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30.5.11

Nada era em vão

Textos de Fernando Pessoa em "Teatro do Êxtase” (Ed. Hedra) – Organização por Caio Gagliardi.

[Coro] – Cantai nas árvores das estradas, ó aves que consolai o ouvido dos tristes! Correi docemente na sombra, ó fontes! Dormi quietos na relva calma, ó feras agora em sossego! Daí a vossa alegria a todos os ventos, cantai a vitória do amor em todas as brisas! Morreu a sua vida o Salvador do Mundo!

Para ele não haverá nada. Só para ele nada haverá! Tudo quanto sofreu será consolado nesta hora sem tempo. Tudo quanto fez mal agora passará a nunca o ter feito. Tudo quanto sofreu o mal feito eis que nunca sofreu hoje, e nunca soube o que era o sofrimento! Só Ele, o Coração Amante do Universo, é volvido a Sombra e [o] Apagamento! Só Ele vai esquecer de todo, levando em seu seio noturno todo o mal que nele concebeu para alívio e descanso do Mundo. Só Ele desaparece, só Ele é nada. O próprio amor a ele acabará, porque ele acabará. Não há para ele a recompensa, porque ele passa agora, no triunfo maior do que os deuses, a não ser nada, a nunca ter sido coisa nenhuma. Através do Sofrimento Absoluto ele entra na Morte sem resgate.

***

[Coro] – O Mundo é livre! O Mundo é Deus! As coisas renascem em extemporâneo e Divino!

Raiam Deus todas as luzes, aquiescem Deus todas as Sombras, todos os espaços são Deus.

As flores desabrocham Deus, cada árvore é uma divindade todas elas, cada folha é Deus Todo.

Este é o Mundo! Este é o Mundo! Nunca houve tempo nem espaço! Nunca houve alegria nem dor!

O que era bom é hoje o Bem. O que era doce e humano na imperfeição é hoje a Perfeição.

Tudo quanto era divisão de repente não é, nem nunca foi (subitamente nunca foi).

O que se perdeu nunca se tinha perdido!

As pequenas ternuras são grandes hoje com o calor das pequenas. As afeições da terra são hoje do Céu em que a terra toda está. Todos os filhos estão com todas as mães. Nada falta, nada sobra, nada limita. Tudo é tudo em Deus.

***

[Coro] – Acabou o amor, porque nada se busca, estando tudo encontrado. O que era amado por ser pequeno continua a ser amado por ser pequeno, mas é grande. O que era amado por ser humano continua a ser amado por ser humano, mas é divino. O que era amado por ser imperfeito continua a ser amado por ser imperfeito, mas é perfeito. Tudo tem o que tinha de belo e Deus a mais. Tudo está liberto. Nada era em vão.


Um (ou dois, ou talvez três) dos possíveis finais para a peça “Sakyamuni”, onde Pessoa trata da passagem de Buda para o Nirvana. O organizador do livro, Gagliardi, comentou: “Sem indicação de data, a peça nos sugere interessante clave de leitura para o vertiginoso processo de despersonalização poética em que resultou a heteronímia: Tornado a Diversidade Absoluta, o Abismo Puro, morrerás de ti próprio. E tudo será o Nirvana atingido, e o Fim [dourado] da Estrada”.

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Crédito da imagem: Ananda K. Coomaraswamy e Irmã Nivedita, litografia de 1913 (Stapleton Collection/Corbis).

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II Simpósio Brasileiro de Hermetismo

O II Simpósio Brasileiro de Hermetismo e Ciências Ocultas, que será realizado nos dias 23, 24 e 25 de junho de 2011, tem por objetivo trazer estudos mais aprofundados à Ciência Hermética. Com apoio da Associação Educacional Sirius-Gaia e do Projeto Mayhem, o evento tem como tema geral a discussão sobre as práticas ocultistas.

Palestrantes

Adriano Camargo – Autor do “Sistemagia” e “Cabala Draconiana”, membro da Dragon Rouge e um dos pouquíssimos caras sérios em LHP no Brasil.

Alexandre Cumino – autor de “A História da Umbanda” e editor do “Jornal da Umbanda Sagrada”. Um dos sacerdotes mais respeitados no Brasil.

Carlos Basílio Conte – Membro da Sociedade Teosófica e Secretário de Cultura da Maçonaria, autor dos livros: “Magia Cerimonial” e “Pitagoras- Ciencia e Magia na Antiga Grecia”.

Edmundo Pellizzari – Prof. Edmundo Pellizzari é teologo (BD, BTh, OCR) com formação em estudos biblicos e judaicos. Durante trinta anos estudou a Mistica Judaica (Kabalah) em institutos internacionais e com mestres tradicionais. E membro da Order of Corporate Reunion, da Order of Christian Renewal e da Apostolic Church of the Divine Mysteries.

Fernando Maiorino – Fundador e Presidente da Associação Educacional Sírius-Gaia (AESG). Orientador Espiritual em Umbanda Natural, vertente filosófica trazida por seus Guias Espirituais há uma década.

Frater Goya – Mais conhecido nos meios internéticos, é o fundador do Círculo Iniciático de Hermes (CIH). Já postei entrevistas com ele.

Gilberto Antônio Silva – Estudioso de filosofias e culturas orientais desde 1977, pesquisou e analisou com profundidade a cultura e o modo de pensar oriental, especialmente o Taoísmo. É atual Coordenador Editorial da revista Medicina Chinesa Brasil e Editor-responsável do jornal Saúde & Longevidade.

Marcelo Del Debbio – Arquiteto com especializações em Semiótica, História da Arte e História das Religiões Comparadas. Autor da Enciclopédia de Mitologia e coordena o blog “Teoria da Conspiração” e o Projeto Mayhem. É autor da Wikipedia de Ocultismo, com cerca de 5.000 verbetes.

Márcio Lupion – Discipulo da Maha Yoga Chegada ao Ramana Ashram do Brasil Swami Sri Maha Krishna – Aprende as 4 yogas, Bakti, Raja, Jnana e Karma Yoga. Iniciado no budismo tibetano com Chagdud Tulku Rinpoche, Templo Odsal Ling, São Paulo, SP.

Mário Alves da Silva Filho – Pratica e estuda o Sufismo ha mais de 15 anos, tendo sido membro das seguintes Ordens Sufis (Turuq): Attasiyya (foi o representante – Muqadam – para o Brasil), Khalwatiyya al-Jerahiyya e Ahmadiyya at-Tijaniyya (é membro desta atualmente). Viajou pela Turquia, Irã, Iraque e Arábia Saudita entrando em contato com diversos Shaykhs da Tradição do Tasawwuf (Sufismo), aprendendo com eles. Dirige o Centro de Estudos Filosóficos e Espirituais Caminho do Oriente (CEFECO). É membro do Grupo de Pesquisas CERAL- Centro de Estudo de Religiões Alternativas de Origem Oriental, Setor de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

Renan Romão – Graduando em Psicologia e Letras (FFLCH-USP), estuda Magia e Misticismo atraves de diversas tradicoes ocidentais e orientais sob a luz do Iluminismo Cientifico. Maçom, membro da ARLS “Estrela do Brasil” n°4321 GOB/GOSP, representante do CALEN/SP e membro-fundador da Confraria de Estudos Antigos.

Informações e inscrições:
» http://www.simposiohermetismo.com.br

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Obs: Como alguns devem saber, eu atualmente moro em Campo Grande/MS e não poderei ir neste evento, mas dependendo da data do próximo simpósio, vou me esforçar para poder comparecer.

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26.5.11

Tempo oculto

Este artigo é um adendo da série "Reflexões sobre o tempo".

