que publicou uma trilogia sobre o Jesus histórico. Sob a autoridade do Vaticano, o Padre Méier discute a evidência de que o Jesus histórico foi ilegítimo, que era casado, e vários outros tópicos que escandalizariam uma paróquia [8]. Ele concorda com todos os estudiosos eminentes que os evangelhos foram produto de mãos humanas, passaram por reescrita, e que, portanto, a imagem que nos apresentam hoje não é histórica. Méier concorda com seus colegas de que a figura histórica só pode ser obtida se as camadas de teologia forem tiradas, desconstruindo os evangelhos. Sendo um bom historiador crítico, ele descarta a verdade histórica dos elementos sobrenaturais: andas sobre as águas, transformar água em vinho, e consegue evitar confrontos com Roma, recusando-se a tirar conclusões em casos sensíveis como a ressurreição de Lázaro, dizendo ser possível que Lázaro estivesse mortalmente doente e foi curado por Jesus, fato que com o tempo se transformou em ressurreição dos mortos [9].

Na continuação, Júlia encerra seu brilhante prefácio com uma tentativa de definir este “novo” Jesus que emerge dos textos apócrifos.

***

[1] Obviamente esta será sempre a grande questão: como saber o que Jesus disse se nada deixou escrito e se aqueles que escreveram sobre ele muito provavelmente tiveram grandes interferências em sua obra? Infelizmente Jesus não viveu na Grécia antiga, e não dispôs de algum discípulo, tal qual Platão fez com Sócrates, para organizar seus pensamentos em textos que estariam a salvo de edições. O máximo que podemos fazer, portanto, é tentar avaliar dentre os ensinamentos atribuídos a ele – quais são realmente profundos, e quais são superficiais.

[2] Se morreu na Índia já não sei, mas que provavelmente andou por lá no “intervalo” de sua juventude – que, aliás, não é descrito em nenhum dos quatro evangelhos –, é uma teoria que guardo na mente com carinho.

[3] Na verdade foram achados por dois irmãos. Infelizmente, antes de terem a brilhante ideia de venderem os textos para algum museu, eles utilizaram alguns papiros para manter uma pequena fogueira acesa. Provavelmente foi o jantar mais caro da história. Outras versões indicam que eles os queimaram por acharem que continham “maldições”...

[4] Eles eventualmente chegaram às mãos de um pesquisador copta.

[5] Embora seja muito mais comum vermos a crença, fortalecida pelos eclesiásticos católicos e protestantes, de que “apócrifo” significa simplesmente “errado” ou “falso, não autêntico”.

[6] Também foram encontrados trechos extensos de “A República” (de Platão) em meio aos papiros, modificados com conceitos gnósticos (o que reduz a esperança de que mesmo textos profundos como o Evangelho de Tomé sejam “intocados”).

[7] Na verdade segundo o cristianismo oficial Jesus é o próprio Deus encarnado, feito homem, ou ao mesmo tempo homem e Deus, ou algo complexo desse tipo... Que somos deuses, o próprio Jesus diz: “vós sois deuses, farão tudo o que faço e muito mais”.

[8] Há inúmeras outras pesquisas do tipo no Vaticano, e afirmo isso no bom sentido: apesar de tudo, ainda existem religiosos de verdade em meio à ornamentação inútil.

[9] Em todo caso, para nós espiritualistas é a profundidade espiritual de seus ensinamentos o que conta, e não os milagres realizados – se é que foram mesmo.

***

Crédito da foto: James Marsh

Marcadores: , , , , , , , ,

15.11.10

Escrever sobre ti

Escrever sobre ti
É como ter a alma sempre macia
E saber saborear algo que jamais vi
E calcular equações com poesia

É esperar por um anjo após a ventania
E ouvi-lo ditar aos feitiços de sua magia
E prometer passar tudo ao papel na calmaria
Mas ao acordar, esquecer disso tudo que sentia

É como enxergar profundamente
Sem qualquer pressa, dentro de si
Dobrando-se na própria mente

E afastar o olhar
Antes que o brilho da fornalha venha a nos cegar
E tuas ondas quebrem pelo mar

Enfim, e o que é escrever sobre ti
Senão buscar a verdade aqui e ali
E não encontrar
Mas ainda então, sem mourejar
Sem desistir de si
Continuar a velejar
Assim sem rumo, dentro de ti

raph’10

***

Crédito da foto: Mark Karrass/Corbis

Marcadores: , ,

13.11.10

Isto não é o nada, parte 2

continuando da parte 1

Está na hora de eu dar minha opinião sobre tudo isso... Apesar de admirar o pensamento de todos os autores citados acima – incluindo dos que discordo –, penso que ainda há uma forma de resumir estas questões da unificação fundamental, do surgimento da vida e do paradoxo de ainda não termos encontrado nenhum sinal de vida inteligente neste Cosmos tão grande.

