Pular para conteúdo
27.9.12

A roda dos deuses, parte final

« continuando da parte 1

Nós vinhamos falando do Uno, da Deusa Mãe e do "deus do pai", e agora prosseguimos nesta roda ancestral...

Entidades divinas
Schiller talvez tenha nos presenteado com a melhor síntese do que seriam, afinal, os deuses de outrora, citando a mitologia grega: “Naqueles dias do belo acordar das forças espirituais, os sentidos e o espírito não tinham, com rigor, domínios separados. [...] Por mais alto que a razão subisse, arrastava sempre consigo, amorosa, a matéria, e por finas e nítidas que fossem as suas distinções, nada ela mutilava. Embora decompusesse a natureza humana para projetá-la, aumentada em suas partes, no maravilhoso círculo dos deuses, não o fazia rasgando-a em pedaços, mas sim compondo-a de maneiras diversas, já que em deus algum faltava a humanidade inteira. Quão outra é a situação entre nós mais novos. [...] Eternamente acorrentado a uma pequena partícula do todo, o homem só pode formar-se enquanto partícula.” [1]
Todas as entidades divinas, como os deuses gregos, são mitos associados a aspectos da Natureza; o que certamente incluí a nossa natureza – a natureza humana. É óbvio que não existe, na natureza terrestre pelo menos, um homem que mora acima das nuvens e de vez em quando desce a Grécia para seduzir e copular com belas mulheres desavisadas; mas, por outro lado, a iconografia de Zeus é toda ela um imenso conjunto de símbolos, símbolos estes que existem e sempre existirão, ao menos enquanto existirem mentes com vontade de pensar sobre eles.

Os símbolos nada mais são do que imensas quantidades de informação reduzidas a uma única imagem ou história fantástica ou ícone que funcionam como uma chave mental para o acesso dessas informações e sensações, desde que a pessoa saiba, em seu pensamento, como usar esta chave de uma forma consciente. Você pode perfeitamente substituir a imagem (o símbolo) de Zeus por uma série de palavras (formadas por conjuntos de símbolos – as letras do alfabeto) a formar uma extensa lista: nobreza, inteligência, sabedoria, espiritualidade, sedução, magia, fúria, excitação, ciúmes, vingança, etc. É claro que, dependendo da interpretação de cada pessoa, e de cada tradição folclórica, essa lista pode variar imensamente, mas não absolutamente. Zeus é um conjunto de símbolos, ele serve para que acessemos tais ideias em nosso pensamento, sentimento e intuição, de forma simplificada e cada vez mais potente (o hábito faz o monge).
O grande problema do “uso dos mitos” é quando os entendemos como seres literais (e não metáforas), dispostos a barganhar conosco em troca de “favores espirituais”, “boa sorte”, “boa saúde”, etc. Isso é um problema porque, exatamente, a grande vantagem dos mitos é poder ativar a nossa vontade para que nós mesmos busquemos tais objetivos, que nós mesmos nos tornemos heróis a vivenciar a grande aventura da vida, que nós mesmos nos tornemos, enfim, deuses (“sois deuses, farão tudo o que faço e ainda muito mais” – disse o grande rabi da Galileia [2]).

Ainda em O poder do mito, Joseph Campbell nos ajuda a entender melhor a questão: “Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana? Na sua mais profunda identidade, você é Deus. Você é um com o ser transcendental”...
Dizem os Upanixades hindus que “aquele que sabe que também é parte de Deus se torna, em sua Criação, um criador”. É claro que ninguém imagina que possa criar outros universos por aí, apenas pensando sobre eles, nem muito menos que é onipotente neste universo (ou ao menos, ninguém que manteve certa sanidade em sua crença); por outro lado, todo aquele que reconhece a fagulha divina dentro de si, pode potencialmente, como Cristo, tornar-se “um com o Uno”. Neste sentido, todos os mitos, todos os deuses, são apenas “atalhos no caminho”, símbolos que podem nos auxiliar em nossa religação ao Uno.

Para finalizar o assunto, é sempre proveitoso consultarmos a sabedoria de Alan Moore: “Na Cabala há uma grande variedade de deuses, mas acima da escala, da Árvore da Vida, há uma esfera que é o Deus Absoluto, a Mônada. Algo que é indivisível, você sabe. E todos os outros deuses, e, de fato, tudo mais no universo é um tipo de emanação daquele Deus. E isto está bem. Mas, quando você sugere que lá está somente esse único Deus, a uma altura inalcançável acima da humanidade, e que não há nada no meio, você está limitando e simplificando o assunto. Eu tendo a pensar o paganismo como um tipo de alfabeto, de linguagem. É como se todos os deuses fossem letras dessa linguagem. Elas expressam nuances, sombras de uma espécie de significado ou certa sutileza de ideias, enquanto o monoteísmo é só uma vogal, onde tudo está reduzido a uma simples nota, e que quem a emite nem sequer a entende.” [3]

Avatares e heróis
Um avatar (do sânscrito, aval) é “aquele que descende de Deus”. Ora, se formos considerar o que falamos até aqui, isto não será nenhuma novidade – todos nós descendemos de Deus, assim como todas as coisas descendem de Deus. Um avatar, entretanto, geralmente é também um ser mitológico, um herói ancestral dos antigos contos falados nas fogueiras das primeiras tribos, uma prática que se estendeu por todas as civilizações humanas.

Joseph Campbell também nos falou algo interessante sobre essas jornadas heroicas da mitologia antiga: “O reino de Deus está dentro de nós e, não obstante, também está fora de nós; Deus, todavia, não é senão um meio conveniente de despertar a bela adormecida, a alma. A vida é o seu sono; a morte, o despertar [4]. O herói, aquele que desperta a própria alma, não é mais do que o meio conveniente de sua própria dissolução. Deus, aquele que desperta a alma, é, nesse sentido, sua própria morte imediata.
Provavelmente o símbolo mais eloquente possível deste mistério seja o do deus crucificado, o deus oferecido “ele mesmo a si mesmo”. Entendido numa das direções, o sentido é a passagem do herói fenomênico para a supraconsciência: o corpo, com os cinco sentidos, fica pendendo da cruz do conhecimento da vida e da morte. [...] Mas é igualmente verdadeiro que Deus desceu voluntariamente e colocou sobre si mesmo a carga de sua agonia fenomênica. Deus assume a vida do homem, que liberta o Deus que se acha em seu interior no ponto médio do cruzamento das hastes da mesma “coincidência de opostos”, a mesma porta do sol pela qual Deus desce e o homem sobe – Deus e o homem se alimentam mutuamente [5].”

Ora, se os xamãs da pré-história dedicaram-se com tanto sacrifício a realizar pinturas nas cavernas mais inacessíveis, eles de fato tinham uma boa razão: as experiências espirituais eram parte central de sua vida, de nossas primeiras tentativas de tatear a Natureza inefável. Seja caçando bisões ou imensos dragões, as jornadas dos heróis de outrora também diziam respeito a nossa própria jornada, a conquista de uma vontade devidamente conectada ao Cosmos, e não mais aos desejos desenfreados dos monstros subconscientes. Sim, pois aqui a mitologia e a psicologia se confundem, e fica muito claro, ao menos para quem tem olhos para ver, que a roda dos deuses tem girado, sobretudo, dentro da mente humanaesta grande desconhecida!
Conforme o Buda meditando ao lado de uma árvore, ou Jesus sendo tentado em pleno deserto, buscando despertar o Cristo que jazia em seu interior: todas essas histórias são símbolos transmitidos pelos sábios ancestrais, e ainda que não tenham transcorrido exatamente da forma como foram contadas, elas vem sendo incansavelmente reencenadas em seu palco mais primordial – a consciência humana. A questão, portanto, não é se os deuses e os avatares existem ou não, mas a experiência que provocam em nós. A experiência mística, religiosa, a reconexão ao sagrado, a vivência do amor: disto, todo verdadeiro religioso sempre teve convicção, e não precisou de experimentos comprovando aquilo tudo de que sabem lá dentro de suas almas.

O sagrado
Conforme o disco de Newton a girar, todos os pensamentos, mitos e histórias sagradas se revelam, em sua essência mais profunda, não como uma gama de deuses separados e rivais, mas como pontos de vista e reflexões de um só Deus, Uno.
Então chegamos ao primeiro paradoxo a ser reconciliado: o Uno não tem, nem nalgum dia teve, nem poderá um dia ter um oposto – pois o nada não existe. Da posse desta reconciliação, desta compreensão que em realidade não pode ser descrita por palavras ou linguagem, alcançaremos à experiência de reconhecer ao sagrado derramado sobre tudo o que há...
E poderemos, quem sabe, compreender que todos os outros opostos também vieram da mesma fonte, e todos os monstros e dragões em realidade nada mais eram do que atores deste teatro da alma. Uma vez compreendidos, reconciliados, também poderão ser nossos amigos – o lobo terá sido adestrado pelo amor.