Alguns de vocês podem ter passado desapercebidamente pelo que acabei de falar sobre o tempo, mas ainda outros podem ter ficado profundamente absortos nos paradoxos transcritos. Podem ter percebido que a luz eterna – não apenas os fótons, que estão entre os cerca de 4% da matéria que podemos detectar, mas a outra luz também – paira por todo o Cosmos e que para ela a formação da primeira galáxia, da primeira estrela, do primeiro átomo de carbono, pode ser tão relevante quanto os fogos de artifício de uma festa de ano novo qualquer em alguma praia deste mundo. Ou que, mesmo tendo percebido isso de relance, seja pela filosofia, pela ciência ou pela religião, ainda não conseguimos fugir do problema do tempo, tão bem descrito por Agostinho há séculos atrás. Ainda outros podem ter passado pelo apocalipse dos rapanui, apenas para terem o pensamento renovado pelo fogo... É tão difícil dizer, como saber o que o outro pensa? Cada um de nós é uma substância a parte, uma forma do Cosmos saber sobre si mesmo.

Há quase um ano, eu escrevi um texto sobre o mito da criação, e confesso que não o compreendi por completo, mas agora este trecho começa a fazer sentido:

Seu plano para cada universo era cuidadosamente elaborado em sua mente, entre os momentos em que apenas refletia sobre si mesmo...
Cada universo tinha uma substância, e essa substância os preenchia por completo – cada estrela, planeta e partícula.
E para que houvesse movimento, o Ser permitiu que a substância fosse maleável.
E para que os seres conscientes que brotassem pudessem renascer quantas vezes fossem necessárias, o Ser permitiu que a maleabilidade da substância construísse uma sequência de eventos na consciência dos seres.
E para que tudo não fosse determinado, o Ser permitiu que um átimo dessa maleabilidade ficasse a cargo dos pensamentos e da vontade dos próprios seres conscientes.

Ora, muitos foram ensinados a imaginar o universo como uma explosão, as vezes usa-se a imagem de uma bexiga de ar para explicar como o próprio tecido do espaço-tempo se expande. Estamos nos afastando de todo o restante, independente de estarmos parados ou não – mas nada está parado. De fato, esse crescimento foi tão rápido no início, que grandes porções do universo estão além da nossa fronteira de observação, mesmo na velocidade da luz jamais chegaríamos do outro lado. Se o universo não for infinito, isso pouco faz diferença para nossa compreensão atual...

Mas essas imagens são falhas num sentido profundo: jamais poderemos observar a bexiga do lado de fora. Estamos dentro da explosão, a homogeneidade da radiação de fundo cósmica já comprovou isso. Como minúsculas partículas de poeira, somos empurrados para lá e para cá em meio ao turbilhão de uma substância infinita, que parece ter uma sede de ser cada vez mais infinita – se é que isso faz algum sentido.

A grande questão é que aparentemente nós temos um papel de certa relevância nesse plano cósmico. Os estoicos estavam corretos ao dizer que não deveríamos nos angustiar com tudo aquilo que não podemos decidir – e são muitos os eventos que nos fogem o controle –, mas eles nos lembraram de que existem coisas que podemos decidir. Existem corpos, existem mentes, existem almas, existem eventos, existem partes da substância que nos foram ofertadas... O que faremos com tamanha responsabilidade?

Franz Bardon foi um ocultista checo do qual – apesar de sua enorme popularidade entre os estudantes de magia da atualidade – pouco sabemos por certo de sua vida, além dos grandes livros que nos deixou. Em “Magia prática” (recomendo a tradução da Ed. Ground, de Inês Lohbauer), ele nos traz uma série de rituais mentais que, quase que certamente, aprendeu em alguma montanha distante do Oriente. Num deles em específico, há uma curiosa analogia com o que viemos estudando acerca do tempo e de como o percebemos através de nossas mentes. Primeiramente, ele nos fala sobre a curiosa função de nosso subconsciente – nosso inimigo a viver nalgum tempo oculto:

“Aquilo que na consciência normal entendemos como pensamento, sentimento, vontade, memória, razão, compreensão, reflete-se no nosso subconsciente como um efeito oposto. Do ponto de vista prático podemos encarar nosso subconsciente como nosso oponente. A força instintiva, ou o impulso a tudo aquilo que não queremos, como por exemplo, nossas paixões incontroláveis, nossos defeitos e fraquezas, nascem justamente dessa esfera da consciência.”

Não tenho certeza se isso ficou bem explicado, mas reconheço que é algo bastante complexo de explicar por palavras, então prefiro não me arriscar a complementar Bardon. Prossigamos adiante, quando ele nos fala do ritual mental de auto-sugestão:

“Na maioria dos casos, principalmente numa vontade fraca ou pouco desenvolvida, o subconsciente quase sempre consegue nos pegar de surpresa ou provocar um fracasso. Se ao contrário, na impregnação do subconsciente com um desejo nós lhe subtrairmos o conceito de tempo e espaço, o que passa a agir em nós é só a sua parte positiva.
[...] A fórmula escolhida para a auto-sugestão deve ser obrigatoriamente mantida na forma presente e no imperativo. Portanto, não se deve dizer: “Eu pretendo parar de fumar, de beber”, mas sim, “Eu não fumo, eu não bebo”, ou então: “Não tenho vontade de fumar, ou de beber”, conforme aquilo que se pretende largar ou obter pela sugestão.”

Para quem acreditava que magia significasse rituais com velas negras e invocações de seres sobrenaturais, essa descrição de ritual mágico de Bardon pode parecer um tanto quanto sem graça... Mas, pensem novamente: vivemos cercados por um oceano cósmico de infinita beleza, e pela luz eterna, a cada momento do tempo, e quão poucos tiveram ainda olhos para ver tudo isso, sequer de relance!

Obviamente que o ritual de Bardon, que alguns mais desaforados poderiam chamar de catalisador de efeitos placebo – sem estarem longe da razão, diga-se de passagem –, não nos servirá para tudo aquilo que os estoicos incluíram na lista do que não nos cabe a decisão. Servirá, portanto, para o autoconhecimento, o desenvolvimento da sabedoria, da sensibilidade, da criatividade, até mesmo do amor – mas de nada servirá para ganharmos na loteria, ou conquistarmos alguma amante (os amantes tem vontade própria). O que se tira disso tudo: que seu ritual serve para muita coisa.

E é precisamente aqui que me foi pedido para complementar tais ensinamentos vindos de algum canto do Oriente...

Ora, se existe certo grau de incerteza acerca de como a substância se movimentará a seguir – e a física quântica tem nos comprovado isso a décadas –, então talvez a existência não seja o mero agitar de partículas aleatoriamente, tampouco uma determinação estrita de um grande diretor de cinema cósmico, talvez afinal nossa vontade faça alguma diferença neste turbilhão!

Mas, curioso de se pensar: a maior parte de nossos desejos, a grande parte de nossa vontade, se sintoniza exatamente aos eventos que não nos cabe decidir. De nada adianta, portanto, se aventurar pelo ritual de Bardon sem primeiro compreender, de verdade, o que os estoicos diziam a tanto tempo. Só nos compete moldar o mundo naquilo que nos é dado decidir, no tempo em que dispomos para tal.

Será então, tanto mais difícil, imaginar as conquistas do ponto de vista do conquistador, sentado em seu grande trono. Talvez Bardon tenha esquecido que nem todos tinham o seu grau de vontade... Que não se imagine, portanto, “eu não fumo”, mas que se imagine cada passo dado nesta empreitada, cada olhadela para um maço sem que tenhamos pensado “e onde estará meu isqueiro?”. Que não se use a mente para visualizar um grande ser amoroso que nos empresta apenas a face, mas que se pense com cuidado em cada pequeno desafio de caridade que nos espera.

Dessa forma, quem sabe, até mesmo o inconsciente, até mesmo o tempo oculto, venha em nosso auxílio. Não após a conquista, num tempo ainda imaginário, mas nesse exato momento – no momento em que planejamos nossa jornada de autoconhecimento, nosso lampejar de consciência.

