A outra margem
No início do século XIX, a Família Real portuguesa, juntamente com sua corte, decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro, fugindo da agressividade de Napoleão na Europa. Os “quadrilheiros”, que faziam o papel de polícia na cidade, não pareciam ser suficientes para proteger a corte na colônia brasileira – cerca de 60mil pessoas, mais da metade escravos.
Então em 1809, D. João VI, o príncipe regente, criou a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte, formada por 218 guardas com trajes idênticos aos da polícia de Lisboa. Nessa época ainda existia a escravidão e os direitos das mulheres eram praticamente nulos, existia uma margem muito bem estabelecida entre os príncipes e a nobreza, os eclesiásticos, os grandes comerciantes e burgueses, e os camponeses e escravos. Ninguém poderia vislumbrar uma travessia a outra margem; Não é que se entendiam como raças distintas, era até mesmo além disso: segundo alguns “religiosos”, escravos nem mesmo tinham alma!
Alma é um termo que deriva do latim anǐma, este refere-se ao princípio que dá movimento ao que é vivo, o que é animado ou o que faz mover. Quem não possuía alma, segundo os “grandes estudiosos de outrora”, não fazia parte do gênero humano, não poderia chegar ao céu, e havia nascido para ser subjugado (como os animais, também sem alma) por aqueles que tinham alma. Aos escravos, portanto, restava apenas cumprir o seu papel de subjugação e servir aos seus “mestres”...
O tempo passou e as mentes se iluminaram. Houve a independência da colônia e a proclamação da república brasileira, a abolição da escravidão e o reconhecimento dos direitos das mulheres. Agora, tanto mulheres quanto escravos têm alma, e mesmo os eclesiásticos admitem (esperamos que chegue a vez dos animais um dia)... Mas nem tudo correu tão bem. Houveram guerras, e não foi apenas a do Paraguai.
Dizem que uma alma colhe tão somente aquilo que planta. Mas, e a alma de um país, o que terá colhido? Por um lado, os escravos passaram a ser tratados como pessoas, gente com alma mesmo... Por outro, foram largados a própria sorte num mundo desconhecido, fora das senzalas. Como sempre, tudo o que fizeram desde então passou a ser pré-julgado como algo perigoso – a margem que existia entre eles e seus antigos “mestres” ainda era muito extensa.
Um dia os cânticos da Umbanda já foram caso de polícia, assim como as primeiras rodas de samba. Talvez os abastados tivessem medo que eles viessem a se vingar, a se reunir, se organizar, e atacar a sociedade hipócrita que um dia lhes deu a “liberdade”. Liberdade em termos, meia-liberdade, meia-alma... Mas os antigos escravos apenas tocaram a vida, e o tempo passou, e hoje seu sangue corre na veia de quase todos nós, e sua cultura é também a nossa. Mas não bastou a ciência provar que não existem raças humanas além do homo sapiens, há muitos de nós que ainda crêem nessa margem que nos separa uns dos outros – sua ilusão é persistente.
E o Rio de Janeiro, que já foi o Distrito Federal, que ainda ostenta a mesma polícia que um dia protegeu o príncipe regente, é o símbolo máximo dessa divisão: o corte profundo que fez sangrar, e esse sangue preencheu a margem entre todos nós na cidade maravilhosa.
Subindo o bairro da Gávea e adentrando a Rocinha, temos em vista um verdadeiro milagre: as mansões mais luxuosas próximas aos barracos da favela. De alguns deles, é possível ver a cantina de um dos colégios mais caros da cidade, assim como as piscinas refletindo o céu azul. Mas o milagre não está na desigualdade, pois esta existe em todo mundo. O milagre está no fato de que esse povo consegue viver a maior parte do tempo sem conflito algum.
Apesar da falta de oportunidades, do descaso histórico, secular, para com os filhos dos filhos dos filhos dos escravos, a grande maioria deles é honesta, trabalhadora, de bem com a vida, sorridente, apreciadora de coisas simples como um bloco de carnaval de rua ou uma roda de samba. Mesmo em meio a esgotos em céu aberto e a casas de pouquíssimos metros quadrados, eles não se revoltaram, não se rebelaram, jamais realizaram aquela “temida revolução” que seus antigos “mestres” predisseram. Alguns deles, aliás, são hoje parte da considerada “elite abastada”...
Mas ainda assim, são muitos, muitos vivendo nessas condições e de olhos abertos para tal desigualdade escancarada. Era de se esperar que alguns deles enveredassem por caminhos obscuros. E esse era para ser o papel da polícia: punir os contraventores e ilegais, de modo a que aprendessem a respeitar a lei. Na prática, no entanto, isso nunca funcionou muito bem. Alguns dos antigos nobres, hoje chamados apenas de ricos mesmo, precisavam praticar seus vícios e um comércio de drogas surgiu ao longo do século XX. De início, os donos das “bocas de fumo” eram vistos com bons olhos pela sua própria comunidade, como verdadeiros robin hoods, usavam o lucro da venda de drogas para ajudar e melhorar as próprias favelas.