Há essa ponte entre duas terras:
A terra onde tudo está separado em pequenas caixas, como segredos hermeticamente fechados;
E a terra onde tudo jaz junto, unido, conectado...

O amor é a ponte
O amor é uma fonte
Deus está a aguardar na outra margem
Deus não está a aguardar na outra margem
Deus é uma experiência

(Onde vivem os deuses, raph)

***

[1] Trecho de Cartas sobre a educação estética da humanidade (carta VI).

[2] João 10:34; João 14:12 (Novo Testamento). Compare-se com as frases gravadas nas pequenas tábuas de ouro utilizadas pelos antigos praticantes do orfismo: “Também eu sou da raça dos deuses”.

[3] Trecho de sua entrevista para o documentário The mindscape of Alan Moore.

[4] Este tipo de “morte espiritual” é antes um símbolo do renascimento, do despertar da alma, ainda nesta vida.

[5] Trecho de seu livro, O herói de mil faces.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (busto de Zeus); [ao longo] Agni Comics (quadrinhos com deuses do hinduísmo)

Marcadores: , , , , , , , ,

26.9.12

A roda dos deuses, parte 1

Há uma lenda bastante difundida entre as religiões ocidentais que afirma, basicamente, que o monoteísmo, a “descoberta” do Deus Único, foi uma concepção originária do judaísmo. Segundo esta lenda, existem no mundo algumas poucas religiões monoteístas, derivadas da crença hebraica, e outras tantas que creem na existência de vários deuses de origem paralela – o chamado politeísmo.

A verdade, no entanto, pode ser mais profunda... Joseph Campbell foi um estudioso de mitos e religiões em todo o globo, e em O poder do mito ele deixa muito claro o que acredita ser a principal diferença entre as grandes religiões ocidentais, e as orientais: Enquanto a oeste do canal de Suez, a maioria das pessoas identifica Deus com a fonte da Alma do Mundo, a leste de Suez, a associação que se faz é a da divindade como o veículo desta energia transcendente.

Por isso as religiões ocidentais tendem a identificar a Deus como um Grande Senhor que, sabe-se lá de onde, mantém a fonte da vida em constante afluência, enquanto que as religiões orientais tendem a ver esta divindade por toda a volta – ela seria o próprio fluido em movimento, a habitar a essência de todos os seres e de todas as coisas.

O curioso é que ambas as visões são complementares, e parecem ser apenas formas diferentes de se observar este grande mistério: “porque existe algo, e não nada?” Para resolver tal questão ancestral, a mente humana tem se aventurado a observar os recônditos mais distantes do Cosmos, e a mergulhar cada vez mais profundamente dentro de si mesma... Este grande conjunto de dualidades, de opostos, emanados de uma única fonte, mas que preenchem a tudo o que há, é precisamente isto a roda dos deuses. Reflitamos:

O Uno
Conta-nos o estudioso de mitologia e religiões, Mircea Eliade [1], que os poetas criadores do Rig Veda hindu já se questionavam, provavelmente muito tempo antes dos hebreus, acerca do problema do ser, ou do incrível fato de, afinal, algo existir: “O Uno respirava por impulso próprio, sem que houvesse inspiração ou expiração (...) Afora isso, nada mais existia”. Depois, segundo eles, através de um ato de desejo e vontade, a “semente primeira” dividiu-se em “alto” e em “baixo”, num princípio masculino e noutro feminino, e depois irradiou ou emanou de si mesma, como um pensamento, tudo o que há.
Desta forma, os milhares de deuses hindus são, eles mesmos, uma “criação secundária”. Daí nasce o grande questionamento de um desses poetas hindus anônimos e ancestrais: “Será que aquele que zela por este (mundo) no lugar mais alto do firmamento é o único a saber (da origem da “criação secundária”) – ou nem mesmo ele sabe?”.
Se é verdade que nem todas as interpretações dos Vedas chegaram a tal profundidade, não é verdade que nenhum sábio hindu tenha chegado a conclusões muito próximas dos hebreus – tudo o que há haveria de ter sido criado ou irradiado de uma só fonte, de um só Deus. Dessa forma, a ideia básica do monoteísmo está longe de ser uma criação do judaísmo, ou pelo menos, apenas do judaísmo.
Esta mesma conclusão está presente no Antigo Egito (particularmente no hermetismo), na filosofia de Parmênides (e alguns filósofos pré-socráticos que não a desenvolveram com a mesma profundidade), no estoicismo, no pensamento de Plotino e, mais recentemente, na monumental obra de Espinosa, a Ética.
Mas, e seria este Uno um ser pessoal, ou alguma espécie de energia inefável, de força ou lei oculta da Natureza? Disto não podemos saber, apenas apostar... Mas, ainda que apostemos na hipótese da energia inefável, ainda aqui teremos sido precedidos por Lao Tsé em muitos séculos: “O Caminho é vazio e inesgotável, profundo como um abismo. Não sei de quem possa ser filho, pois parece ser anterior ao Soberano do Céu” (Tao Te Ching, verso 4).

A Deusa Mãe
A adoração do aspecto feminino, fértil e vivificador da divindade data da pré-história (o que pode ser comprovado pelas inúmeras estatuetas de uma “grande mãe” encontradas pelos arqueólogos em vários pontos do mundo).
Quase 3 mil anos antes de Cristo, na grandiosa cidade de Uruk, na Suméria, o templo de Ishtar dominava a civilização da primeira grande cidade. Ishtar, entretanto, era apenas mais um nome dado a Grande Deusa, que era adorada então por muitas outras culturas na Terra. Nada se comparava ao poder da mulher. Toda a vida provinha dela e sem seu alimento nenhuma vida sobreviveria. A Mãe era a vida. A Terra era a Mãe. Deus era Mulher. O matriarcado dominou grande parte do período em que se cultuou a Deusa Mãe.
Certamente o advento da agricultura contribuiu ainda mais para que o mistério do nascimento ocupasse um ponto central das religiões antigas. A Terra era associada ao ventre e, como os vegetais, os homens nasciam do solo, e voltavam ao solo durante a morte. Provavelmente tais mitos tenham sido a fonte primária dos mitos de criação do homem a partir do solo, presentes não somente na mitologia hebraica como em alguns mitos africanos bastante similares.
Mas com o tempo, e o advento das primeiras cidades (com estoques de grãos), dos saqueadores de cidades, e dos exércitos que guardavam as cidades dos saqueadores, o mundo tornou-se mais bruto e violento, e o matriarcado foi sendo suprimido pelo patriarcado. A Deusa Mãe saía de cena...

O “deus do pai”
Ainda nos conta Mircea Eliade que a religião dos patriarcas hebreus, já desde Abraão, era muito próxima ao culto dos antepassados, prática comum tanto do paganismo como de doutrinas orientais, como o budismo e o xintoísmo. O “deus do pai” é primitivamente o deus do antepassado imediato, que os filhos reconhecem. É um deus dos nômades e pastores, que não está ligado a santuários fixos, mas acompanha e protege um grupo de homens. Ele “se compromete diante de seus fiéis por meio de promessas” – o que fica muito claro nas barganhas relatadas no Antigo Testamento (“faça isto por mim, que farei isto por você”) [2].
Mas ao penetrarem em Canaã, os patriarcas são confrontados com o culto do deus El (o Deus Criador nas culturas suméria e babilônica), e o “deus do pai” acaba por lhe ser identificado [3]. Dessa forma, obtém a dimensão cósmica que não podia ter como uma divindade de famílias e clãs.
O “deus do pai”, o deus dos patriarcas hebreus, torna-se o Deus Criador e, dessa forma, é também associado ao Uno, ao “único Deus”. Mas isto não foi “a origem do monoteísmo”, como dizem as lendas, mas tão somente um dentre muitos sincretismos religiosos similares, que ocorreram não somente em Canaã, como em diversas outras partes do mundo...

» Em seguida, a roda continua a girar com as entidades divinas e os avatares...

***

[1] Alguns dos trechos de livros sagrados nesta série de artigos foram retirados de seu livro, História das crenças e das ideias religiosas, vol I (Zahar).

[2] As barganhas religiosas, onde "se cobra a Deus por sua parte do trato", existem até os dias de hoje. É surpreendente que certas igrejas, que teoricamente são protestantes, ainda hoje colaborem para esta prática de uma espiritualidade tão superficial.

[3] É por isso que o Deus hebreu ora é chamado de Javé, ora de Elohim. Javé seria o “deus do pai”, e Elohim seria sua associação a El.