Que nosso inimigo jamais nos quis mal, ele tão somente serve de contrapeso para nossa longa jornada. Como um arquirrival, um Lúcifer que se presta ao papel de bode expiatório, até que tenhamos consciência de que toda a ignorância sempre partiu de nós mesmos – e não poderia ser de outra forma, que não nascemos sabendo, nem fomos programados para a perfeição.

Quem diria, quem diria que a substância, além de tão bela, ainda nos teria dado tal relíquia, tal tesouro... A capacidade de conquistar a consciência por nosso próprio mérito e esforço, a divina vontade! Perto desta, nenhum tempo permanecerá oculto por muito tempo...

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» Saiba mais sobre Franz Bardon em "Bardonista".

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Crédito das imagens: [topo] Maria Eugênia Guimarães ; [ao longo] Bardonista (foto de Franz Bardon).

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Uma imagem, uma reflexão (9)

Uma simetria inesperada...

"A elegância, a riqueza, a complexidade e a diversidade dos fenômenos naturais que decorrem de um conjunto simples de leis universais é parte integrante do que os cientistas querem dizer quando empregam o termo 'beleza'" (Brian Greene)

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(clique na imagem para abrir em tamanho maior)

Crédito da foto: Nasa (imagem ampliada de uma gota de heptano, um combustível, queimando no espaço)

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Links Mayhem (15)

O Projeto Mayhem foi criado em Março de 2010 como centro de debates e discussões sobre temas Ocultistas e Herméticos. Agora, toda semana, os participantes do projeto divulgam os links mais interessantes para artigos nos blogs de outros participantes:

- Teoria da Conspiração - Palestrantes do II Simpósio de Hermetismo
- Tudo sobre Magia e Ocultismo - Alguém quer ser meu Mestre?
- Artigo 19 - Yesod
- Autoconhecimento, Tecnologia e Liberdade - Já é tempo de refletirmos diante de alguns conceitos
- Idéia Biruta - Algo se move
- Jedi Teraphim - Teria Jesus sobrevivido ao suplício?
- O Alvorecer - "Magia Prática" e o alvoroço da nova edição
- Paradigma Divino - O mito da caverna
- Labirinto da Mente - A guerra das crepusculetes
- Hermetic Rose
- Zzurto
- O Véu de Maia

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» Veja todos os posts sobre o Projeto Mayhem

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25.5.11

Reflexões sobre o tempo, parte 3

« continuando da parte 2

Igne Natura Renovatur Integra (INRI) - Pelo Fogo a Natureza se Renova Inteiramente.

O fim do tempo

De tempos em tempos acontece, e nem precisa ser uma “data cheia”, como o ano 1.000 ou o 2.000 (esquecem-se de que o milênio novo se iniciou em 1.001 e 2.001, respectivamente), a última data “prevista” foi 21/05/2011, precisamente às 18h do horário local de cada país do mundo... Segundo o pastor protestante Harold Camping, os bons seriam arrebatados aos céus de acordo com seu respectivo fuso-horário: na Nova Zelândia teriam a oportunidade de se aventurar aos céus mais cedo, na ilha de Samoa seriam alguns dos últimos, já que o governo ainda não efetuou a troca de fuso-horário.

E para quem os portões do céu não se abrissem, restaria o inferno na Terra até 21/10/2011, data em que um deus colérico poria fim não somente ao planeta, mas a toda criação – o fim do Cosmos, o fim de todo o espaço-tempo!

Não é a primeira vez que Camping foi ridicularizado por uma previsão errada do fim do mundo. Ele chegou a escrever um livro sobre como o arrebatamento ocorreria em 1994, e já estava errado desde aquela época. Interessante como eles parecem não se importar... O ocultista (e ultimamente, especialista em desmistificar lendas do fim dos tempos, como a baseada no calendário maia) Marcelo Del Debbio costuma dizer que não tem coisa mais inútil do que se prever o fim do mundo – se o sujeito errar, será ridicularizado; se acertar, não restará ninguém para lhe dar atenção (há não ser aqueles poucos que conseguirem se encontrar no céu, supondo que quem previu não tenha cometido o pecado da falsidade em previsões anteriores).

Saibam que a previsão de Camping nem de longe soa tão absurda quanto a que Charles Russell realizou para 1914, e sobre a qual as Testemunhas de Jeová depositaram toda sua fé... O absurdo não é por ter se equivocado, mas porque existem Testemunhas que creem que o mundo acabou em 1914. O que vivenciamos hoje é uma espécie de sonho, uma ilusão que nos impede de perceber que o mundo já acabou. Sim, não faz sentido, mas e daí?

Um dia recebi em minha caixa de correio uma carta de uma Testemunha me convidando para visitar uma de suas igrejas. A carta era muito amável, mas o que realmente me surpreendeu é que foi escrita a mão! Fiquei imaginando quantas cartas aquela senhora escreveria toda semana, de próprio punho, provavelmente para serem descartadas antes mesmo de terem sido lidas... Os religiosos gostam de se sacrificar por suas causas, e que maior sacrifício, que maior evento divino, cósmico, que o próprio fim dos tempos?

Quando, em 1722, o explorador holandês Jakob Roggeveen alcançou, num domingo de Páscoa, aquela distinta ilha isolada do resto do mundo por muitos quilômetros de oceano, encontrou apenas alguns nativos miseráveis, com barcos de pesca precários, numa terra árida... Mas viu também os gigantes de pedra, os moais de formas humanas, que chegavam a ter até 10m e em torno de 270 toneladas. Como aquele povo miserável conseguira erguer tamanhas maravilhas?

Os moais da ilha da Páscoa nada mais eram que a testemunha de um pequeno fim do mundo local... Se hoje o cenário da ilha é desolador, fósseis encontrados na lava vulcânica de Terevaka, um deus vulcão, revelam que a ilha chegou a abrigar a maior espécie de palmeira do mundo e uma floresta tropical com mais de 21 espécies de grandes árvores. Essa foi a grande fonte de matéria prima da civilização dos Rapanui em seu apogeu.

Nessa época, entre 1400 e 1600, a sociedade se dividia em 12 clãs. Eles compartilhavam pacificamente os recursos naturais da ilha. A competição se resumia à fabricação dos moais, a partir das rochas vulcânicas. Eles representavam membros mortos das elites dos clãs. Ao longo da história da ilha, o tamanho dos moais foi aumentando, o que sugere um acirramento na competição ente os clãs ou um maior apelo aos deuses. As árvores da ilha precisavam ser derrubadas para a construção de trenós, trilhos e alavancas para a construção dos moais (além, é claro, para as canoas de pesca e residências). Infelizmente, para os Rapanui, a natureza tinha um limite...

O desmatamento desenfreado teve impactos profundos na ilha. As poucas aves marinhas que não foram extintas pela caça predatória dos Rapanui ou dos ratos, migraram. Erosões no solo dificultavam o plantio. Em 1500, já não haviam mais árvores para a construção de canoas, e então a pesca de peixes grandes desapareceu. Por volta de 1680, explodiram guerras civis, e os clãs começaram a derrubar as estátuas dos rivais (Roggeveen já encontrou a maior parte delas no chão). Nobres e sacerdotes das elites já não conseguiam justificar seus status junto aos deuses, e foram eliminados por uma milícia que assumiu o poder na ilha.

Os novos donos da ilha adotaram um deus menor do antigo panteão e começaram a desenhar homens-pássaros e genitais femininos nos antigos moais, representando a nova divindade. Faminta, a sociedade se degradou até o canibalismo – muitos foram morar em cavernas. Em 1700, 70% da população de Páscoa havia desaparecido. No lugar dos imensos moais, escultores agora faziam pequenas estátuas (os moais kavakava) que mostram pessoas famintas, com o rosto fundo e as costelas à mostra.