Este é o problema, o paradoxo, e também a solução – ele é grande, muito grande, talvez não muito diferente, na prática, do infinito. Quando os cientistas descobriram a radiação de fundo cósmica, uma das maiores comprovações experimentais da teoria do Big Bang, também se depararam com um grande problema: como explicar como ela era tão homogênea?

Isto foi resolvido pela teoria do físico Alan Guth. A sua idéia é que, na aurora do tempo, o espaço inflou com uma velocidade absurdamente grande. Dois pontos que, inicialmente, eram vizinhos, durante a expansão ultra-rápida se distanciaram mais rapidamente do que a velocidade da luz. Para que o mecanismo funcionasse e pudesse explicar a geometria cósmica e a homogeneidade da matéria, a expansão tinha de ser exponencialmente rápida. Por isso, sua teoria ficou conhecida como Inflação Cósmica. Atualmente esta teoria é aceita pela grande maioria dos cientistas.

Uma das conseqüências da Inflação é o conceito de horizonte cósmico... Sabemos que nada material viaja mais rápido do que a luz, entretanto, durante a Inflação, o próprio tecido do espaço-tempo “inflou” de forma mais rápida do que a luz! Isso significa que existe um horizonte até onde podemos enxergar o universo – e além dele há o “universo desconhecido”, além do alcance da luz do nosso lado, do nosso horizonte, como uma América que jamais poderá ser alcançada por Colombo.

Diante dessas informações, eu muitas vezes me pergunto, ou melhor, me vejo fazendo a seguinte pergunta aos cientistas: “Meus caros, que parte do infinito vocês não entenderam?”

Os cientistas procuram por agulhas no palheiro cósmico, e ao não encontrá-las ficam algo inquietos e angustiados... Para os que seguem a bíblia, como Heeren, isso só pode significar que Deus escolheu mesmo apenas aquele povo perdido num deserto da terceira pedra do Sol, na periferia de uma dentre trilhões de galáxias; Para os céticos desiludidos com a busca pela unificação na ciência, ou pela busca da “vida abundante” no Cosmos, isso só pode significar que somos um raríssimo acidente em meio a um universo caótico e hostil; Ainda para outros, talvez mais moderados, isso tão somente significa que o Cosmos é grande, realmente grande – mas quão grande?

É aí que o infinito entra para bagunçar com todas as teorias e crenças de tantas mentes brilhantes. O infinito não se equaciona, está além da matemática e talvez mesmo além de nossa racionalidade... Mesmo assim, ainda é possível tentar vislumbrá-lo pela lógica, tal qual arriscou o grande Benedito Espinosa.

Em sua “Ética” (Ed. Autêntica), Espinosa analisa a questão da criação, do “porque existe algo e não nada?”. Podem acusá-lo de ser mais um “sonhador da unidade fundamental de todas as coisas” – tal qual o faz Marcelo Gleiser com certa propriedade –, mas apenas acusar não basta: é preciso resolver a questão, é preciso encarar ao infinito face a face. E até hoje, que me desculpem os seguidores da bíblia e cientistas céticos, dentre todas as teorias acima citadas, somente ele avançou efetivamente nesta questão.

Se algo não surge do nada, nem mesmo flutuações quânticas no vácuo, nem mesmo um espaço vazio ou um pensamento, então há que existir algo de incriado, algo de eterno. Espinosa o chamou de Substância, “a Substância que não poderia criar a si mesma”... Ora, como sabemos que espaço e tempo estão intimamente conectados, falar em eternidade é falar em infinito.

Comparativamente, o núcleo de um átomo em relação à órbita de seus elétrons corresponderia a um pequeno inseto no centro de um estádio de futebol, uma mosca no meio do Maracanã. O resto é espaço vazio, ou preenchido por alguma parte dos 96% de matéria ou energia escura que não interagem com a luz e, portanto, jamais foram detectados pela ciência – postula-se sua existência pela observação do movimento das galáxias, na media em que falta bastante matéria para explicá-lo.

Seguindo nesse pensamento, sabemos que apenas em nosso horizonte cósmico existem mais estrelas (sóis como o nosso, cheias de planetas à volta) do que grãos de areia em todas as praias da Terra! E mesmo que nem uma única forma de vida exista em torno desses trilhões e trilhões de sóis, lembrem-se de que estamos falando apenas de nosso horizonte, de até onde nossa luz pode chegar. No “universo desconhecido” temos praticamente um infinito de possibilidades. É muito difícil afirmar qualquer coisa do tipo “não existe vida fora da Terra” ante à tal infinito.

Procuramos por agulhas num palheiro cósmico, mas não devemos esmorecer se a busca tem se mostrado árdua... Não devemos esmorecer ante o infinito, pois ele é tudo o que há, ele é a Substância que abarca a todos nós. Procuramos por versões conscientes dessa Substância, mas por vezes esquecemos que também somos formados por ela, que também estamos encharcados desse mar por todos os lados.