Crédito da foto: Frederic Soltan/Corbis (O Templo do Sol de Konark, Orissa/Índia)

Marcadores: , , , , , , , ,

25.9.12

Citações (9)

Algumas citações minhas e de outros autores. Elas geralmente já terão aparecido anteriormente na página do Textos para Reflexão no Facebook...


Alguns dos cientistas de hoje são como alguns pitagóricos de outrora, eles falam o que querem e citam "estudos" que nos são indecifráveis. E supomos que é verdade pois não temos como conhecer a ciência sem sermos cientistas daquela área específica. Então quando surge outro cientista (outro "arauto da verdade") para criticar um "estudo" com outro "estudo", por vezes ambos se acusam mutuamente de serem "pseudocientistas".

Nesta relativização da ciência perdem todos: a Academia, que de tanto pregar que "só a ciência ocidental é verdadeira", acabou criando a ideia errônea de que cientistas podem ser, da fato, "arautos da verdade"; os cientistas genuínos, que nunca pretenderam ser aruto algum, e são muitas vezes suplantados pelos mais diversos "estudos" (que são, estes sim, pseudociência); e nós, leigos do assunto, que temos cada vez mais dificuldade em identificar "a ciência relevante".

Felizmente ainda podemos confiar nos Sagan, Feynman, Einstein, Hawking, Greene, Gleiser, Nicolelis, Cox, deGrasse Tyson, etc...

***

Pensado na teoria do multiverso como explicação para o Princípio Antrópico ou para a mecânica quântica, ou na natureza de Deus, ou na compreensão exata das substâncias que formam a mente... Chamo a tudo isso de "a Utopia no horizonte":

São teorias, especulações e ideias suficientemente transcendentes a nossa realidade atual que parecem se situar "no horizonte a ser alcançado", e não necessariamente "nalgum lugar próximo".

Não quer dizer que as regras mudem e que amanhã um alienígena de uma civilização avançada desça com sua nave em Brasília e entregue a presidenta todas as descobertas científicas e espirituais que deveríamos realizar nos próximos 100mil anos, num pendrive "hiperquântico"... Mas as chances são bem remotas.

Dessa forma, acredito que a Utopia no horizonte tenha o seu lugar, como objetivo a ser perseguido, como o pote de ouro no fim do arco-íris... Mas não adianta correr para alcançar o ouro, ou o horizonte. O que podemos fazer é dar um passo de cada vez.

***

Não tenho nada contra o chamado "reducionismo científico", que é basicamente separar a Natureza "em pequenas partes" para que estas sejam estudadas em separado das demais. Afinal, seria impossível estudar tudo ao mesmo tempo...

O problema é quando os cientistas passam a crer que o seu "reducionismo" pode explicar toda a realidade. Foi por esse caminho que alguns neurocientistas chegaram a brilhante conclusão de que a mente não existe: afinal, é muito mais simples explicar uma máquina que computa informações do que um ser que interpreta informações.

Porém, até agora não chegamos nem perto de vermos uma máquina passar no teste de Turing. E mesmo que passasse, ainda seria somente uma "imitação". A melhor inteligência artificial disponível, Watson, acessa a web para validar seu "conhecimento"... Ora, ele é realmente uma maravilhosa ferramenta, mas apenas uma ferramenta, programada por nós: os que interpretam o mundo!

Até onde sei, nenhum experimento comprovou a existência, a direção ou a intensidade do Amor...

***

Antigamente os camponeses em suas pequenas aldeias afastadas tinham medo dos bárbaros e das feras que poderiam surgir a qualquer momento. Mas hoje, talvez, tenhamos mais medo nas cidades grandes, sabendo de cada um que foi assaltado, e de cada acidente, aqui, na Índia, na Noruega, etc. Neste momento alguém é assassinado nalgum canto do globo, e tantos outros estão sendo concebidos ou nascendo. A Natureza não tem medo...

***

Há muitos séculos os poetas esperam pela revolução. Talvez ela comece dentro da gente... Mudemos a alma, para que a alma mude o mundo.

E, se não se mudar o mundo todo, se não se mudar nem uma cidade, nem um bairro da cidade, pelo menos nos salvamos do dilúvio da irrelevância, da ignorância do ser... Nem que seja apenas em nosso pequeno jardim epicurista.

Ou, como dizia Tagore: "neste Céu de liberdade, Pai, deixe meu país acordar!"

***

Eu acredito que a melhor "síntese" de mago e médium tenha sido Sócrates, o Grande Xamã, que podia ficar 24h "em transe", "sentindo" o contato de seu "gênio", e depois "encantar" boa parte do pensamento ocidental com seu "discurso da alma". Este foi, certamente, um excelente exemplo de como a Arte e o Sentir podem se complementar. E, de fato, ainda que você possa se focar na Arte, ou no Sentir, e não necessariamente em ambos ao mesmo tempo, é sempre bom ter em vista que todo ser consciente pensa e cria, e sente e intui, e dessa forma todos são magos e médiuns em maior ou menor grau, basta que "tenham olhos para ver".

***

Este foi um comentário no blog, por Franco-Atirador:

A natureza tem um padrão, sendo descoberto a cada canto, cada ângulo e olhar. Muitos padrões estão sendo redescobertos por nossos físicos, padrões que, de tão complexos para nossas mentes, mimetizam o aleatório. Padrões que refletem estabilidade, formados não sei como, que estão lá. Padrões que, em números, ganham lógicas maravilhosamente complicadas em mentes brilhantes, eventos ocorrendo em cadeia linear, te guiando pela mão, passo a passo. Estes são ininteligíveis à mentes mais humildes, ou não iniciadas no assunto nesta modalidade, mas que, como uma linguagem, podem ser traduzidas em outra, mais macia, arredondada, feminina, descontínua, simbólica... poética! Assim, o homem do século XXI caminha para a reafirmação do que diziam sábios à milênios atrás pela linguagem dos símbolos, que faz com que nosso pensamento corra, associe, admire, explore sua subjetividade, uma linguagem descontínua, que vc completa com tua beleza interna, a beleza que vês, que conheces, pois passou por experiências que as revelaram pra ti, que as signifique. São esses dois estados de linguagem/pensamento, que geraram, há muito e agora, Budas e Einsteins, que agora dão as mãos, pois descobriram as mesmas coisas sob ângulos diferentes, atônitos diante do mistério infinito, cheio de faces, maior do que eles podiam imaginar, transformando rivais em aliados, mostrando que a caminhada continua, que agora que você entende, depois dessa pista, vem uma jornada ainda maior, e Ele/Isto vai te mostrar muito mais, até o infinito. Então, de repente, adentramos à História Sem Fim!

***

Crédito da imagem: Micha Pawlitzki/Corbis (Ticino, Suiça)

Marcadores: , , , ,

24.9.12

Conversa Alheia: Verdadeira Vontade, Educação e Homossexualidade

Com vocês, mais um episódio do Conversa Alheia, onde alguns blogueiros e livres-pensadores falam sobre o que quer que lhes venha a mente...

Episódio #5: Verdadeira Vontade, Educação e Homossexualidade.
Igor Teo, Rodrigo Ferreira, Raph Arrais e Josinei Lopes falam sobre seguir os próprios sonhos, a situação da educação no Brasil e tentam combater o preconceito.

Citado no programa:
Conversa Alheia: Loucura, Sociedade, Coringa e Batman
Educação proibida
Homossexualidade na pós-modernidade
Levítico: Pedras não faltarão

Igor Teo:
Gostaríamos de comunicar que consideramos concluída a primeira fase do nosso projeto de "podcast". Faz mais de um mês que estamos trabalhando na criação de um modelo de programa, fazendo testes após testes em diferentes publicações, recebendo críticas das mais diversas, e consideramos que hoje alcançamos o objetivo que esperávamos.
Portanto, iniciaremos uma nova fase, onde talvez o intervalo entre postagens aumente, mas também contaremos com convidados especiais.
Agradecemos sua audiência, e esperamos que continue acompanhando nosso trabalho.

***

» Ouça aos demais episódios no canal do Conversa Alheia no YouTube

» Para baixar os vídeos do YouTube, você pode usar o complemento Ant Video Downloader (para Firefox)


Marcadores: , , ,

21.9.12

Quando Israel era menino, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Mircea Eliade em "História das crenças e das ideias religiosas, vol. I” (Ed. Zahar) – trechos das pgs. 165 a 167. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Algumas das notas ao final são minhas.