Após a chegada de Roggeveen, vieram às epidemias de doenças europeias, os sequestros de insulares para trabalhar como escravos no Peru, e em 1864, com a vinda dos missionários católicos, o que restava da tradição oral dos antigos Rapanui foi perdido. Em 1872, restavam 111 habitantes de um povo que um dia, estimasse, contou 15 mil pessoas. Os moais, restaurados, são a testemunha petrificada do fim do tempo de um povo – na maior parte, causado por ele mesmo [1].

Teriam os sacerdotes Rapanui previsto um fim do mundo? Nesse caso, teriam eles acreditado que o fim da ilha da Páscoa significava o fim de toda a criação? Teria sido a construção de moais cada vez maiores uma tentativa desesperada de barganhar com os deuses em troca de alguma espécie de salvação, de arrebatamento dos “puros” aos céus?

O tempo e o espaço da ilha da Páscoa soa assustadoramente como um espaço-tempo contido, uma bolha temporal, de nossa civilização como um todo... Em nossa ignorância, em nossas desavenças, cremos que deuses virão para salvar somente um pequeno grupo, uma pequena elite, “preparada” para a salvação. Para estes, estranhamente, o fim dos tempos não é uma coisa ruim. O fim de toda a vida no Cosmos se justificaria se, em troca dessa catástrofe, alguns poucos se encontrassem com algum deus estranho nos céus, para fazer “não se sabe o que”.

A história dos Rapanui, entretanto, nos traz lições de como tudo poderia ter sido diferente... Prosperaram por séculos dividindo de forma harmônica os recursos da natureza ao seu alcance. Foi o desejo de competição, de parecer “mais especial” perante aos deuses, que fez com que se arriscassem a ir além dos limites de seu ecossistema, apenas para erguer estátuas de pedra. Erguidas não para os deuses, mas para eles próprios, para que o clã ao lado se sentisse inferiorizado.

E o que tem sido a história de nosso tempo, e de nossas igrejas, senão um reflexo do tempo de Páscoa em maior escala? Senão uma tentativa desesperada para fazer os infiéis, os escolhidos dos “outros deuses”, se sentirem inferiorizados perante as conquistas e a “verdade” de suas próprias igrejas?

Houvessem eles lido nas entrelinhas da natureza, houvessem eles se apercebido que vivemos numa pequena ilha cercada de infinito por todos os lados, saberiam que todo o tempo do mundo se resume ao momento em que o ser se encara, face a face com Deus, com o Cosmos, com a substância que permeia todo o tecido do espaço-tempo... Esse momento é eterno, e se faz na consciência, no paradoxo da mente que sabe de cada momento de sua ascensão, mas ainda assim os encena com maestria, passo a passo, rumo ao que quer que seja que os gigantes de pedra estão a observar – mas não houve tempo para nos contar.


Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou, tempo de matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de edificar, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de saltar de alegria, tempo de espalhar pedras e tempo de juntar pedras, tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de guardar e tempo de deitar fora, tempo de rasgar e tempo de coser, tempo de estar calado e tempo de falar, tempo de amar e tempo de odiar, tempo de guerra e tempo de paz (Eclesiastes 3:1-5).

***

[1] Ver o artigo “As testemunhas de pedra”, de Pedro Pracchia, na edição especial da Superinteressante sobre “O fim do mundo” (Maio/2011). Porém, esta teoria pode estar errada, conforme explico no adendo a este artigo.

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Crédito das imagens: [topo] Gary Sean Burrows; [ao longo] Micheal Kenna (Silent World).

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23.5.11

Reflexões sobre o tempo, parte 2

« continuando da parte 1

“Existe este gigantesco híper-momento onde tudo ocorre, apenas nossa mente está ordenando tudo em passado, presente e futuro.” – Alan Moore.

O tempo em nossas mãos

Santo Agostinho de Hipona talvez tenha sido o primeiro homem a se aprofundar na reflexão filosófica sobre o tempo. O grande pensador do cristianismo abriu caminho para sua análise com um comentário bastante peculiar:

“Que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. [1]”

Então, logo após, colocou em xeque a própria noção da divisão do tempo em passado, presente e futuro:

“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo claro e brevemente? [...] e de que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro – se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, como poderíamos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? [2]”

Para tentar resolver tal paradoxo, Agostinho foi se aprofundando cada vez mais no problema do tempo, até que seu caminho puramente lógico lhe levou a uma intrigante conclusão, talvez uma das conclusões mais importantes da história da filosofia – e que até hoje não foi superada por nenhum pensador que lhe precedeu:

“O que agora transparece é que, não há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar: Os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente dos presentes, presente dos futuros. Existem pois estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três. [3]”

Mas a solução de Agostinho não era propriamente uma solução, ela apenas deslocava o problema do tempo para nossa percepção subjetiva do mesmo. Isso significava, é claro, que o tempo não poderia realmente ser medido de forma objetiva, e tampouco era uma medida absoluta. Agostinho havia precedido Einstein em muitos séculos, o ex-boêmio havia se embriagado, desta vez, não de vinho, mas do conhecimento do Cosmos... Ele já sabia que o tempo não poderia ser o mero movimento dos corpos:

“Ninguém me diga, portanto, que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando, com a oração de Josué, o Sol parou, a fim de ele concluir vitoriosamente o combate, o Sol estava parado, mas o tempo caminhava. [4]”

Podemos ser céticos com relação ao fato do Sol ter realmente parado, mas a essência lógica do pensamento agostiniano estava tão correta na época quanto nos dias atuais...

Atualmente, o tempo é um tema especialmente quente na física. A procura por uma teoria unificada (das quatro grandes forças da natureza) força os físicos a reexaminar diversas suposições básicas, e poucas coisas são mais básicas que o tempo. Alguns físicos argumentam que não existe algo como o tempo. Outros acham que o tempo deveria ser promovido em vez de rebaixado. Entre essas duas posições há a fascinante ideia de que o tempo existe, mas não é fundamental. Um mundo estático dá, de certa forma, origem ao tempo que percebemos. Essas ideias vêm sendo debatidas desde a época dos filósofos pré-socráticos, mas só agora os físicos as estão levando mais a sério como genuínas possibilidades para teorias científicas consistentes... De acordo com uma delas, o tempo pode resultar da maneira como o universo está dividido; ou seja, o que percebemos como tempo reflete a relação entre as partes.

O que normalmente chamamos de tempo é tão somente uma maneira de descrever o ritmo de um movimento ou mudança, tal como a velocidade em que pulsa o coração, ou ainda a velocidade de giro de um planeta. O curioso é que tais processos podem ser relacionados diretamente um ao outro, sem fazer referência ao tempo em si. Por exemplo, tanto podemos afirmar que a luz viaja a 300 mil km/s, que o coração dá 75 batimentos por minuto ou que a Terra faz uma rotação por dia quanto, igualmente, poderíamos dizer que enquanto o coração humano dá 108 mil batidas, a Terra gira em torno de seu eixo uma vez; ou que, por exemplo, a luz viaja a 240 mil km por batimento cardíaco.

Assim, alguns físicos dizem que o tempo é uma moeda comum, tornando o mundo mais fácil de descrever, mas não tendo existência independente. Medir os processos em termos de tempo poderia ser como usar o dinheiro em vez da troca direta de bens e serviços, em nossas relações comerciais. Por exemplo, se uma xícara da café custa US$ 2, um par de tênis custa US$ 100, e um carro usado sai por US$ 2 mil, poderíamos simplesmente esquecer do dólar e concluir de uma forma mais simples, talvez, que um par de tênis vale 50 xícaras de café, enquanto que um carro usado sairia por mil xícaras. Nós usamos moedas para facilitar a vida, pois ninguém vai querer comprar um carro com mil xícaras de café. No entanto, cédulas monetárias nada mais são do que folhas de papel com curiosas gravuras impressas, é a nossa crença em seu valor que as fazem valer isto ou aquilo. Não seria o tempo, portanto, apenas o resultado de nossa crença de que existe um tempo?

