continuando da parte 1
Conversão religiosa é a adoção de uma nova identidade religiosa, ou uma mudança de uma identidade religiosa para outra. Isto envolve tipicamente o devotamento sincero a um novo sistema de crença, mas também pode ser concebido de outras maneiras, como a adoção em uma identidade de grupo ou linha espiritual.
Pequeno manual para a conversão do infiel
Todos os sistemas de crença ou doutrina religiosa se baseiam em espécies de guias, manuais passo a passo para uma vida de religiosidade mais profunda e verdadeira, em suma, uma religação mais eficiente e efetiva. Porém, me parece que podemos dividi-los em dois grandes grupos: aqueles em que o campo de aprendizado se dá única e exclusivamente por vontade e esforço próprios de cada um, sem a possibilidade de atalhos ou barganhas; e aqueles em que existe uma possibilidade de se avançar por meio de bênçãos e milagres, por barganhas diretas com Deus, em troca deste ou daquele benefício divino – um arrebatamento ao Céu, algum milagre ou salvação de última hora, ou simplesmente uma iluminação espiritual.
No segundo grupo se encontram a maior parte das igrejas ou sistemas eclesiásticos. Também pode-se dizer que este tipo de religiosidade é muito mais comum no Ocidente do que no Oriente. Por exemplo, quando determinada doutrina afirma que “só seremos salvos se aceitarmos Nosso Senhor Jesus Cristo em nosso coração”, ela opera por forma de barganha: aparentemente, o único caminho será esse, e o mérito da salvação não será exclusivamente nosso, mas muito mais uma forma de “retribuição divina” por nossa fidelidade. Ainda assim, aceitar o Senhor ainda é algo que tem mais lógica do que simplesmente doar quantias enormes de dinheiro a alguma igreja em troca da benção direta desse mesmo Senhor. Afinal, o que diabos Deus fará com seu dinheiro? Afinal, porque somente este ou aquele eclesiástico é responsável pela contabilidade divina?
No primeiro grupo, se encontram a maior parte dos religiosos que não necessariamente tem igreja. Também pode-se dizer que este tipo de religiosidade é muito mais comum no Oriente. Tais fiéis são antes fiéis a Deus, e mesmo que tenham alguma igreja ou grupo de estudos, e um dia os venha a abandonar, não necessariamente abandonará a própria doutrina em si. Estes fazem de suas casas, seus corações, suas mentes, sua única e inabalável catedral – onde sempre poderão orar, onde confessam antes de tudo a si mesmos.
Por exemplo, os dois primeiros versos do Livro do Caminho Perfeito, a obra principal do taoismo, dizem que “o caminho que pode ser seguido não é o Caminho Perfeito”. Superficialmente isto é um tanto paradoxal, é como se fosse apresentado um manual passo a passo para algum Céu em que, logo de início, já fosse afirmado que este manual não poderia ser seguido... No entanto, o que Lao Tsé queria dizer é análogo ao que muitos grandes sábios sempre afirmaram: que o caminho espiritual é próprio de cada um. Ou seja, o discípulo jamais poderá seguir o mesmo caminho do mestre, ele poderá no máximo utilizar seu exemplo de vida como base para construir o seu próprio caminho. Pois assim como não existem seres idênticos na criação, da mesma forma não existem caminhos idênticos para a religação ao Cosmos.
A mim me parece que a abordagem do primeiro grupo tem muito a ensinar ao segundo. Em realidade, existe uma disparidade tão grande e evidente à nível de profundeza espiritual entre tais grupos, que há de se perguntar se o segundo não é, em sua maioria, um grande agrupamento de visões equivocadas da religião mais aprofundada, universal, cósmica...
Há muitas igrejas, por exemplo, que foram edificadas inteiramente sobre textos sagrados aos quais se atribuí uma espécie de “ditado” direto de Deus. Não são como o Livro do Caminho Perfeito, uma mera tentativa de um sábio aconselhar aos outros sobre sua própria experiência de tentar compreender a Deus, mas antes a própria palavra de Nosso Senhor, verdadeiros Guias da Verdade Absoluta [1].