O jardim do Éden, com o seu rio que se dividia em quatro afluentes e levava a vida às quatro regiões da Terra, e as suas árvores que Adão devia guardar e cultivar, lembra o imaginário mesopotâmico. É provável que, também nesse caso, o relato bíblico utilize certa tradição babilônica. Mas o mito de um paraíso original, habitado pelo homem primordial, e o mito de um lugar “paradisíaco” dificilmente acessível aos seres humanos eram conhecidos além do Eufrates e do Mediterrâneo. Como todos os “paraíso”, o Éden [1] encontra-se no centro do mundo, onde emerge o rio de quatro afluentes. No meio do jardim elevavam-se a árvore da vida e a árvore da ciência do bem e do mal (Gênese II:9). Javé deu ao homem o seguinte mandamento: “Podes comer de todas as árvores de jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer” (II:16-17). Uma ideia, aliás desconhecida, destaca-se dessa proibição: o valor existencial do conhecimento. Em outros termos, a ciência pode modificar radicalmente a estrutura da existência humana [2].

Entretanto, a serpente conseguiu tentar Eva. “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (III:4-5). Esse episódio deveras misterioso deu lugar a inúmeras interpretações. O cenário lembra um símbolo mitológico muito conhecido: a deusa nua, a árvore milagrosa e seu guardião, a serpente [3]. Mas, em vez de um herói que triunfa e se apodera do símbolo da vida (fruto milagrosos, fonte da juventude, tesouro, etc.), o relato bíblico apresenta Adão como vítima ingênua da perfídia da serpente.

Temos, em síntese, uma “imortalização” malograda, como a de Gilgamesh [4]. Pois, uma vez onisciente, tal como os “deuses”, Adão podia descobrir a árvore da vida (da qual Javé não lhe havia falado) e tornar-se imortal. O texto é claro e categórico: “Depois disse Javé: ‘Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!’” (III:22) E Deus pôs o casal para fora do paraíso e condenou-os a trabalhar para viver [5].

Voltando ao enredo evocado há pouco – a deusa nua e a árvore milagrosa guardada por um dragão –, a serpente do Gênese afinal teve sucesso no seu papel de “guardiã” de um símbolo de vida ou de juventude. Mas esse mito arcaico foi radicalmente modificado pelo narrador bíblico [6]. O “fracasso iniciatório” de Adão foi reinterpretado como uma punição amplamente justificada: sua desobediência denunciava seu orgulho luciferino, o desejo de assemelhar-se a Deus. Era o maior pecado que a criatura podia cometer contra seu Criador [7]. Era o “pecado original”, noção prenhe de consequências para as teologias hebraica e cristã. Essa visão da “queda” somente podia impor numa religião centralizada na onipotência e no ciúme de Deus. Da forma como nos foi transmitido, o relato bíblico indica a crescente autoridade do monoteísmo javista [8].

Segundo os autores dos capítulos IV-VII do Gênese, esse primeiro pecado não só acarretou a perda do paraíso e a transformação da condição humana, mas tornou-se de algum modo a fonte de todas as desventuras que se abateram sobre a humanidade [9]. Eva deu à luz Caim, que “cultivava o solo”, e Abel, “pastor de ovelhas”. Quando os irmãos ofereceram o sacrifício da gratidão – Caim, produtos do solo, e Abel, as primícias do seu rebanho –, Javé acolheu a oferenda de Abel, mas não a de Caim [10]. Irado, ele “se lançou sobre seu irmão e o matou” (IV:8). Agora, sentenciou Javé, “és maldito e expulso do solo fértil (...) Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo errante sobre a Terra” (IV:11-12)

Pode-se ver nesse episódio a oposição entre lavradores e pastores, e, implicitamente, a apologia destes últimos [11]. [...] A tradição conservada no relato bíblico reflete a idealização da existência “simples e pura” dos pastores nômades, e a resistência contra a vida sedentária dos agricultores e dos habitantes de cidades. Caim “tornou-se um construtor de cidade” (IV:17) [12] [...] O primeiro assassinato é portanto cometido por aquele que, de alguma forma, encarna o símbolo da tecnologia [13] e da civilização urbana. Implicitamente, todas as técnicas são suspeitas de “magia” [14].

***

[1] Nota do autor: Essa palavra foi relacionada pelos hebreus ao vocábulo é’dén, “delícias”. O termo paraíso, de origem iraniana (pairi-daeza), é mais tardio. Imagens paralelas, familiares sobretudo no Oriente Próximo e no mundo egeu, apresentam uma grande deusa ao lado de uma árvore da vida e de uma fonte vivificante, ou uma árvore da vida guardada por monstros e grifos.
Meu complemento: É interessante como ainda hoje, nas práticas de “mentalizações de cenários naturais”, tanto na umbanda quanto no espiritualismo em geral, ainda seja tão comum imaginarmos um jardim paradisíaco – isto é, como qualquer outro jardim onde haja apenas paz –, por onde passa um rio que flui de uma cachoeira – a fonte vivificante. Este tal jardim pode mesmo ter vindo da magia africana, ainda mais antiga do que Israel ou a tradição babilônica, ou mesmo de um lugar ainda mais arcaico, ancestral: nossa própria mente, a mente humana. Por isso, quando Joseph Campbell diz que “o Éden não foi e nem será, o Éden é”, ele realmente está falando sério, muito sério!

[2] O filósofo brasileiro, Mario Sergio Cortella, diz que “o homem é o único animal mortal”. Isto, pois, todos os outros animais (tirando, quem sabe, os elefantes) não tem a ciência da própria mortalidade. Somente o homem, que adquiriu tais conhecimentos (e muitos outros, pois que “conhece o bem e o mal”, isto é, possui razão), é “condenado” a mortalidade – pois sabe que irá morrer um dia.

[3] No processo de “demonização” da Deusa Mãe, e da magia antiga, associou-se Eva ao “pecado original”, e a serpente (o pobre bode expiatório), ao “Demônio”. É sempre interessante lembrar que por toda a mitologia dos povos arcaicos (bem mais antigos que Israel), a serpente é, pelo contrário, um grande símbolo de sabedoria. Aqui, novamente, recomendo consultarem o artigo Serpentes.

[4] Herói e rei sumério semilendário, retratado na Epopéia de Gilgamesh, texto central das mitologias suméria e babilônica.

[5] Eis que o próprio Antigo Testamento já atesta, desde seu início, aquilo que Jesus viria a dizer muito depois: “vós sois deuses”. Mas nem na época da elaboração do AT esta era uma ideia nova, no Antigo Egito já se conhecia, ao menos entre os iniciados, esta frase ancestral: “eu também sou da raça dos deuses”. Porém, seria Javé injusto por haver afastado Adão e Eva do paraíso, e da imortalidade concedida pela árvore da vida? Ou não seria uma justiça ainda maior que desse a oportunidade para que o homem e a mulher alcancem a ciência da árvore da vida por seu próprio mérito? “O Reino está espalhado pela Terra, mas os homens não o veem”.

[6] Antes de condenar o “narrador bíblico”, é preciso lembrar que a principal característica da elaboração de uma nova cultura para um “novo povo” é a supressão da cultura alheia. Nesse sentido, era “função” do “narrador bíblico” exatamente modificar radicalmente alguns mitos antigos, porém sem lhes desviar inteiramente da essência. Pois que os escritores eram suficientemente sábios e cultos para compreender que certas essências mitológicas não podem ser inteiramente suprimidas – pertencem ao espírito humano, e “existem sempre”.

[7] Paradoxalmente, era também exatamente o “pecado” que o Criador já esperava de sua criatura, como fica muito claro em qualquer mitologia sobre o tema.

[8] Nota do autor: O mito da “queda” nem sempre foi entendido de acordo com a interpretação bíblica. Principalmente a partir da época helenística e até os tempos do Iluminismo, inúmeras especulações tentaram elaborar uma mitologia adâmica mais audaciosa e muitas vezes mais original.

[9] De fato, como no mito onde Prometeu rouba o fogo divino e com ele cria a humanidade, o “pecado original” deu origem a própria humanidade, pois sem a ciência da própria nudez, dificilmente Adão e Eva nalgum dia teriam um filho.

[10] Teriam os cristãos radicais, críticos ferozes dos ritos do Candomblé, lido este trecho do Gênese?

[11] Ao menos a quem tem olhos para ver, quase todas as mitologias antigas trazem, num “código meio cifrado”, a própria história dos povos arcaicos. O embate dos caçadores-coletores errantes, ou grandes povos nômades, contra os primeiros agricultores, ou mesmo as primeiras grandes aldeias onde se estocavam grãos, é tema corriqueiro dos mitos de “pós-criação”. Em nosso artigo sobre a mitologia do deus Odin, falamos sobre a guerra entre os vanir (sedentários, agricultores) e os æsir (nômades, caçadores), que essencialmente trata do mesmo tema, só que na região do norte europeu. Enquanto a mitologia nórdica “privilegia” os caçadores nômades (pois foi elaborada por eles), no relato bíblico, da mesma forma, os pastores nômades são exaltados, enquanto que os cultivadores sedentários (representados por Caim) são “banidos”. Nota-se que, neste caso, os pastores hebreus provavelmente entravam em conflito com os agricultores das terras por onde passavam com seu rebanho. A diferença é que os nórdicos æsir venceram a guerra, enquanto que a vida dos pastores hebreus deve ter sido bem mais difícil (de certa forma, o é até hoje: a própria existência do estado de Israel é questionada pelos povos em seu entorno até os dias modernos).