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty argumenta que o próprio tempo não flui realmente e seu fluxo aparente é produto de nossa atitude de “colocar secretamente dentro de um rio uma testemunha de seu curso”. Ou seja, a tendência de acreditar que o tempo flui é resultado de esquecer de colocarmos a nós mesmos – e nossas conexões com o mundo – no quadro geral. Merleau-Ponty estava falando de nossa experiência subjetiva de tempo e, até recentemente, ninguém imaginou que o tempo objetivo pode, ele mesmo, ser explicado como resultado dessas conexões. O tempo pode existir apenas ao quebrar o mundo em subsistemas e olhando para o que os une. Nesse cenário, o tempo físico surge pelo mérito de pensarmos sobre nós mesmos como separados de todo o resto [5].

Se optarmos por nos arriscar a realmente encarar o problema do tempo face a face, precisamos retornar a origem de tudo o que há, ao Big Bang, pois que Einstein também nos provou que tempo e espaço são ambos constituintes, fios tecedores do tecido do espaço-tempo. Não é possível falar de um sem falar do outro, e não é possível falar de ambos sem falar do todo, de todo o Cosmos.

O grande Espinosa, em sua genial análise do primeiro capítulo de sua “Ética”, já havia chegado a conclusão de que “uma substância não pode criar a si mesma”. Como a história cósmica é uma sucessão de transformações e danças de matéria e energia, pela lógica somos obrigados a concluir que tudo o que há é fruto de uma única substância.

Talvez o Cosmos seja como a roda da carroça do velho Lao Tsé, sempre a percorrer os velhos sulcos... Talvez o eixo seja a essência, através da qual a substância se irradia para o aro, que parece-nos girar... Supomos que ele realmente gira, principalmente porque vivemos neste aro, porque estamos todos conectados – somos poeira de estrelas, fagulhas divinas das fornalhas solares, enfim, somos também parte da mesma substância...

Enquanto o aro gira, sustentado pelo eixo, parece-nos que os eventos realmente se sucedem. Mas, e se o aro for o espaço-tempo, sendo constantemente sustentado e mantido pela irradiação que parte do eixo, temos que o tempo, assim como o espaço, nada mais é do que fruto da dança cósmica que a substância de Espinosa têm nos agraciado observar desde o início das eras.

Se for este o caso, não devemos nos angustiar com a profundidade do infinito, tampouco com a ansiedade do futuro ou a saudade dolorida do passado. Se tudo o que há é a substância, tudo o que há é também este momento, o momento em que temos o tempo nas mãos e a vontade, a sagrada vontade, para o esculpir a nosso bel-prazer. Talvez o paradoxo de Agostinho nem precise ser resolvido, não enquanto ainda temos coisas mais urgentes para resolver. Se o passado já não existe, e o futuro não chegou, agarremos ao presente com toda nossa alma, e façamos dele um hino em homenagem à substância, um hino para toda eternidade.

» Na continuação, o final dos tempos...

***

[1] Confissões, livro XI (14).

[2] Confissões, livro XI (14).

[3] Confissões, livro XI (20).

[4] Confissões, livro XI (23).

[5] As referências científicas dos 4 últimos parágrafos foram retiradas do excelente artigo "O tempo é uma ilusão?", do filósofo da ciência Craig Callender, para a Scientific American (edição especial #41, “A longa história do universo”).

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Crédito das imagens: [topo] Laurence Acland/First Light/Corbis; [ao longo] Joe Sachs/Corbis.

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20.5.11

Reflexões sobre o tempo, parte 1

Todos certamente já afirmaram, de forma natural: "o tempo corre", "este ano passou depressa" ou mesmo "esta aula não acaba". Uma definição científica mais precisa faz-se certamente necessária, e com ela ver-se-á que o tempo, em sua acepção científica, não flui. O tempo simplesmente é.

Perseguindo a eternidade

A ilha Samoa, no Pacífico Sul, anunciou que vai avançar um dia no calendário para incentivar os negócios com os seus principais parceiros econômicos, a Austrália e a Nova Zelândia. Hoje, a ilha de 180 mil habitantes está 21 horas atrás da principal cidade australiana, Sydney. A partir do dia 29 de dezembro de 2011, vai estar 3 horas à frente.

O primeiro-ministro de Samoa, Tuilaepa Sailele, afirmou que a ilha está perdendo dois dias úteis por semana em suas transações comerciais com esses países. Quando é sexta-feira em Samoa, já é sábado na Nova Zelândia. E aos domingos, enquanto a população da ilha está na igreja, os negócios estão a todo vapor em Brisbane e Sydney. A alteração do calendário significa que Samoa passará para o lado oeste da linha internacional do tempo. Há 119 anos, os samoanos fizeram o contrário e se transferiram para o lado leste da linha, a fim de incentivar negócios com os Estados Unidos e a Europa. Hoje, entretanto, são a Austrália e a Nova Zelândia os importantes parceiros comerciais da ilha.

Quando a linha internacional do tempo (ou linha de data) foi estabelecida, o mundo ainda seguia a doutrina newtoniana do tempo, e cria piamente que o tempo era uma entidade absoluta. Dessa forma, apesar de serem linhas imaginárias, os meridianos estariam associados à rotação da Terra em torno do Sol, algo que transcorreria em um tempo absoluto. Até hoje, como podemos ver, a engrenagem de nossa economia se baseia em linhas imaginárias concebidas numa época em que se acreditava que o tempo era uma medida absoluta. Einstein provou que estávamos todos errados...

Ainda adolescente, o gênio alemão lutava com a questão de como uma pessoa veria um raio de luz se viajasse exatamente à mesma velocidade da luz. Segundo Newton, o viajante veria uma onda de luz “estacionária”, e poderia até mesmo estender o braço e recolher um punhado de luz imóvel, como se recolhe a neve aqui na Terra. Ocorre que, segundo as equações de Maxwell para o comportamento da luz, ela jamais poderia algum tempo estar parada, sem se mexer. A luz era como um tigre selvagem que jamais poderia ser domado. Einstein descobriu um grande paradoxo.

Para compreendermos melhor o problema, imaginemos que Calvin acabou de ganhar um trenó com propulsão nuclear. Ele decide então aceitar o maior de todos os desafios e apostar uma corrida com um raio de luz. A velocidade máxima de seu trenó é de 800 milhões km/h, contra 1,08 bilhão km/h da luz, mas ele é um garotinho destemido e aceita o desafio. Haroldo, seu tigre de estimação, está atento com um relógio atômico altamente preciso, e anuncia a largada!

Para cada hora que passa, Haroldo percebe que o raio viaja a 1,08 bilhão km/h, enquanto o trenó de Calvin, conforme o previsto, não passa dos 800 milhões de km/h. Segundo a doutrina newtoniana, o tempo é uma entidade absoluta, e dessa forma Calvin concordaria com seu tigre em que o raio tem se afastado dele, desde a largada (desconsideremos a aceleração inicial), a precisamente 280 milhões km/h, a diferença entre as duas velocidades...

Mas, em seu regresso, Calvin está irritado e não concorda de modo algum. Ao contrário, desanimado e acusando a luz de ser trambiqueira, ele diz que por mais que apertasse o acelerador de seu trenó nuclear, o raio de luz continuava a se afastar dele a 1,08 bilhão km/h e nem um pouquinho a menos. Haroldo o aconselha a se acalmar e diz que a luz não é trambiqueira, o tempo é que é relativo!

A explicação de Einstein para tal paradoxo é a de que as medições de distâncias espaciais e durações temporais realizadas pelo relógio de pulso de Calvin são diferentes das de Haroldo, e isso nada tem a ver com o fato de ele estar usando um relógio mais preciso... A divergência entre tais medições só podem ser explicadas pela doutrina einsteiniana onde o tempo não é mais absoluto, mas relativo ao observador.