Por mais rara que seja a vida na Terra, ela não se compara à raridade da simples existência de tudo o que há. Como os 4% da matéria que interage com a luz, ou como a ínfima quantidade de elementos pesados que possibilitam a vida como a conhecemos em meio a um oceano de hélio e hidrogênio, somos tão raros quanto a própria Substância. E mesmo que sejamos poucos na Terra, nos confins de nosso horizonte cósmico e além, certamente seremos muitos – tantos quanto às estrelas em meio ao infinito.

Da próxima vez que se angustiarem com a escuridão da noite, com a idéia do nada e da morte vindoura, lembrem-se de que também temos tantos neurônios em nosso cérebro quanto estrelas no céu, lembrem-se de tudo isso que nos lembramos, e pensamos, e sentimos, e intuímos. Lembrem-se e afirmem para si mesmos:

Isto não é o nada.

***

Crédito das imagens: Silent World, de Michael Kenna (os textos são meus)

Marcadores: , , , , , , , , , , ,

Isto não é o nada, parte 1

Em 1996 cientistas da NASA declararam que um meteorito vindo de Marte parecia trazer consigo sinais de vida. A pedra extraterrestre, chamada ALH84001, desprendeu-se de Marte após a colisão violenta de algum cometa ou asteróide a cerca de 16 bilhões de anos, e caiu na Terra por volta de 13 mil anos atrás, sendo finalmente descoberta na Antártica em 1984.

Houve forte repercussão na mídia, e até o então presidente americano, Bill Clinton, referiu-se a possibilidade da descoberta de vida extraterrestre: “Hoje a pedra 84001 nos fala de um passo de bilhões de anos e de uma distância de milhões de quilômetros. Nos fala da possibilidade de vida. Se essa descoberta for confirmada, será uma das maiores na história da ciência. Suas implicações serão profundas, e inspirarão ainda mais reverência pelo universo em que vivemos. Ao prometer respostas para algumas das questões mais antigas da humanidade, levanta outras ainda mais fundamentais.”

Hoje, no entanto, a maioria dos cientistas está convencida de que os sinais de vida no meteorito 84001 não são reais. Um dos métodos para se identificar atividades biológicas em amostras de meteoritos é buscar por minúsculas “marcas de vida” gravadas nas rochas. A dificuldade é que processos geológicos muitas vezes causam efeitos extremamente parecidos com atividade bacteriana. Embora não tenhamos o caso por encerrado, essa pedra não é a prova que tanto buscamos. Ao que sabemos por evidências físicas, continuamos sendo o único planeta com vida no Cosmos.

Obviamente a falta dessa evidência não impede que muitos cientistas continuem esperançosos em encontrá-la em breve, afinal o universo é um lugar bem grande. Em seu livro “The Fifth Miracle [O Quinto Milagre]” o físico Paul Davies diz que “se a vida vem de uma sopa pré-biótica com certeza causal, então as leis da Natureza escondem um subtexto, um imperativo cósmico que comanda: ‘Faça-se a vida!’... Essa visão deslumbrante da Natureza é profundamente inspiradora e majestosa. Espero que esteja correta. Seria maravilhoso se estivesse.”

James Gardner é um jornalista especializado em pesquisa científica que traduz esse sentimento em uma teoria consideravelmente bem fundamentada, a do Biocosmos Egoísta, a qual é elaborada no livro homônimo, e defendida com maior embasamento no livro “O universo inteligente” (Ed. Cultrix). Vejamos como ele a resume: “A essência da hipótese do Biocosmos Egoísta é que o universo que habitamos está no processo de ficar impregnado de vida cada vez mais inteligente – mas não necessariamente vida humana ou sua sucessora. Nessa teoria, a emergência da vida e da inteligência cada vez mais competente não é um acidente sem significado num cosmos hostil, em grande parte isento de vida, mas está no próprio âmago da vasta maquinaria da criação, da evolução cosmológica e da replicação cósmica.”

Há ainda outros cientistas que primeiro buscam por evidências antes de considerar tais hipóteses. Em “O universo vivo” (Ed. Larousse) o físico Chris Impey nos traz uma detalhada análise da astrobiologia – o estudo da vida no espaço. Ao contrário do que muitos possam pensar, este é um ramo oficial da ciência, e demonstra que muitos consideram com seriedade a possibilidade de acharmos além da Terra formas de vida simples como bactérias e extremófilos, capazes de sobreviver em condições geoquímicas extremas, como no subterrâneo de Marte ou no oceano gelado de Europa, uma das luas de Júpiter... Isso não significa que esperam encontrar tão cedo qualquer ser mais complexo do que uma ameba, tanto menos alguma espécie capaz de comunicar-se conosco.

Recentemente cientistas descobriram um planeta que possui o tamanho correto, a densidade correta e a distância correta de sua estrela para abrigar vida tal qual a conhecemos. Gliese 581 é uma estrela anã vermelha localizada a 20,3 anos-luz da Terra, na constelação de Libra. O Planeta G, sexto de seu sistema, orbita no meio do que se chama de “região habitável” na qual a água pode existir em forma líquida, e possui cerca de 1,5 vezes o tamanho da Terra, o que garante uma atração gravitacional para fazer com que esta água possa se acumular em lagos e mares.