[12] Resta saber qual deus criou a mulher que Caim conheceu na terra de Node (IV:16-17).

[13] Caim também pode significar “ferreiro”. Na época antiga, os ferreiros eram considerados “senhores do fogo”, com o conhecimento de poderes mágicos temíveis. Um dos descendentes de Caim é Tubalcaim, “o pai de todos os laminadores em cobre e ferro”.

[14] “Qualquer tecnologia suficientemente avançada não se distingue de magia” (Arthur C. Clarke)

***

Crédito da foto: Robert Recker/Corbis

Marcadores: , , , , , , , , ,

20.9.12

Uma caixa estranha

Havia um povo muito antigo que vivia há muitas gerações de antepassados numa ilha perdida em meio a um grande oceano desconhecido. Não se sabe como, um dia uma caixa estranha chegou, flutuando, até uma de suas praias...

(a) Amigo, veja está caixa: ela é muito estranha!

(b) Mas de onde veio isso, amigo?

(a) Chegou do mar... Não consegui abrir para ver o que tem dentro, e também não quis estragar com minha machadinha. Mas veja o que ocorre quando chaqualho...

(b) Minha nossa, o que foi isso?

(a) Não sei, mas não pareceu um tipo de canto estranho? Embora não tenha tambores.

(b) Mas de onde vem essa cantoria? O que diz essa música esquisita?

(a) Não sei, amigo, mas parece ser de algum outro povo.

(b) Não seja insano, amigo, é sabido que só existe o nosso povo no mundo, e que nada há além do oceano desconhecido. Não me diga que acredita nesses mitos de “outros povos” além do oceano?

(a) Não sei se creio em “outros povos”, amigo. Mas, independente disso, como acha que esta música pôde sair desta caixa?

(b) Ora, isto é simples... Você não a chaqualha e, por algum momento, o canto é cantado, e depois desaparece?

(a) Sim, é exatamente o que acontece.

(b) Pois então: é óbvio que alguns gnomos entraram dentro da caixa, e estão a pregar uma peça em você... Quando se cansarem da brincadeira, vão sair da caixa e deixá-la vazia, e então a cantoria estranha vai acabar...

(a) Mas então porque não abrimos a caixa a pauladas, para forçarmos os gnomos a sair?

(b) Isso seria pecado! O Grande Patriarca nos disse que não deveríamos nos meter com os gnomos.

(a) Mas amigo, você já viu um gnomo?

(b) Não, mas um amigo meu disse que viu alguns. Logo depois ficou louco e falava desses “mitos de outros povos”... O Grande Patriarca disse que os gnomos entraram a força na sua cabeça, pelos ouvidos, e não queriam sair.

(a) E o que fizeram com ele?

(b) Ora, o recomendado: levaram a fogueira, para que fosse purificado. Nesses casos guardamos os ossos de recordação.

(a) Então coloquemos fogo nessa estranha caixa, e vejamos se os gnomos não aparecem!

(b) Acho que... Isto poderia ser feito, não é pecado.

(a) Veja bem, iniciei a fogueira, vou jogar a caixa lá... Esperemos!

(b) E então?

(a) Nada! Não vi nenhum gnomo fugindo... Vamos apagar o fogo e chaqualhar a caixa...

(b) Viu, agora ela não canta mais nenhum canto esquisito.

(a) É verdade... Malditos gnomos, fugiram sem que pudéssemos notar.


raph’12

***

Crédito da imagem: Matthew Heptinstall (flickrhivemind.net)

Marcadores: , , ,

19.9.12

O mito da política

Eu havia prometido que não ia falar novamente de política por aqui, mas este texto saiu à força da minha alma, não pude evitar... Antecipadamente, peço seu perdão...


Lula disse que o “mensalão” é um mito. Antes ele disse que “se sentia traído por práticas inaceitáveis de seus colegas de governo, práticas das quais nunca teve conhecimento”. Somente após ter dito isso que voltou atrás, e se corrigiu: “Tenho certeza de que não teve mensalão, esse negócio me cheira a folclore dentro do Congresso” [1]. Eu concordo com Lula, na realidade não só o “mensalão” é um mito, uma coisa lendária, um folclore... Toda a política brasileira nas últimas décadas tem sido uma lenda.  

Acreditamos todos um dia nesta lenda surgida após as “Diretas Já”, de que todos esses que se dizem políticos e pensadores idealistas iriam representar o povo, representar suas ideologias, uma vez eleitos. Isso até tem ocorrido, em raríssimos casos, mas infelizmente não são o suficiente para que possamos afirmar que se faz Política no país. Aqui se faz “um negócio eleitoral”, ou algo assim...

Na verdade, o termo “mesalão” realmente não se aplica ao que provavelmente ocorreu no início do primeiro mandato do ex-presidente Lula. Se pegarmos o Valdemar da Costa Neto e o Bispo Rodrigues, por exemplo, líderes do partido de José Alencar, o vice-presidente no governo de Lula, temos exemplos de histórias políticas que pouco ou quase nada têm a ver com a ideologia socialista do Partido dos Trabalhadores. Os defensores de que o “mensalão” foi uma lenda querem fazer crer que “um partido aliado do governo, que tem um vice-presidente, naturalmente votaria a favor das propostas governistas”. Mas, se formos analisar a história política e a ideologia de cada um dos deputados da base aliada, veremos que muitos não teriam nenhuma razão ideológica para votar de acordo com a “recomendação” do governo. De fato, se formos observar o “jogo caótico” de alianças entre partidos nas eleições federais, estaduais e municipais, veremos o quanto isto tudo cheira mais a um “grande negócio de grandes interesses” do que a uma junção de ideologias. Na verdade, há poucos partidos políticos no Brasil que parecem atrelados a alguma ideologia em específico, ou pelo menos, que demonstrem na prática que estão atrelados a elas. Aqui, como em boa parte do mundo, “direita” e “esquerda” são, igualmente, mitos da era moderna.

No entanto, não foram “pagamentos mensais” que definiram o chamado “mensalão”, mas pagamentos em espécie, sem notas fiscais, transportados em malas e cuecas, e entregues na mão de deputados e líderes partidários, como o próprio Valdemar da Costa Neto. Foram milhões entregues não em datas mensais, mas precisamente nos dias anteriores as votações de grande importância no Congresso, no início do governo Lula, como a reforma tributária e a reforma da previdência. Se Lula diz que não sabia de nada, que se sentiu traído, podemos crer que foi o eminente ministro da época, José Dirceu, quem arquitetou o esquema todo... Eu até consigo entender o Sr. Dirceu, que ao menos parecia querer realmente seguir a sua ideologia: “todos esses deputados são corruptos e vão votar de acordo com quem pagar mais, nossa única chance de melhorar o país é pagar mais do que os outros corruptores”.

Sim, pois não se enganem: Vocês acham que os deputados da “bancada ruralista” votam de acordo com seus ideais pessoais, ou de acordo com o que os grandes donos de terras lhes “prometem doar” nas eleições futuras?  Vocês acham que os deputados da “bancada evangélica” estão representando seus ideais e crenças religiosas, ou os interesses desta ou daquela Igreja? Vocês acham que os deputados do “baixo clero”, que se elegeram “na carona” dos tiriricas da vida [2], estão ali para representar alguma parcela do povo que seja, ou para “defender seus interesses financeiros”?

Enquanto a democracia, no Brasil e em boa parte do mundo, não conseguir sair desta “armadilha” dos grandes interesses corruptores, enquanto não voltar a ser, de fato, “uma pessoa = um voto”, e não o que se vê hoje em dia, “X reais = um voto”, seja antes ou depois da eleição, dificilmente será sequer a sombra de uma democracia plena, de uma Política.