A velocidade da luz, ela sim, é absoluta e constante, já o próprio espaço e o próprio tempo dependem do observador. Cada um de nós leva o seu próprio relógio, seu monitor da passagem do tempo. Todos os relógios tem a mesma precisão, mas quando nos movemos, uns com relação aos outros, os relógios não mais concordam entre si. Perdem a sincronização. O espaço e o tempo ajustam-se de uma maneira que lhes permite compensar-se exatamente, de modo que as observações da velocidade da luz sempre dão o mesmo resultado, independente da velocidade do observador.

Newton achava que esse movimento através do tempo era totalmente independente do movimento através do espaço. Einstein descobriu que eles são intimamente ligados. A descoberta revolucionária da relatividade especial é esta: quando você olha para algo, como um trenó nuclear estacionado, que, do seu ponto de vista, está parado – ou seja, não se move através do espaço –, a totalidade do movimento do trenó se dá através do tempo. O trenó, a neve, o tigre, você, sua roupa, tudo está se movendo através do tempo em perfeita sincronia. Mas, se Calvin voltar a acelerar o trenó, parte de seu movimento através do tempo será desviada para o movimento pelo espaço. Por fim, a relatividade especial declara a existência de uma lei válida para todos os tipos de movimento: a velocidade combinada do movimento de qualquer objeto através do espaço e do seu movimento através do tempo é sempre precisamente igual à velocidade da luz.

Você pode até se imaginar parado, mas mesmo o monge budista meditando no templo mais afastado do Butão tem o seu corpo em constante movimento através do espaço. Ainda que a gravidade o prenda a Terra, a Terra está girando em torno do Sol em extrema velocidade, e o Sol, por sua vez, gira em torno do centro da Via Láctea – a nossa galáxia –, e nossa galáxia inteira vai de encontro a Andrômeda [1], e todas as galáxias se movem em torno de conglomerados inimagináveis aos mortais (embora alguns físicos tentem imaginar seriamente o tamanho do infinito)...

Mas, ainda que por milagre o monge atingisse algum espaço perfeitamente estático do Cosmos, ainda assim estaria se movendo a precisamente 1,08 bilhões km/h pelo tempo, na crista das ondas de luz.

Já a própria luz, que sempre viaja à sua velocidade através do espaço, é especial porque sempre opera a conversão total da velocidade do tempo para o espaço. Isso significa que o tempo pára quando se viaja a velocidade da luz através do espaço. Um relógio usado por uma partícula de luz não anda. Os fótons lançados no espaço-tempo tem a mesma idade desde o Big Bang, eles operam no reino da eternidade [2].

Embora não possamos nunca realmente nos aproximar da velocidade da luz mantendo a matéria que nos forma intacta, existe algo de profundo e assombroso nesta visão do mecanismo cósmico. Desde que despertamos para a vida consciente, temos nos perguntado de onde viemos e para onde vamos, e alguns de nós tem tido um contato mais estreito com a própria eternidade que nos cerca – uma essência misteriosa que parece permear todas as coisas, e lhes dar forma e informação.

Para estes, a busca pela eternidade, pelo retorno as origens, ao reino do que não foi nem será, mas simplesmente é, nesse exato momento o é, essa busca se torna uma perseguição implacável... Por outro lado, através da racionalidade, terminamos por desvelar os segredos da própria luz, por retirar o próprio tempo de seu pedestal absolutista. Terminamos por perceber, por uma via completamente distinta, que a eternidade está espalhada por todo o lugar. Nós a percebemos com os olhos – os fótons são eternos [3].

» Na continuação, a ilusão persistente do tempo...

***

[1] Nossa galáxia e a de Andrômeda fazem parte do Grupo Local de galáxias em nossa vizinhança cósmica. Mas não se preocupem, ainda vai demorar muito, muito tempo, para que as galáxias se choquem...

[2] A noção de que o tempo para a velocidade da luz é interessante, mas é importante não exagerar quanto às implicações desse fato. A perspectiva “atemporal” do fóton limita-se a objetos sem massa, o que está limitado a uns poucos tipos de partículas.

[3] O exercício mental do trenó nuclear e várias citações e informações científicas descritas neste artigo são fruto direto da leitura de “O tecido do cosmo” (Cia. das Letras), do físico Brian Greene. Recomento sua leitura para um aprofundamento científico (e muito mais embasado, nesse sentido) do assunto.

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Crédito das imagens: [topo] Paul Souders/Corbis; [ao longo] Bill Watterson (Calvin e Haroldo).

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19.5.11

The messenger of the skies

(translated by the author from the orginal portuguese tale, “O mensageiro dos céus ”)

Near two thousand years ago, a sexagenarian tibetan buddhist, who had a great number of followers, decided to travel from his home Tibet to the southwest corner of Asia. The buddhist would only carry his clothings, his wooden staff and one young follower… Very few persons on the village knew what the old monk would do so far away from there, but some speculated that he were following a message of the spirits; And would cross huge distancies in the name of faith: the message said that the messenger of the skies, the real son of God, were among the men of the world; And soon he would reveal himself, changing forever the sad and confused heart of the humanity.

Ayatsu was the chosen one to follow the monk. He were still young and very happy with the glorious destiny of not only know the distant lands of the world, but to also see the son of God! After years of wandering, they finally arrived on the city of Jerusalem. There they found another old buddhist, who came from Tibet previously. This other monk said that he had given up the seek; After all, it was impossible to find one man in a so extensive region… Later he came back to his native land.

After some time of reflection, the monk had an idea and followed it: he assembled a tent at one of the city entrances and ordered Ayatsu to spread the notice that on this tent they were hiring miserables and shepherds for working as employers at rich houses. In the other day there was a small row of men outside the tent. The monk said to Ayatsu that he would kneel down and worship each man that enter the tent as the son of God, but only a specific reaction from one of them would indicate that he is realy the man from the skies.

During that day and others, and weeks, and mouths, no man reacted by the adequate form… So finally the monk gave up and decided to return to Tibet. Ayatsu tried to imagine what type of reaction would reveal the son of God: to shine as the Sun? To levitate? To do some miracle?

After years they returned to Tibet. The monk was already conformed and did not hope to ever find the messenger of the skies. However, in a sunny morning, a man of judish appearance, brown hair and beards, green eyes, and wearing light clothes of hot colors, appeared at the entrance of the monastery where the monk lived. He spoke:

-I came to learn your religion. I don`t look for nothing instead of your knowledge.

Enraptured, the olk monk kneeled down at the front of the man; And the man, uncomfortable with the act of the monk, kneeled down too. So, the monk leaned his head on the ground, and were imediatelly followed by the man. With enormous joy inside his heart, the buddhist looked to the eyes of the stranger and said:

-You are the lord of all of us, the messenger of the skies!

With a face full of peace, the man aswered:

-No. I`m nothing more than you or any other man of the world, all of us have a little piece of God inside ourselves. We are all sons of God. What I have done was to look deep inside my heart, and discover the truth about all wonderful things that compose the creation, the everything.

raph'96

***

Thanks to JanAnn (writer32) for his aid by reading the portuguese version of this tale and helping me to translate it the way it should be translated. Hope you like this final version.

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Image credits : Wikipedia (early christinanity)

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Links Mayhem (14)

17.5.11

Palavras de Oxalá dos Ventos

Os ventos sopram, e sopram, e não param de sôpra
Os ventos sopram em tudo quanto é lugá
E vocês, gente de outras terra, além do
Acham que são dono du mundu, que são mais antigu que nós
Que foram à primeira tribo, só que não foram
E sabem que não foram, não é mesmo?

Quando vocês vieram com seus navio nêgro
E seus pensamentos nêgro, e suas correntes nêgra
Escravizá nossa gente, separar nossas famílias, nossas tribos
Vocês diziam ser uma outra raça, de tribo superiô
E diziam que meu povo negro não tinha alma
E que eu, Oxalá dos Ventos, não tinha força
Mas eu vi, e quem era bom viu comigo
Que meu povo tinha alma grande em pele negra
E vocês tinham a pele branca, e a alma tão nêgra
Nêgra que nem seus pensamentos, meus fiô...