“Pessoalmente, dada a propensão da vida como a conhecemos de brotar em qualquer oportunidade, eu diria que as chances de existir vida neste planeta beiram 100%” disse Steven Voght, professor de astronomia e astrofísica na Universidade da Califórnia ao Discovery News.

Em seu livro “Criação imperfeita” (Ed. Record), o físico brasileiro Marcelo Gleiser critica veementemente essa propensão “monoteísta e unificadora” presente em muitos cientistas, uma espécie de busca por códigos ocultos na Natureza, por uma mítica Teoria do Tudo; E, claro, ele discorda dessa noção de que a vida “tem a propensão de brotar em qualquer oportunidade”. Enfim, Gleiser confessa que já foi ele mesmo um “unificador” em busca desses mistérios ocultos do Cosmos, mas que terminou por aceitar que a vida é tão somente um evento raríssimo num universo violento e hostil, fruto de uma cadeia de assimetrias que data desde o Big Bang, quando a pequena assimetria entre a presença de matéria e anti-matéria possibilitou o surgimento de galáxias, estrelas, planetas e, eventualmente, da vida no planeta Terra – teoricamente um evento tão raro que temos pouca esperança de encontrar vida inteligente em nosso horizonte cósmico, quanto menos especular que o universo é uma espécie de Biocosmos Egoísta.

Gleiser defende que a vida é especial exatamente por aparentemente só existir aqui – que é rara, muito rara, e que por isso mesmo tem de ser valorizada e protegida. A espiritualidade de Gleiser se foca num “humanocentrismo cósmico”, mas que até onde sabemos não passa da atmosfera terrestre. Para a teoria de Gleiser fazer sentido, basta que continuemos a não encontrar vida extraterrestre nos séculos vindouros, o que será uma prova cada vez maior de que o universo não parece ser uma “fonte inesgotável de vida”.

Interessante e irônico comparar o pensamento de Gleiser com o do jornalista científico Fred Heeren. Em seu livro “Mostre-me Deus” (Ed. Clio), ele nos traz uma análise abrangente do estado da cosmologia atual, mas aqui e ali ele insiste em inserir analogias bíblicas, muitas delas forçadas, mas que não deixam de compor uma teoria interessante. Não vou entrar em detalhes, mas o mais interessante para nossa comparação é que Heeren diz que é exatamente porque até hoje não encontramos vida inteligente fora da Terra que a bíblia parece fazer todo o sentido! Ou seja, Deus parece ter escolhido exatamente este planeta, e somente ele, dentre trilhões e trilhões de outros, para criar a vida.

É muito comum em livros de divulgação científica vermos teorias sendo expostas a torto e a direito sem uma preocupação maior com sua lógica – pois isso seria filosofia e não ciência. A ciência depende afinal apenas de comprovação experimental, e enquanto esta não aparece, uma miríade sem fim de teorias são elaboradas... Gleiser, por exemplo, também critica com fervor o atual estágio da física teórica, em que se baseia quase que totalmente em teorias que não têm como ser testadas e, portanto, nem validades nem invalidadas. Temos nesse cenário, como maior expoente, a Teoria-M ou Teoria das Cordas, que postula que os componentes fundamentais da matéria são minúsculas cordas, e que é de sua vibração que são criadas partículas de maior ou menor massa. A Teoria-M é uma das tantas outras que buscam uma unificação das teorias físicas, uma mítica Teoria do Tudo tão criticada por Gleiser – na medida em que para ele, ela obviamente ainda está bem além de nosso alcance.

Na parte final, minha opinião sobre o assunto...

***

Crédito das imagens: Silent World, de Michael Kenna (os textos são meus)

Marcadores: , , , , , , , , , ,

11.11.10

Yeshuah, parte 2

continuando da parte 1

Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.

[...] No início do cristianismo circulavam histórias transmitidas pela tradição oral e somente cerca de trinta anos após a morte de Jesus é que começaram a ser registradas por escrito. Dos mais de cem documentos existentes no Concílio de Nicéia em 325 d.C., escolheu-se os quatro evangelhos sinópticos, atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João. Não temos provas de quem os escreveu, pois na época o seguidor que registrasse uma tradição oral não assinava o próprio nome e sim daquele a quem seguia [1]. Os outros evangelhos foram considerados falsos e hereges, e foram queimados. Mas muitos se preservaram escondidos e enterrados.

Os quatro evangelhos escolhidos constituíram o Novo Testamento, assim como Atos dos Apóstolos, supostamente escritos por Lucas, 14 epístolas de Paulo, uma atribuída a Tiago, duas a Pedro, três a João e uma a Judas Tadeu. Por fim, há o Apocalipse, atribuído a João [2].