Na Grécia Antiga, apesar das mazelas de seu tempo, como a escravidão e o fato de que somente os nobres tinham real direito a voto (dentro os quais nenhuma mulher), ainda assim havia a ideia da polis, da comunidade, da irmandade de seres erigindo uma cidade a partir do caos do mundo, com uma Acrópole dedicada aos deuses e aos altos ideais, em torno da qual toda a vida girava. Um ateniense jamais diria “sou nascido em Atenas”: ou era ateniense ou não era. Ou permanecia fiel ao ideal da polis, ou seria o mesmo que um animal selvagem a vagar pelo mundo. Os altos ideais da Grécia Antiga não estavam subordinados a vantagens financeiras, pessoais, individuais, mas formavam uma ideia de todo, de uma comunidade que lutava para construir uma civilização a partir da barbárie; formavam um ideal de vida, um ideal de ser, a partir de existências que não tinham qualquer sentido profundo em separado. Somente unidos os gregos poderiam manter a polis. Trair a polis era antes trair a si mesmo.

É isso que chamo de Política, com “P” bem maiúsculo... Seria uma utopia? Talvez, mas é melhor tentar caminhar em direção a este horizonte iluminado do que viver andando em círculos nos charcos da ignorância, da mesquinhez, e da pouca visão. O primeiro passo para a caminhada de volta a este horizonte é instaurar o financiamento público e exclusivo de campanhas eleitorais, com fiscalização altamente rigorosa. Enquanto isto não for feito, vai prevalecer o interesse dos grandes corruptores, a formarem as suas “bancadas x ou y”, a “investirem” em candidatos, muitas vezes em todos os candidatos em disputa, como forma de garantirem o seu “retorno” no futuro. É por isso mesmo que partidos que não aceitam nem as grandes coligações nem os “vultuosos investimentos” dos grandes corruptores, assustam, e são atacados por todos os lados – tanto pela dita “direita”, quanto pela dita “esquerda”. A candidatura de Marcelo Freixo a prefeitura do Rio de Janeiro é somente o mais recente exemplo disso.

Mas, e porque o PT deve ter vergonha do “mensalão”? Ele não foi sequer inventado pelo PT, mas era prática corriqueira dos antigos partidos no poder, e se não era tão conhecido e divulgado, talvez seja pelo fato de que a “mídia corruptora” não visse razão para querer “mudar o rumo do jogo da política”... Em realidade, talvez tenha sido exatamente devido à larga exposição do “mensalão” na mídia que o PT tenha conseguido fazer um governo mais honesto e eficaz – afastando o eminente Sr. Dirceu e dando espaço para aquela tal brizolista que “gostava de fazer as coisas acontecerem”.

Se não deu certo com políticos altamente carismáticos a defenderem suas supostas ideologias de vida, ao menos pode ser que dê certo, que esteja dando certo, na medida do possível, com a “presidenta gerente”. Dilma Rousseff tem aproveitado para substituir políticos afastados de ministérios (pelas alegações de corrupção) por pessoas técnicas que efetivamente entendem do assunto de seu próprio ministério; tem atacado aos bancos de frente e os forçado a reduzir seus juros exorbitantes; tem, na medida do possível, combatido os interesses da “bancada ruralista” e trazido um pouco mais de “verde” para as leis florestais; e, mais recentemente, tem se alinhado com os empresários que realmente desejam investir no país (e não corromper pessoas), e ajustado algumas variáveis importantes da economia, para que possamos continuar a crescer de forma sustentável.

Dilma me parece estar sendo o que Lula não foi. Dilma me parece estar realizando muito daquilo que esperávamos dele. Pode ser ainda pouco, e pode ser que ainda nos arrependamos no final, mas até o momento, por incrível que pareça, tudo que a tal lenda do “mensalão” tem feito é, efetivamente, tornar a política do país um pouco menos lendária, um pouco menos política, e um pouco mais polis, Política!

***

[1] Para relembrar o “caso mensalão”, recomendo esta excelente história em quadrinhos com arte de Angeli.

[2] Embora o deputado Tiririca esteja se comportando como um Político de verdade, ao contrário de quase todas as expectativas. Admito que ele me surpreendeu, mas em todo caso a minha crítica a sua eleição nunca foi direcionada a pessoa dele, mas aos “fichas sujas” que se elegeram na “esteira” da sua enorme votação (outra coisa que precisaria ser reformada urgentemente nas leis eleitorais).

» Vejam também: Três pela manhã

Crédito das imagens: [topo] Trecho dos quadrinhos de Angeli (citados na nota #1 acima); [ao longo] Google Image Search (Acrópole de Atenas)

Marcadores: , , , , , , ,

A educação proibida

A escola pública completou 200 anos de existência e é considerada a principal forma de acesso dos jovens a educação. Hoje em dia, a escola e a educação são conceitos amplamente discutidos em fóruns acadêmicos, políticas públicas, instituições educativas, meios de comunicação e espaços da sociedade civil. Desde sua origem, a instrução escolar tem sido caracterizada por estruturas e práticas que hoje são consideradas, em sua maioria, já obsoletas. Elas não acompanham as necessidades do Século XXI. Seu principal erro se encontra no paradigma que não considerar a natureza do aluno, a liberdade do pensamento e a importância do amor nos vínculos humanos, assim como no desenvolvimento individual e coletivo. Este documentário, rodado em 8 países da América Latina, com 90 entrevistas de educadores modernos, procura apontar um novo rumo para o futuro da educação, além de apontar os graves defeitos do sistema atual. Com vocês, A Educação Proibida:

"Acreditamos que a Educação está proibida. Não por culpa das famílias, das crianças ou dos docentes. Todos proibimos a Educação. Cada vez que você escolhe olhar para outro lado, em vez de escutar. Cada vez que escolhemos a meta, em lugar do trajeto. Cada vez que deixamos tudo igual, em vez de experimentar algo novo. Seja professor, seja aluno, seja pai, seja quem for, ajude-nos... A Educação tem que avançar, tem que crescer, tem que mudar. Encontrar-nos com os outros, conhecer e explorar suas experiências, trocar ideias e levá-las a nossa realidade. Essa é a nossa proposta, e começa hoje mesmo."

***

Comentário
É preciso suavizar o corte, deixar que novas rodas percorram os velhor sulcos, e não mais procurar reproduzir seres com uma mesma opinião e visão de mundo (como se isso fosse possível, em todo caso), pois seres são almas, e não autômatos ou robôs. De nada valerá para as crianças e os jovens, estes recém chegados da Mansão do Amanhã, ouvirem de seus "mestres" a mesma repetição das informações de outrora - isso eles podem buscar na internet. Importa é despertar a paixão pelo conhecimento e, neste processo, procurar aprender junto com eles, junto com o futuro onde, cada vez mais, haverá liberdade para pensar e amar o que se bem entende.

Conforme nos alertou Gibran, "nenhum homem poderá revelar-vos nada senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entendimento". Temos então, ido e voltado a este mundo, e somente assim se explica como as novas ideias vêm. É preciso fugir do veneno que os acomodados vem sugando da História, e não mais escrever de novo o que já estava escrito, não mais copiar o que já não se sustenta de pé, mas apontar para o horizonte e reescrever uma Nova História, e depois outra, e ainda outra, de acordo com as necessidades de cada época...

É hora de nos prepararmos para despertar neste Céu de Liberdade: bem aqui, contanto que o saibamos erguer, contando que saibamos cuidar ainda antes de ensinar. Contanto que, como Sócrates, deixemos que nossos jovens pensem como bem entendam, e atuemos não como "mestres", mas como sábios - a incentivar o amor pelo saber.

Obs: Vocês podem pensar que o documentário traz "ideias novas e revolucionárias", mas estão longe disso. Na verdade, são ideias que têm sido postas em prática pelas escolas logosóficas há décadas. A mudança de paradigma, portano, nem sequer teria de "reescrever o novo ensino do zero", pois isso diversas instituições, como a logosófica, já têm realizado e experimentado ao redor do globo. Basta, portanto, a vontade para impelementar a mudança - mas, e qual é o "político" que vê com bons olhos um eleitorado jovem que "sabe pensar por si mesmo"?

***

» Vejam também: O homem que brincava com a Natureza

Crédito da foto: John-Francis Bourke/Corbis

Marcadores: , , , , , ,

18.9.12

Você não é o seu cérebro

Alva Noë é um filósofo da mente que traz uma nova abordagem ao problema difícil da consciência:


De fato, a personalidade e a consciência desta personalidade parecem ter nascido da observação "do outro". O ser cognitivo sabe que outro ser é cognitivo, não porque "pense dentro dele", mas porque "o reflete e elabora dentro de si mesmo". Nesse sentido aquilo que chamamos consciência pode não se limitar somente a "nossa visão", e as informações podem trafegar junto aos pensamentos, e tudo parece cada vez mais conectado na medida em que estamos, cada vez mais, "conscientes do tudo". Então é óbvio que não somos o nosso cérebro, mas somos também parte da Natureza... Ou, conforme era dito antigamente: também somos da raça dos deuses.