Que vocês também são meus fiô, fiô dos fiô que saíram daqui
Há muito, muito tempo, pelos desertos do norte
E eu não pude seguir vocês, meus fiô
Porque meus ventu não corta deserto
Nem meu amô aguenta tanta secura!

Mas aqui em nossa casa, aqui nesse canto da África
Cada irmão de vocês aprendeu há muito tempo
A respeitar, a guardar a natureza nu coração
Tem irmão de vocês que guardava uma montanha
Uma floresta, um lago, um rio...
Tudo, tudo nu coração
Tudo, tudo odara nu coração dus irmão

Mas nos seus navios nêgro, de corretes nêgra
Meu povo sofreu muito, e não conseguiu guardá quase nada
Não tinha mais montanha, nem floresta, nem lago, nem rio...
Quem salvô nossa cultura foi eu e o
Eu ventava para que os navio chegasse logo, e houvesse menos
E o chorava, e do choro do meu povo se alimentava d’noitê

(e ventou, e ventou, e ventou...)

Os ventos sopram, e sopram, e não param de sôpra
Os ventos sopram em tudo quanto é lugá
E meu povo foi parar do outro lado do
E teve de lutar, lutar por muito tempo
Para provar que tinha alma
E que tinha a pele negra, a pele odara...
Porque protegia a alma grande
De todo nêgro do pensamento da gente de alma pequena

E a maior , meus fiô
Não era a do chicote nem da morte
Mas da saudade, saudade de todas essas tribos
Que ficaram do outro lado do

Mas saibam, saibam meus fiô
Que eu sou forte, que eu venci
Pois que vento que sopra aqui,
Também sopra acolá
E a essência da alma do nosso povo
É assim como eu
É como o ventu...

Epa Epa Babá, Oxalá de todos os ventos, ventos da terra, ventos do mar!


Um conto inspirado em Oxalá. Através de raph em 2011.

***

» Parte da série "Voz dos Orixás"

Crédito da imagem: Carolina Harte

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16.5.11

Fragmentos de Pessoa

Textos de Fernando Pessoa em "Teatro do Êxtase” (Ed. Hedra) – Organização por Caio Gagliardi.


2º – Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...

1º – Fora daqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco! O mar de outras terras é belo?

2º – Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca.

Diálogo entre duas personagens sem nome, em “O marinheiro (drama estático)”.

***

I.

B – Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado... Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus e toma as minhas mãos nas tuas... Assim... Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa... e pensa... Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem... Assim, amor... Não movas nem o corpo nem a alma...

(uma pausa)

B – O que sentiste?

A – Primeiro nada... Foi um espanto de ti e de mim... Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais... Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma de poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estava muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror – ah, já não poder senti-lo! – é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentro não do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como. [...]

B – (numa voz muito apagada) Depois? Depois?

A – Depois desci... Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz meu caminho... É como se se abrisse no escuro um vácuo. Um súbito pavor de uma Porta... Assim no meu pensamento uno, vácuo abstrato, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstrato e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu... E eu desci, ao contrário do que se desce – ao contrário por dentro do ao contrário...

II.

B – Assim, separados, amar-nos-emos sempre. A ponte entre nós será a curva do céu, e assim o nosso amor será eterno. Possuir-te era já o caminho de perder-te. Viver contigo era a maneira de te ir esquecendo.

O que concluir de tudo isto? Nada. Dissemos muitas verdades mas elas contradizem-se umas às outras.

Os sonhos quando passam na água são repuxos também porque a gente pode senti-los do mesmo modo. Quando a gente os sente, se depois fechar os olhos, aquilo que se sente transforma-se em repuxos que a gente vê. Eu acho que [há] muito a explorar nas nossas sensações. Há grandes interiores de continentes dentro de nós, com mistérios a desvendar. Quem sabe, amor, se raças diferentes das nossas habitarão esses sítios desconhecidos (inexplorados)? Habituei-me sempre a olhar para as minhas sensações como para uma coisa exterior.

A – De que havemos de falar?

B – De qualquer coisa. Do mistério das coisas e das formas das flores. São coisas iguais quando a medida é Deus. O mistério das coisas [...] E as formas das flores foram os primeiros contos de fadas.

A – Ás vezes, quando acordo de noite, sinto parar de repente, para que eu não vá ouvi-lo, o ruído das mãos que estão tecendo o meu destino. Vejo no ar fragmentos do meu futuro, rápidas sombras, e tendo uma vaga intuição da unidade divina do meu ser. Eu sou uma frase divina com um sentido que me escapa.

III.

B – Para onde viraste tu?

A – Não me virei para parte nenhuma.

B – Viraste-te... Um arrepio pela minha espinha sentiu que te viravas... Percebi logo que o fazias... Viraste-te para o lado donde sempre está chegando Deus...

A – De que lado é que Deus está sempre chegando?

B – De todos e de nenhum... Por isso quando te viraste para lá não fizeste movimento nenhum com o corpo...

A – Como soubeste então que eu me tinha virado?

B – Deus é que soube; não fui eu.

Diálogo entre duas personagens sem nome, ao longo de três trechos distintos, em “Diálogo no jardim do palácio”.

***

Príncipe – Vou morrer.

X – Não, meu Senhor...

Príncipe – Sim, vou... Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz... Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as coisas que se cansam de eu as ver... Começo a morrer nas coisas... O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito... Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.

X – Isso é belo demais para que possais estar perto da morte...

Príncipe – É belo demais para que possa lembrar à vida... A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira... As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem-me extraordinariamente nítidas, evidentes demais... A seda dos cortinados deste leito é uma outra espécie de seda... Afundo-me pouco a pouco... Não te entristeças... Eu era real demais para poder reinar algum dia... O único trono que mereço é a morte... Não dizes nada?

X – Senhor, não morrereis...

Diálogo entre o príncipe e seu confidente desconhecido, em “A morte do príncipe”.

***

Crédito da foto: Mauricio Abreu/JAI/Corbis (Azores/Portugal)

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14.5.11

Algo existe

Ó príncipe, tu me pede para resolver
Essa tua angústia do ser
Mas eu tudo que sei, é que nada sei
Que poderia então lhe dizer
Senão que aquilo que sei
É tão somente que há algo a existir
Que sabe, antes mesmo de eu saber
Que é, antes mesmo de eu ser
Que já o era, na noite ancestral
Antes do primeiro sol luzir
E da primeira vida sentir

Logo tu, que tem buscado tanto
Que até o nascer do dia viajou
Conquistando, com teu exército, tudo por onde passou
Já deveria ter encontrado algum encanto
Uma oração, ou poesia que seja
Que te permitisse a própria alma enxergar
Para saber que tais respostas
Não estão sequer além do mar

Ó príncipe, tu que acreditou que poderia
Converter todo mundo a tua imagem
Logo tu, jamais suspeitou do que não sabia
Que tua armada tem somente circundado a margem
Do infinito reino submerso
No oceano de um verso:
“Algo existe no arcabouço da tua vontade”

Aí está toda riqueza
Aguardando tua conquista
Ainda antes do teu coração
Fundo, no alçapão da mente
Esteve tal centelha a existir
Em delicada beleza
Bem debaixo da tua vista

Logo tu que marchou
Até a fronteira deste mundo
Jamais percebeu, jamais sentiu
Toda essa misteriosa vontade
Que arde no tempo sem idade
E, tal qual chuva caudalosa
Nos irradia profunda calmaria
Até que toda angústia cesse
E todos os pontos estejam igualados
E todos os pensamentos de amor
Percam-se ao céu, como seres alados