Então vieram as grandes guerras e golpes militares, e a repressão policial tornou-se cada vez mais violenta. Foram nas prisões do Rio, o lugar onde deveriam ser reformados, que os pequenos traficantes entraram em contato com os presos políticos, gente de maior educação, que soube se organizar na época da ditadura militar. Resolveram seguir seu exemplo, e criaram as primeiras facções criminosas, e mesmo essas já nasceram divididas...
E a ditadura acabou, os agitadores políticos não tinham mais razão para se organizar de forma obscura, a margem da lei... Mas seus ensinamentos foram muito bem utilizados pelos criminosos: saindo da cadeia, começaram a transformar pequenas bocas de fumo em cadeias de tráfico, e o crime na cidade maravilhosa começou a dar dinheiro, muito dinheiro... Os burgueses de outrora teriam inveja!
Isso foi na década de 80, de lá para cá, após 30 anos de descaso, ineficiência, conivência, ou pura e simplesmente ignorância dos governantes para com o problema, o corte apenas alargou, mais sangue jorrou e hoje temos uma verdadeira hecatombe social. Facções de traficantes que fazem da cidade um tabuleiro de guerra, presídios que sequer conseguem bloquear a comunicação por telefone de seus detentos, agentes penitenciários mal pagos e sem preparo ou perspectiva alguma, policiais corruptos ou correndo eterno risco de vida por sua honestidade, e principalmente os políticos – esses mestres de ilusionismo e sedução, que nos prestam contas apenas de 4 em 4 anos, e ainda assim mal mexeram as pernas, mal elaboraram ou aprovaram leis referentes a questão da segurança nessas 3 décadas... Mas somos nós que votamos neles. No fim, um país também colhe aquilo que planta.
Mas o pior são aqueles que fingem que está tudo bem, consciente ou inconscientemente. Isso não é uma condenação, mas uma constatação. Eu morei quase todo o ano de 2004 no bairro de Vila Isabel, numa vila de casas bem próxima a uma das entradas do Morro dos Macacos, que na época tinha tiroteio dia sim e dia sim também... Acordar de madrugada com estrondos de granada ou mal ouvir minha esposa através do som metálico das metralhadoras não era o pior – o pior era constatar que a velhinha que morava há 50 anos naquela vila, ou o vendedor de balas, o motorista de ônibus, a lojista no shopping, todos haviam aprendido a viver “como se estivesse tudo bem”... “É isso mesmo, o Rio não tem mais jeito!”; “Não adianta sair daqui, pois está ruim em todo lugar!”; “Esse país vai pro buraco mesmo!”
Eu não acreditei que um dia acharia normal ouvir gente morrendo a menos de 1Km de casa, mas fato é que eu também fiquei entorpecido pela situação de caos. Não fosse pela bendita síndrome do pânico, talvez nunca tivesse reaprendido a respirar... Passei quase um ano com dores no peito e respirava muito mal, puro stress, só fui redescobrir a respirar quase um mês após me mudar do Rio. Hoje moro em outro estado e vejo as coisas de longe, mas minha alma sempre será carioca.
Não porque creia em nações ou fronteiras, não porque creia em margens e raças à parte, mas exatamente porque minha alma anseia por ver a cidade dividida voltar a se unir – não apenas num estádio de futebol ou na praia, mas no outro lado da margem. Essa mesma margem sombria que tem nos separado entre senzalas e casas-grande, morros e asfalto, de um e outro lado das grades dos condomínios, ela não é determinação divina ou algo intrínseco a nossa sociedade, ela é apenas fruto de nossa própria falta de visão, falta de contato, falta de alma.
Que a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte não se engane – todos nós somos membros da mesma corte. Estamos apenas colhendo o que plantamos: enquanto nossas políticas públicas forem baseadas em populismo ou breves shows pirotécnicos, e não em sólido e continuado investimento em educação, em presídios para reformar cidadãos e não para condená-los de vez ao inferno, em obras sociais não apenas nos morros próximos as áreas nobres, mas naqueles tão afastados que a maioria sequer sabe o nome, continuaremos afogados no sangue da margem aberta, do corte que não vai estancar...
É preciso ter alma. De nada adianta encher valas com corpos de criminosos, enquanto eles viverem isolados na sua margem – e nós na nossa –, mais deles virão, e cada vez piores. Seres nascem e renascem todos os dias, mas a alma de todos nós é um imenso coletivo que não suporta mais tropeçar em corpos. É melhor viver do que sobreviver.
Olho por olho, dente por dente, e a humanidade continuará profundamente carente – Gandhi, a Grande Alma.
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Crédito das imagens: [topo] FeFreitas; [ao longo] AS500 (Rocinha); Fábio Lopez (jogo de tabuleiro baseado no War, da Grow).
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