***

agradecimentos a Igor Teo por ter me encaminhado o vídeo :)

Marcadores: , , , ,

Citações (8)

Algumas citações minhas e de outros autores. Elas geralmente já terão aparecido anteriormente na página do Textos para Reflexão no Facebook...


De nada adianta termos a nossa frente a Verdade escrita, se não soubermos interpretar seus símbolos, seus signos... Poesias chegam mais perto, mas ainda assim são essencialmente compostas por essas cascas de sentimento...

"O poeta finge ser dor a dor que deveras sente; e quem o lê, na dor lida se sente bem; mas não nas duas que teve o poeta, e sim na dor que eles não têm" - porque a dor é uma experiência. Mas o amor também é uma experiência.

Somente o pensamento pode, quando conectado a tais mistérios, ao mesmo tempo sentir e conseguir retirar deste fruto a sua casca, e trazer cascas de sentimento para o papel... Ainda assim, somente o poeta sabe o que sentiu - o que escreve é um fingimento, mas um divino fingimento.

É por isso também que digo: minha religião é meu pensamento.

***

Alguns se escandalizam com os assuntos espirituais, e querem nos imputar uma certeza das coisas que não temos, como se todo espiritualista fosse um "dogmático do espírito".

Eu posso falar por mim: Penso que, perto da imensidão do Cosmos, o que sabemos é, parafrasenado Yeats, "como uma gota de orvalho suspensa numa folha de grama".

Mas, de fato, tenho a convicção de que possuo uma vontade e uma certa liberdade. Não liberdade total, claro, mas uma "ínfima" liberdade, como o cachorro que é levado por uma coleira, e pode por vezes se ajustar e caminhar pros lados, mas que não pode se demorar muito, senão será arrastado pela coleira do Destino (aqui cito o estoicismo).

Pois se não tenho vontade, ou se a subjetividade não existe, tampouco é minha culpa: é culpa de Deus e seu determinismo absoluto, ou, no caso de não haver Deus, culpa do tilintar neuronal supostamente aleatório do meu cérebro: eu não tenho culpa, em ambos os casos, de crer que tenho vontade.

Mas, tirando este item essencial, do resto todo eu duvido, e questiono, e sei muito pouco.

***

O mito e a poesia são intuições, o que se espera é que a ciência defina o que se aplica a realidade dos mecanismos naturais, e o que se aplica somente ao campo da mente e da imaginação.

Há muito tempo um sujeito fez uma aposta, disse que "tudo vibra, nada está parado (*)"... Como ele poderia saber disso naquela época, senão pela intuição? Somente no século XX a física de partículas comprovou experimentalmente que, contra todas as expectativas da nossa realidade conforme interpretada por nossa consciência humana, nada, NADA, de fato, está parado.

Somos poeira de estrelas a levitar pelo Cosmos, e quando por acaso um átomo realmente toca outro átomo, ocorrem explosões nucleares. Mas tudo vibra, nada está parado: apertamos a mão um do outro, e na realidade nenhum átomo de nossa mão toca a mão de quem cumprimentamos, e nenhum deles está parado.

(*) A Lei da Vibração no hermetismo, que data do Antigo Egito.

***

Ainda uma pitada de hermetismo:

Já nos foi dito que todos os paradoxos seriam reconciliados. E, pela lógica, realmente foram: existe algo, o Uno, a “substância que não poderia criar a si mesma, incriada”, e para esta, e talvez somente para esta, não há oposto, nunca houve e nunca haverá. Todos os paradoxos estão reconciliados no Uno desde o início até o fim, pela eternidade e o infinito: basta ter olhos para ver.

***

(a) "Sim sou contra a pena de morte"
(b) "Porque?"
(a) "Muito branda"
(b) "Mas há predadores que precisam ser exterminados"
(a) "O problema é que eles voltam, e suas 'pendências' geralmente só podem ser resolvidas aqui. Por isso quanto mais tempo para que tenham alguma pequena chance de serem resolvidas, melhor.
Uma outra opção é exterminar toda a raça humana. Mas isto poderemos fazer independente de haver ou não pena de morte"

***

Algumas notícias do dia a dia trazem ensinamentos profundos aos bons observadores. Muitos devem saber que uma cobertura em Copacabana pegou fogo recentemente, e outros devem saber que se tratava da casa de um artista e colecionador de arte romeno, mas que mora no Brasil há tempos: Jean Boghici.

Ocorre que ele era um dos maiores colecionadores do país, com quadros de Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, muitos dos quais nem tinham preço definido, mas provavelmente valeriam milhões se estivessem a venda, e se perderam no incêndio...

E o que Jean disse aos jornalistas? "Estou com raiva e vou me vingar desse destino cruel, vou fazer uma belíssima exposição com os quadros que restaram".

E disse mais: "E eu quero saber de quadro... Meu gato morreu! Isso que me dói"... Dois gatos morreram no incêndio.

Talvez seja essa a sabedoria que a arte traz as pessoas.

***

O texto a seguir é de um professor universitário aposentado de física, e um amigo:

Tudo o que o meu coração busca a minha razão aceita. Porque se a razão não se amoldar ao coração e nem o coração se amoldar à razão, a vida fica conflituosa e insuportável. O que pode acontecer é que o mundo, a sociedade, os outros, os homens, conspirem contra isso. Mas minha razão não aceita nada que não venha de algum desejo sincero que promova a paz, a concórdia, o amor, a felicidade, de forma altruísta. Mas muitos são gananciosos, possessivos, egoístas e querem que o mundo exista para servi-los e não eles para servir. Se todos se imbuírem do ideal de servir e de amar sem restrição, todos serão servidos e amados. Se todos trabalharem com afinco uns pelos outros, sem esperar retribuição, todos serão beneficiados com a dádiva do produto do trabalho dos outros. Mas se todos esperarem ser amados para amar, serem beneficiados para beneficiar, serem servidos para servir, então nunca se dará a partida para a construção de um mundo mais justo, harmônico, fraterno, próspero, aprazível, igualitário, livre e feliz para todos.

(Ernesto von Rückert é livre pensador, humanista, estóico, epicurista e ateísta)

***

Crédito da imagem: Franco Vogt/Corbis

Marcadores: , , , , ,

16.9.12

Quando Israel era menino, parte 1

Texto de Mircea Eliade em "História das crenças e das ideias religiosas, vol. I” (Ed. Zahar) – trechos das pgs. 162 a 165. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Algumas das notas ao final são minhas.

A religião de Israel é acima de tudo a religião do Livro. Esse corpo de escrituras é constituído de textos de idade e orientação diversas, que representam, por certo, tradições orais bastante antigas, mas reinterpretadas, corrigidas, redigidas durante vários séculos e em diferentes meios [1]. Os autores modernos começam a história da religião de Israel por Abraão. Na verdade, segundo a tradição, ele é o escolhido de Deus para se tornar o ancestral do povo de Israel e tomar posse de Canaã. Mas os 11 primeiros capítulos do Gênese relatam os acontecimentos fabulosos que precederam a eleição de Abraão, desde a Criação até o dilúvio e a Torre de Babel. A redação desses capítulos é, como se sabe, mais recente que muitos outros textos do Pentateuco. Por outro lado, alguns autores – e dos mais notáveis – afirmaram que a cosmogonia e os mitos de origem (Criação do homem, origem da morte, etc.) desempenharam papel secundário na consciência religiosa de Israel. Em suma, os hebreus interessavam-se mais pela “história santa”, isto é, pelas suas relações com Deus, que pela história das origens.

[...] Isso pode ser verdadeiro a partir de determinada época e, sobretudo, para certa elite religiosa [2]. Mas não há razão para concluir que os antepassados dos israelitas fossem indiferentes às questões que apaixonavam todas as sociedades arcaicas. [...] Ainda em nossos dias, depois de 2.500 anos de “reformas”, os acontecimentos referidos nos primeiros capítulos do Gênese continuam a alimentar a imaginação e o pensamento religioso dos herdeiros de Abraão.

Na abertura do Gênese, temos este passo célebre: “No princípio, Deus (Elohim) criou o Céu e a Terra. Ora, a Terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas” (I:1-2) [3]. A imagem do oceano primordial sobre o qual paira um deus criador é muito arcaica [4]. Entretanto, o tema do deus sobrevoando o abismo aquático não é atestado na cosmogonia mesopotâmica, ainda que o mito relatado no Enuma elish fosse provavelmente familiar ao autor do texto bíblico. (De fato, o oceano primordial é designado, em hebraico, tehôm, termo etimologicamente solidário do babilônico tiamat [5]). A Criação propriamente dita, ou seja, a organização do “caos”, é efetuada pelo poder da palavra de Deus. Ele diz: “Haja luz”, e houve luz (I:3). E as etapas sucessivas da Criação são sempre realizadas pela palavra divina. O “caos” aquático não é personificado (cf. tiamat) e, por conseguinte, não é “vencido” num combate cosmogônico.