As epístolas de Paulo foram formando aos poucos o catolicismo. São os documentos escritos mais antigos do cristianismo, datando cerca de quinze anos após a crucificação [3]. Elas trazem uma devoção apaixonada pela figura de Jesus Cristo e indicam a morte e a ressurreição como ponto focal da fé. Jesus foi transformado em figura divina quando seus ensinamentos se expandiram no mundo dos gentios, helenizados, do Império, pessoas que estavam acostumadas a acreditar em deuses com origens miraculosas. Assim se deu a necessidade de um nascimento de uma virgem. O nascimento virginal não faz parte das tradições judaicas.

Acredita-se que o primeiro evangelho a ser escrito foi o de Marcos, por um seguidor de Pedro, que falava em aramaico a partir de sua memória dos fatos e das palavras de Jesus, e este seguidor o interpretava em grego, a língua que a maioria dos povos entendia naquela época. Ele teria sido escrito por volta do ano 70 d.C., logo depois da Guerra dos Judeus, qundo, após um cerco de três anos, as tropas romanas invadiram Jerusalém e destruíram o Templo [...] Na época de Marcos, a ressurreição não era importante, nem a ascensão, tanto é que ele termina o seu evangelho com a tumba vazia.

No evangelho de Mateus, possivelmente escrito na Antioquia, por volta de 90 d.C., detectamos os resultados da influência grega. Mateus era um judeu culto que decidiu que o evangelho de Marcos estava desatualizado. O judaísmo e o cristianismo, nessa época, começaram a rivalizar, e Mateus mostrou um Jesus que era o cumprimento das profecias sobre o Messias, ao mesmo tempo em que usava linguagem antijudaica.

[...] O Evangelho de João parece ter sido escrito pelo próprio. Ele difere dos outros três, pois traz um ensinamento esotérico e com características gnósticas [4], logo na frase inicial: “no início era o Verbo” (ou Logos) [...] Supõe-se que Mateus e Lucas tivessem o evangelho de Marcos como referência para escrever os seus textos. Com o tempo, os estudiosos deduziram que eles usaram uma outra fonte, que os estudiosos alemães do século XIX chamaram de Q, de Quelle, ou fonte em alemão.

Fragmentos desse evangelho nunca foram encontrados, mas os estudiosos o encontraram entretecido dentro dos evangelhos de Mateus e de Lucas. É o resultado de um trabalho de detetive feito por historiadores e teólogos ao longo de 150 anos. Portanto, o evangelho Q é um documento hipotético. Chamam-no também de “A hipótese Q”. Se este evangelho realmente existiu, consiste em “ditos de Jesus”, portanto em sua mensagem e não em sua história [5]. Não é um evangelho narrativo [...] O evangelho Q pressupõe uma comunidade para a qual não importavam a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, portanto, não enfatiza a “crença” em que Jesus “morreu pelos nossos pecados e ressurgiu dos mortos”. Para esta comunidade importavam os ensinamentos de Jesus.

[...] Os ditos em Q falam de um caminho ensinado por Jesus, um caminho profundamente subversivo à consciência cultural dominante da época, e talvez de todas as épocas. Era uma forma do cristianismo primitivo, Galileu, que enfatizava principalmente “O Caminho”, usando a frase citada em Atos, como o nome primitivo do movimento cristão, bem diferente das formas tradicionais e modernas do cristianismo.

Qual é a imagem de Jesus que emerge em Q? Enumeramos seis elementos:

- Jesus era um mestre de sabedoria com uma mente metafórica, um mestre de sabedoria não convencional, expressa em aforismos memoráveis.
- Jesus era um crítico cultural radical. A crítica é dirigida contra a riqueza e as elites governantes religiosas, políticas e econômicas. Jesus do Q ameaça Jerusalém com o julgamento divino.
- Jesus era um ecstático religioso. Ele tinha visões, foi para o deserto em busca de visão, passava horas rezando, seus opositores o julgavam possuído por espíritos [6], e falava de Deus em metáforas íntimas.
- Jesus era um curador e exorcista.
- Jesus era a Sabedoria de Deus (Sofia de Deus) e o Filho de Deus (não num sentido ontológico), mas não é comprovado que era assim desde o início.
- Jesus falava de uma escatologia apocalíptica e uma escatologia sapiencial. A primeira enfatiza a espera pelo ato de Deus, e a segunda fala do término de um mundo de consciência e dominação cultural, provocada pela reação a um mestre iluminado. Essa enfatiza que Deus espera que nós ajamos.

O Jesus do Evangelho Perdido Q não é Cristo nem Messias e sim o último de uma longa fila de profetas judeus. Ele é um mestre carismático, um curador, um homem simples pleno do espírito de Deus. Também é um sábio, a personificação da Sabedoria, formado na tradição do Rei Salomão.