Se é que tais textos sejam mesmo o que os eclesiásticos pretendem que sejam, se é que não tenham sido enormemente adulterados com o passar do tempo, a evolução das sociedades, ou simplesmente por inúmeras traduções e compilações, ainda assim há que se pensar: se temos um nossa frente a Verdade codificada em palavras, em símbolos de escrita, será que isso nos bastará? Será que teremos plenas condições de interpretar corretamente tal Verdade? Acredito que a história das guerras religiosas nos traga uma boa resposta a essas perguntas – afinal, nenhuma guerra, nenhuma matança poderia, jamais, ser santa!
Obviamente que mesmo no Ocidente, que mesmo em tais igrejas com seus Guias Infalíveis, encontram-se os moderados, os da “ala mística”, ou que compreendem a religião, o religare, de forma mais aprofundada. Tenho certeza que esses jamais ergueriam uma espada, obrigando algum pobre coitado a se “converter” a sua doutrina...
Pois como poderia alguém, nalgum dia insano, converter outro alguém ao seu próprio pensamento, a sua própria doutrina, pela força? Pela sedução das palavras? Pelo terror anunciado de um lago de enxofre eterno aguardando todos aqueles que não se salvarem, que não aceitarem Nosso Senhor?
Ora, perguntem aos índios da América, perguntem aos negros da África, se eles nalgum dia se converteram ao Deus desses homens que os trataram como mercadoria, como escravos, como selvagens “sem alma”, mas nunca como irmãos, como seres na mesma caminhada para o Cosmos de onde todos foram catapultados na imensidão infinita. Dizer, da boca para fora, “eu aceito Nosso Senhor”, não significa que tenham aceitado. A liberdade jaz na mente e, assim como o caminho espiritual, é exclusiva de cada um, graças a Deus.
William James, um dos fundadores da psicologia, em seu grandioso tratado “Variedades da experiência religiosa”, postula que a conversão religiosa verdadeira pode aparentemente ocorrer de uma hora para outra, do dia para noite, em algum insight momentâneo, mas que quase que certamente já vinha sendo edificada, lentamente, nos calabouços ocultos do inconsciente. Que nossa questão com Deus é universal, todos temos de seguir este caminho, ainda que alguns o sigam inconscientemente ou o chamem de estudo da natureza – o importante é que, a nossa maneira, estamos todos caminhando à frente, aprimorando nossas potencialidades.
Lao Tsé e outros sábios sempre souberam que jamais poderiam converter alguém – o máximo que poderiam fazer era dar o exemplo, falar sobre sua própria experiência espiritual, sobre os percalços e as consolações do caminho, e esperar pacientemente que cada um, por si só, a seu próprio momento, convertesse a si mesmo.
Que não existe manual para o caminho alheio, apenas para o nosso próprio. O único infiel que tem de ser convertido é aquele que se encontra em nossa própria alma. Somos o juiz e o escravo, o apóstolo e o seguidor, o mestre e o discípulo, de nossa própria causa. Temos de ser fiéis ao nosso próprio ser, ao nosso tanto de fagulha divina que, ainda assim, é e sempre foi a única maneira com que Deus falou conosco – como o vento que sempre nos envolveu, embora não saibamos ao certo por onde ele tem passado.
A seguir, o evangelho do agnóstico...
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[1] Muito embora, mesmo no taoismo existam lendas que colocam Lao Tsé como uma espécie de deus na Terra. Da mesma forma que existem religiosos superficiais no Ocidente, existem também no Oriente. Este texto não pretende ser, portanto, uma exaltação da religiosidade oriental como “superior”. Apenas procura atestar que a religiosidade pura, não eclesiástica, é muito mais comum na cultura oriental – independente de seus seguidores as terem compreendido ou não.
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Crédito das imagens: [topo] Trinette Reed /Corbis; [ao longo] Ma Dan/XinHua/Xinhua Press/Corbis.
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