[...] O mundo é “bom” e o homem é uma imago dei; ele habita, tal como seu Criador e modelo, o paraíso. Entretanto, como o Gênese não tarda a salientar, a vida é penosa, apesar de ter sido abençoada por Deus, e os homens já não habitam o paraíso. Mas tudo isso é o resultado de uma série de erros e pecados dos antepassados. Foram eles que modificaram a condição humana. Deus não tem responsabilidade alguma nessa deterioração de sua obra-prima. Assim como para o pensamento indiano pós-upanixádico, o homem, mas exatamente a espécie humana, é o resultado de seus próprios atos [6].

O outro relato, javista [ver nota 1], é mais antigo e difere claramente do texto sacerdotal que acabamos de resumir. Já não se trata da Criação do Céu e da Terra, mas de um deserto que Deus (Javé) tornou fértil por meio de uma onda que subia do solo. Javé modelou o homem (âdâm) com a argila do solo e animou-o insuflando “em suas narinas um hálito de vida”. Pois Javé “plantou um jardim em Éden”, fez brotar todas as espécies de “árvores boas” e instalou o homem no jardim “para o cultivar e o guardar” [7]. Em seguida, Javé deu forma aos animais e às aves, levou-os a Adão e este lhes deu nomes. Finalmente, depois de tê-lo adormecido, Javé tirou uma de suas costelas e formou uma mulher, que recebeu o nome de Eva (em hebraico hawwâh, vocabulário etimologicamente solidário do termo que significa “vida”).

Os exegetas observaram que o relato javista, mais simples, não opõe o “caos” aquático ao mundo das “formas”, mas deserto e seca a vida e vegetação. Parece plausível que esse mito de origem tenha nascido numa zona desértica. Quanto à formação do primeiro homem com argila, o tema era conhecido na Suméria. Mitos análogos são atestados quase no mundo inteiro, desde o antigo Egito até as populações “primitivas”. A ideia básica parece a mesma: o homem formou-se de uma matéria-prima (terra, madeira, osso) e foi animado pelo hálito do Criador. Em muitos casos, tem a forma de seu autor. Em outras palavras, mediante sua “forma” e sua “vida”, o homem comparte, de algum modo, a condição do Criador. Só o seu corpo é que pertence à “matéria” [8].

A formação da mulher a partir de uma costela retirada de Adão pode ser interpretada como indicadora da androginia do homem primordial. Concepções similares são atestadas em outras tradições. [...] O mito do andrógino ilustra uma crença bastante difundida: a perfeição humana, identificada no antepassado mítico, encerra uma unidade que é simultaneamente uma totalidade. [...] É de salientar que a androginia humana tem por modelo a bissexualidade divina, concepção compartilhada por muitas culturas [9].

» Em seguida encerraremos com Caim, Abel, cultivadores e pastores...

***

[1] Nota do autor: [...] As fontes dos cinco primeiros livros da tôrâh (Pentateuco) foram designadas pelos termos: javista, porque essa fonte, a mais antiga (séc. X ou IX a.C.), chama a Deus por Javé; eloísta (ligeiramente mais recente: utiliza o nome Elohim); e deuteronômica (quase que exclusiva do Deuteronômio).

[2] Não foi à toa, penso eu, que os primeiros livros da tôrâh eram conhecidos como “os livros da lei”. Eis o que nos diz Alan Dershowitz, professor de direito de Harvard, sobre o Gênese: “É sobre o mundo antes de haver lei. É sobre um Deus em aprendizagem, lutando para ser justo, sem regras (antecedentes). Deus não teve problemas em criar um universo físico, só precisou de seis dias. Ele teve mais dificuldade quando chegou à parte da justiça... O Gênese é sobre isso, sobre tentar fazer as coisas direito, com justiça”. Ou seja: a preocupação de uma suposta elite religiosa com a história somente a partir de Abraão, em detrimento dos mitos de criação, talvez se explique pelo fato de ser exatamente esta elite de legisladores quem debatia e elaborava as leis hebraicas.

[3] Somente este trecho traz inúmeros questionamentos. Por exemplo, o “vento de Deus” poderia ser traduzido (como normalmente o é, nas traduções modernas) como “espírito de Deus”. Ocorre que a palavra que se refere a “Deus” é usada duas vezes: Elohim seria tanto “Deus” quanto o “espírito de Deus”. No entanto, a palavra Elohim pode ser vista tanto no singular quanto no plural, quando normalmente se refere a “deuses” (por exemplo, em XXXV:2). Dessa forma, nada nos impediria de considerar uma tradução como: “No princípio, Deus criou o Céu e a Terra (...) as trevas cobriam o abismo, e os deuses pairavam sobre as águas”. Este tipo de interpretação indica que Deus já havia “tido filhos”, ou irradiado “outras criaturas” de si mesmo, ainda no princípio.
Mesmo aqui, ainda podemos alinhar a possível origem etimológica de “Elohim” ao deus “El”, o “pai dos deuses” das religiões e mitologia dos primeiros semitas a se estabelecerem em Canaã, pouco antes de 3 mil a.C. Até 1929, as informações sobre tais mitos eram fornecidas pelo Antigo Testamento e alguns escritores gregos. Ocorre que o AT trabalha exatamente para a “demonização” dos deuses pagãos, e deve ser visto com certa desconfiança neste contexto.
Mas felizmente, em 1929, uma grande quantidade de textos mitológicos foi descoberta em escavações em Ras Shamra, a antiga Ugarit, cidade portuária da costa Síria, que pode ter sido fundada ainda em 6 mil a.C. Embora a religião de Ugarit nunca tenha sido a religião de toda Canaã, é lá que se ouve falar, pela primeira vez, de El, o “pai dos deuses”, e de Baal, “o Senhor da Terra, que castra o pai e toma seu lugar como administrador do mundo”. Em XXXIII:20 ficamos sabendo que um dos nomes de Deus é exatamente “El”.

[4] Nota do autor: Em numerosas tradições, o Criador é imaginado sob a forma de um pássaro. Mas trata-se de um “endurecimento” do símbolo original: o espírito divino transcende a massa aquática, é livre para mover-se; portanto, “voa” como um pássaro.

[5] Ou seja, tanto o oceano primordial quanto a “serpente-dragão” (tiamat) representariam o caos. Coube a um “herói” mitológico, ou ao próprio Deus, “matar a serpente e a separar em dois”, ou separar os Céus da Terra, e criar todas as coisas a partir de um oceano disforme, um “caos primordial”.
Para outros temas “serpentuosos”, recomento lerem o artigo Serpentes.

[6] Segundo os upanixades, entretanto, a “culpa” não recai sobre o “pecado original” de um antepassado, mas é fruto dos erros dos próprios homens, quando em vidas passadas.

[7] O mito javista é ainda mais próximo do mito de criação do povo Bassari, da África Ocidental: “Unumbotte (Deus) fez um ser humano e seu nome era Homem, e depois fez muitos outros seres (Mulher, Serpente, Antílope, etc.). Então, deu-lhes sementes de todos os tipos e lhes disse: ‘Plantem todas essas sementes’...” – E nele também há o “fruto proibido” que, uma vez comido, faz com que Homem e Mulher sejam “expulsos do jardim”. Aqui também encontrarão maiores detalhes no artigo Serpentes.

[8] Dessa forma, as concepções de vida após a morte através da ressurreição de um “corpo incorruptível” não são somente uma abominação (ao menos em relação à quase totalidade da mitologia antiga), como um “ponto de vista” extremamente materialista em relação à espiritualidade em geral.

[9] Nota do autor: A bissexualidade divina é uma das múltiplas fórmulas da “unidade/totalidade” representada pela união dos pares de opostos: feminino/masculino, visível/invisível, Céu/Terra, luz/escuridão, mas também bondade/maldade, criação/destruição, etc. A meditação sobre esses pares de opostos levou, em diversas religiões, a conclusões audaciosas referentes tanto a condição paradoxal da divindade quanto à revalorização da condição humana.
Meu complemento: Isto tudo tem muito a ver com hermetismo, Parmênides, estoicismo, Plotino e Espinosa. Mas, saindo do conceito de “Uno” e focando apenas nas “dualidades” (particularmente: essência/forma, permanência/impermanência, eternidade/tempo, etc.), chegaremos nas grandes religiões orientais – taoismo, budismo, e algumas interpretações do hinduísmo.

***

Shaná Tová! (hoje fazem "cerca de" 5773 anos que a alma de Adão foi criada por Elohim)

Crédito da foto: Damon Lynch

Marcadores: , , , , , , , ,