As sinagogas da Galiléia não eram templos e sim locais de encontro, salões públicos onde os judeus se reuniam para cantar, rezar, fofocar e debater as escrituras. Provavelmente Jesus falava nesses locais, usando linguagem popular, referindo-se à vida rural [7].

Na continuação, Júlia fala dos documentos encontrados em Nag Hammadi, particularmente do Evangelho de Tomé.

***

[1] Isso pode passar desapercebido, mas é de enorme importância: significa que provavelmente o Evangelho de Marcos não foi escrito pelo próprio Marcos, o mesmo valendo para os demais. Já a questão da autoria do Evangelho de João é ainda mais misteriosa, pois sequer sabemos quem é afinal o discípulo amado.

[2] O que é um dos maiores contra-sensos daqueles que “organizaram” a Bíblia – atribuíram a autoria de um dos textos espiritualistas mais profundos da história ao mesmo autor de um verdadeiro hino pagão. Até aí tudo bem, contanto que os cristãos pós-Constantino (imperador que oficializou o cristianismo no Império Romano, no séc. IV) não condenassem tão veementemente o paganismo!

[3] E talvez os únicos dos quais podemos ter uma boa garantia de que foram realmente escritos pelo autor relacionado a eles – Paulo de Tarso.

[4] Os chamados gnósticos em realidade entendiam a si próprios como cristãos, foram principalmente os cristãos pós-Constantino que os intitularam assim, numa forma de diferenciar os “verdadeiros cristãos” dos “cristãos falsos ou equivocados”... E não foi apenas isso que eles fizeram com eles: também os perseguiram, assassinaram e queimaram quase todos os seus escritos. Os chamados gnósticos acreditavam que poderiam adorar a Deus em qualquer lugar, sem necessidade de templos ou padres... Na época isso dava pena de morte ou banimento.
Afora isso, eu não tenho a mesma certeza que João foi mesmo o discípulo amado.

[5] Há alguns que postulam que a história de Jesus não teria ficado tão famosa não fosse pela sua crucificação e ressurreição. Bem, talvez o mundo fosse diferente... Da mesma forma que Krishna, Lao Tsé e Buda não precisaram morrer de forma dramática para que sua sabedoria iluminasse as mentes do Oriente, talvez o Ocidente fosse bem diferente – provavelmente menos violento nos embates religiosos – se Jesus fosse lembrado apenas como um mestre de sabedoria e não um deus encarnado que enfrentou o calvário.

[6] Ah! A ironia!

[7] Observando igrejas suntuosas e ornamentadas, ou mesmo templos onde apenas uns poucos discursam enquanto a maioria ouve calada (ou assiste pela TV, ainda pior), não podemos ter exemplo mais claro de como o cristianismo rumou praticamente no caminho oposto do de Jesus. Filósofos debatendo em um jardim estariam mais de acordo com seu caminho...

***

Crédito da foto: Bettmann/Corbis (página de um Evangelho de João bastante antigo)

Marcadores: , , , , , , ,

9.11.10

Yeshuah, parte 1

Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.

Veio como uma criança indefesa, outros dizem que é lenda.

Há dois mil anos falamos dele. Ele mudou o mundo e cada um de nós, mesmo que não tenhamos consciência disso.

É a figura histórica a respeito de quem mais se escreveu, mais se inquiriu. As divergências na compreensão de seus ensinamentos já existiam entre os próprios apóstolos, antes mesmo de sua partida. Embora suas palavras, registradas por seus seguidores conforme se lembravam delas no mínimo trinta anos depois de sua morte, sejam simples, transmitindo conceitos básicos repetidos de diversas formas, o entendimento não é fácil, pois supõe uma mudança interior.

Ele usou discurso direto com os mais íntimos, mas com o povo falava por parábolas, como se faz com criancinhas que aprendem por meio dos contos de fadas e histórias [1].

Os documentos históricos e os registros de seus ensinamentos passam periodicamente por depurações e reformulações, na busca da verdade. Diferentes grupos disputam o reconhecimento como detentores das palavras autênticas dele. Artistas têm procurado esta verdade por meio da música, da pintura, da escultura, da literatura, cada obra sendo uma interpretação pessoal do autor.

Cada um projeta o seu Jesus com as características que lhe dizem aquilo que deseja ouvir. Instalam-se os estereótipos. Manifestam-se os ideais, as aspirações, os anseios [2].

Passamos a duvidar se é possível chegar aos fatos incontestáveis sobre sua vida, descobrir as palavras que ele de fato proferiu. Se é possível escavar através de camadas e camadas de interpolações, interpretações, encobrimentos, descobrimentos, interesses mundanos, ou simplesmente da ignorância e fraqueza dos seres humanos que promoveram guerras e cometeram atrocidades em seu nome. Se é possível encontrá-lo livre dos dogmas, não engessado em instituições que manipulam as pessoas para firmar seu poder.

Onde encontrá-lo?

Cada um que procura o seu Jesus o encontra dentro de si mesmo [3].

E nessa multiplicidade de seres ele se esparrama como chuva de estrelas, cada uma com seu brilho próprio, feitas, no entanto, todas da mesma essência de luz. Qual é mais verdadeira que as outras? Na obra aberta, como é a obra de Jesus, a maravilha é que todas são verdadeiras [4].

Na continuação, Júlia fala sobre os evangelhos sinópticos e apócrifos do início do cristianismo.

***

[1] O próprio recurso de se passar conhecimento através de parábolas remete a esta tentativa de resumir vários níveis de entendimento em um único discurso simples, capaz de ser passado adiante por quase todos. Isso significa que o Novo Testamento é quase em sua totalidade em conjunto de metáforas, independente de quem as tenha realmente escrito. Nesse sentido, buscar lá a “Verdade Absoluta” pode ser inútil, na medida em que nossa compreensão dela irá variar de acordo com a capacidade de interpretação de cada um.
Por outro lado, investigar a fundo os ensinamentos mais profundos de Jesus pode ser uma atividade revigorante, na medida em que seremos capazes de cada vez compreender um pouco mais, adentrando passo a passo nos níveis mais profundos do conhecimento espiritual ali presente. Claro que, para tal, não precisaremos nos limitar aos evangelhos sinópticos, pois há também muita profundidade em alguns apócrifos, particularmente no Evangelho de Tomé.

[2] A própria imagem de Jesus como um belo homem branco de cabelos e barba castanhos só se tornou mais aceita mais de 600 anos após sua morte – no início do cristianismo ele era muitas vezes retratado como um jovem pastor e às vezes até como criança. É pouco provável que Jesus tenha tido fisionomia sequer próxima da utilizada, por exemplo, em boa parte de seus retratos em pinturas da Renascença.

[3] Esse ponto de vista, da busca pelo “Cristo interior”, é brilhantemente defendido pelo grande estudioso de mitologia Joseph Campbell em “O Poder do Mito”:

Ao dizer: “Aquele que beber da minha boca se tornará como eu e eu serei ele”, Jesus está falando do ponto de vista daquele Ser dos seres, a que chamamos Cristo, que é o ser de todos nós. Todo aquele que vive essa relação é como Cristo. Todo aquele que traz em sua vida a mensagem do Verbo é equivalente a Jesus.
Veja, há dois modos de pensar “Eu sou Deus”. Se você pensa: “Aqui, em minha presença física e em meu caráter temporal, eu sou Deus”, então você está louco e provocou um curto circuito na experiência. Você é Deus não em seu ego, mas em seu mais profundo ser, onde você é uno com o transcendente não dual.
A palavra “religião” significa religio, religar. Se dizemos que há uma única vida em nós ambos, então minha existência separada foi ligada à vida una, religio, religada. Isso está simbolizado nas imagens da religião, que representam aquela união.

[4] A busca espiritual é uma verdade em eterna construção, o que não é muito diferente da busca científica e filosófica. Nesse sentido, a afirmação de que todas as visões de Jesus são verdadeiras não deve ser compreendida literalmente – com uma espécie de politeísmo do Cristo –, mas no contexto da espiritualidade plena: todas as visões e todas as formas de religião emprestam a verdade do amor, do Ser ao qual todos tentamos nos religar. Nesse sentido, não é possível dizer “eu achei a Verdade” – mas é perfeitamente possível compreender quando achamos “uma verdade”.
A melhor coisa dessa busca, aquilo que realmente nos “completa”, é exatamente o reconhecimento e compreensão dessas verdades profundas que esbarramos pelo caminho – muitas vezes sem estar procurando diretamente por elas –; Verdades que estão muito além da capacidade de uma descrição meramente racional e linguística, mas que na experiência religiosa podem ser vislumbradas em toda sua majestosa profundidade, em toda sua luz.
Isso nada tem a ver com dogmas, templos ou santas tábuas, mas com perfumes que passam com as brisas pelo horizonte amplo, e que às vezes percebemos.

***

Crédito da foto: Wikipedia (cristianismo arcaico)

Marcadores: , , , , , , ,

3.11.10

Ilia

Quando soube de Akiane Kramarik, uma garotinha norte-americana nascida em 1994 – filha de uma imigrante lituana ateia e um americano sem grande religiosidade – achei que estava diante de um caso especial, daqueles raios que não poderiam cair no mesmo lugar: desde os 4 anos, quando supostamente teve um “sonho com Deus”, Akiane começou a pintar quadros realistas e escrever belíssimos poemas que exalavam espiritualidade latente.

Hoje Akiane é uma artista e poeta reconhecida e até mesmo relativamente rica para a idade, e que hoje não busca inspiração apenas no cristianismo mas também no budismo e outras filosofias espiritualistas (ela também entrou na onda da “espiritualidade quântica”, mas isso é uma outra história).

O mais impressionante, porém, é que outro raio caiu na mesma família. Seu irmão mais novo (de 4 filhos no total), nascido em 2002, recita poemas desde os 5-6 anos (antes de saber ler e escrever), tem 20 livros de poesia e filosofia espiritualista publicados, além de pintar quadros abstratos que lembram muito alguns quadros de Jackson Pollock.

Assim como ocorre com Akiane, boa parte da renda das vendas de livros e quadros de seu irmão caçula vão para organizações de assistência aos necessitados ou caridade em geral.

Com vocês, alguns trechos poéticos da obra de Ilia Kramarik, talvez o filósofo mais jovem da história:

Você sabe que é amor
quando não consegue guardar para si mesmo.

***

Eu me graduei,
mas não estou parando aqui -
o que eu estava buscando
agora busca a mim.

***

Pela prosperidade deste dia
e pela prosperidade do olho humano,
é melhor ver que buscar.

Mas pela prosperidade da eternidade
e pela prosperidade do olho infinito,
é melhor buscar que ver.

***

Experimentar Deus
é experimentar todas as coisas vivas.

A relação suprema
é a relação com tudo que há.

***

Eu sou apenas um humano -
um alien
sem nenhum direito alienígena [alien rights].

***

Os olhos não crescem,
mas piratas estão na espreita
por mais tesouro.

***

Eu possuo a coisa mais especial -
a própria galáxia.

Então para mim
ninguém é ladrão.

***

A escruridão não pode cair
e as sombras não podem buscar -
elas seguem.

***

A miséria não reconhece escolhas.

A coragem não reconhece dificuldades.

***

Gurus muitas vezes não veem nada -
é muito ofuscante para eles.

***

Se Deus não crê
num poder superior a Ele próprio,
então Deus é um ateu.

Se Deus é um ateu,
eu poderia crer Nele?

***

Ninguém pode compreender o futuro por si só
Mas juntos nós podemos

O futuro não está rumando para nós
Nós estamos rumando para ele

O céu está vazio
Até você chegar nele

***

Todos os poemas traduzidos por Rafael Arrais do original em inglês.

Crédito da foto: Divulgação (iliapoetry.com)

Marcadores: , , , , , , , , ,

1.11.10

Uma imagem, uma reflexão (7)

"Eu vi a perfeição da Natureza, e também vi sua imperfeição. Me perdoem, pois não sei qual é a mais bonita..."

***

Texto de Marcelo Gleiser em "Criação Imperfeita" (Ed. Record) - Trechos das páginas 206, 209 e 210. Os comentários entre chaves são meus:

A água e o gelo tem propriedades espaciais bem diferentes. Enquanto a água é homogênea, isto é, em média aparenta ser a mesma em todos os pontos do volume que ocupa, o gelo não tem essa simetria: ao congelarem, as moléculas de água adquirem um arranjo espacial bem específico, formando uma rede cristalina hexagonal, parecida com uma colméia de abelhas. Átomos de oxigênio ocupam cada um dos seis vértices dos hexágonos, enquanto os dois átomos de hidrogênio alinham-se ao longo das conexões entre os vértices. Essa simetria em seis lados das redes cristalinas de gelo determina a belíssima simetria hexagonal dos flocos de neve, que são manifestações macroscópicas de uma simetria microscópica. Mesmo que os cristais tenham uma alto grau de simetria, a água líquida é ainda mais simétrica, pois é a mesma em todas as direções [considerando apenas a simetria, uma poça d'água é "mais perfeita" do que um cristal de gelo como o acima].

[...] Inicialmente, a temperaturas acima de zero grau, a água é homogênea e não vemos qualquer sinal de cristais de gelo se formando. Quando a temperatura cai, começamos a perceber pequenas regiões onde a água começa a congelar. Os minúsculos cristais de gelo são as sementes, ou "pontos de necleação", da transição de fase [estado líquido para estado sólido]. Na prática, essas sementes surgem devido à presença de impurezas. É isso que ocorre quando chove ou neva. O vapor d'água do ar resfriado vira uma gotícula líquida (se condensa) em torno de um grão de poeira. Se a condensação ocorre próxima ao solo, vamos gotas de orvalho próximas ao solo ou no chão. Se ocorre na atmosfera, a condensação forma nuvens. Quando a temperatura cai o suficiente, uma gotícula pode congelar, induzindo as gotículas vizinhas a fazer o mesmo. Como gelo é mais frio do que água, esse processo libera calor, ocorrendo fora de equilíbrio térmico. O equilíbrio só é restaurado quando todo o sistema é convertido para uma única fase. Como observamos nos nossos congeladores, uma vez que a água congela, nada de muito interessante ocorre; equilíbrio é a ausência de mudança [sem as imperfeições e desequilíbrios dos primeiros minutos do universo, nós não estaríamos aqui para admirar sua beleza - na perfeição e na imperfeição].

***

(clique na imagem para abrir em tamanho maior)

Crédito: Foto de cristal de gelo tirada através de microscópio especial, por Kenneth G. Libbrecht.

Marcadores: , , , , , ,