Ó príncipe, abra os olhos e veja
Que afinal existe algo
E toda nossa angústia perante o nada
Será nalgum dia tão relevante
Quanto o choro de uma criança
Ao finalmente perceber
Essa tal fronteira do ser


raph'2011

***

Crédito da imagem: Angelo Hornak/Corbis (tumba do filho de Napoleão, esculpida por Joseph Edgar Boehm - o personagem não tem relação com o poema, a imagem, sim)

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13.5.11

Nusrat, o mago da voz

Teoria

Os sufis dizem que assim como no corpo físico de um indivíduo muitos germes nascem e se desenvolvem como seres vivos, de forma análoga, existem também muitos seres no plano mental, chamados muwakkals ou elementais. Estes são entidades ainda mais etéreas nascidas do pensamento humano, e assim como os germes vivem no corpo humano, tais elementais sobrevivem de seus pensamentos. Segundo os místicos do Islã, o homem muitas vezes imagina que seus pensamentos não têm vida; ele não percebe que eles são mais vivos do que os germes físicos, e que eles também passam por nascimento, infância, juventude, velhice e morte. Eles trabalham contra ou a favor dos homens de acordo com sua natureza. Os sufis afirmam que os criam, elaboram e controlam. Um sufi os repete e os educa através de sua vida; ele forma seu exército e subjuga seus desejos.

Canal

Ustad Nusrat Fateh Ali Khan foi um músico paquistanês que atingiu uma projeção internacional nas décadas de 1980 e 1990 através de colaborações com Michael Brook e Eddie Vedder. Era mestre de qawwali, um estilo musical sufi. Foi listado na revista Time em 2006 na lista de "Heróis da Ásia". Considerado um dos maiores cantores que já gravaram, tinha uma amplitude vocal de seis oitavas e conseguia cantar com fortíssima intensidade durante várias horas. Para muitos de seus fãs e dos grandes entendedores de música, a voz de Nusrat foi o mais próximo que já chegamos de ouvir um som, ou quem sabe um eco, um muwakkal, diretamente do Céu.

Prática

Nusrat e outros magos entoando "Sanson Ki Mala Peh Simrun":

***

Mais vídeos sobre Nusrat:

» Show ao vivo no Brasil, em 1994 (TV Cultura)
» Show ao vivo com Peter Gabriel e outros artistas (VH1, a música é "In Your Eyes", de Gabriel)
» O Rei do Qawwali (documentário em inglês)
» Nusrat, a Voz do Céu (documentário em inglês)

***

Crédito da foto: Divulgação (Nusrat Fateh Ali Khan)

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Não há fronteiras

Ainda me lembro da primeira vez que subi ao Platô, uma das montanhas turísticas de Monte Verde, adorável cidadezinha do sul de Minas Gerais. Além da bela visão das montanhas da Mantiqueira, tive a oportunidade de colocar um pé no estado de Minas e outro no de São Paulo, visto que a fronteira entre os dois estados passava exatamente por aquela pedra. Eu talvez fosse muito pequeno na época, ou talvez simplesmente não tenha dado a importância ao assunto, mas fato é que, em realidade, não havia fronteira alguma ali. A única fronteira estava em nossa própria mente, na crença de que haviam fronteiras – quando nada mais havia além de vento, pedras e tufos de grama...

Na época do advento do cristianismo, os primeiros e talvez mais fiéis seguidores dos ensinamentos de Jesus foram nomeados pelos romanos como gnósticos, embora eles mesmos se intitulassem cristãos. Sabe-se que, segundo o Evangelho de Tomé – um dos taxados mais tardiamente como apócrifo, e que foi descoberto em Nag Hammadi no século XX –, o reino de Deus pode ser encontrado debaixo de alguma pedra ou dentre um galho seco partido. Isso nada mais era do que uma metáfora, certamente bem profunda e além de análises superficiais, que demonstrava que nada poderia estar efetivamente “fora de Deus”.

Estando Deus em toda parte, a edificação de grandes templos e catedrais não seria de maior valia, para nosso reencontro com seu reino, do que uma edificação mental, uma guinada de nossa própria consciência na direção do infinito... A fronteira para o reino de Deus estava em toda parte, e em parte alguma – pois que era essencialmente um estado da consciência humana.

Para o imperador Constantino, não era interessante que o cristianismo recém instalado em Roma permitisse esse tipo de religiosidade liberta. Isso ameaçaria a autoridade dos eclesiásticos e, por tabela, a autoridade do próprio imperador, que no fim das contas era a autoridade por cima dos eclesiásticos. Por razões parecidas, muitas igrejas têm se mantido pelo dogma de que formam uma comunidade de escolhidos por Deus (do grego ekklesia), e que toda a autoridade pertence aos eclesiásticos, que falam em nome de Deus – por mais absurdo que isso soe para um cristão antigo (um gnóstico).

Mas a religiosidade, a religação (do latim religare) as nossas origens – ao Cosmos ou a Deus –, não necessita desse tipo de intermédio. Muito embora seja perfeitamente compreensível que mentes afins desejem se reunir para discutir sua própria crença em conjunto (os gnósticos, os místicos judeus, os filósofos gregos, os monges budistas, todos já tinham essa prática...), essa concepção pode ser facilmente extrapolada quando um dos religiosos pretende falar em nome dos demais, ou pior, em nome de Deus. Foi dessa forma que nasceu, por exemplo, o conceito absurdo de guerra santa – uma matança desenfreada em nome de Deus, uma ignorância suprema das leis cósmicas.

Por isso que, embora todos os eclesiásticos sejam religiosos, nem todos os religiosos estão associados a uma igreja ou doutrina em específico. Há muito religiosos que, tal qual os gnósticos, ainda conseguem ver o reino de Deus em toda parte. Para estes, não há fronteiras.

Com a radicalização das doutrinas eclesiásticas na época medieval, o racionalismo científico, que já houvera florescido na Grécia e diversos outras regiões do mundo antigo, renasce em todo o seu esplendor, junto com a arte, a literatura e os novos ideais de humanismo e liberdade de pensamento. Há muitos racionalistas que, até hoje, creem piamente que toda religião é um veneno para a mente, e que somente a razão científica deve ditar os rumos de nossa cultura e sociedades. Eles também se alistaram para uma guerra santa, não em nome de Deus, mas em nome da Natureza, em nome de uma estranha ideia que mistura ciência, racionalismo, ceticismo e negação radical da subjetividade... Obviamente, não poderia ter dado certo.

Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês, questionava-se se não era possível que sua atividade como observador puramente racional e objetivo da natureza, ou seja, sua atividade científica – conforme a ciência era erroneamente interpretada já em sua época –, pudesse limitar o seu potencial como ser humano pleno. Mais recentemente, Paul Feyerabend, filósofo da ciência austríaco, valeu-se do pensamento de Kierkegaard para sua feroz crítica a metodologia científica moderna, excessivamente metódica, sem praticamente nenhum espaço para a subjetividade: “Será que a ciência como a conhecemos hoje, uma ‘busca pela verdade’ no estilo da filosofia tradicional, criará um monstro? Não será possível que uma abordagem objetiva que desaprova contatos pessoais entre entidades irá prejudicar as pessoas, torná-las miseráveis, hostis, criando mecanismos moralistas desprovidos de charme e humor? Eu suspeito de que a resposta para muitas dessas questões seja afirmativa e eu acredito que a reforma das ciências para torná-las mais anárquicas e mais subjetivas (em um sentido Kierkegaardiano) é urgentemente necessária.”

Feyerabend estava especialmente preocupado com o fato do pensamento existencial, espiritual, filosófico, estar sendo ignorado pela nova geração de cientistas que emergiu após o fim da Segunda Guerra, em plena era da corrida nuclear: “O isolamento da filosofia em uma casca ‘profissional’ própria têm trazido consequências desastrosas. A jovem geração de físicos, os Feynmans, os Schwingers, etc., podem ser brilhantes; eles podem ser mais inteligentes que seus predecessores, do que Bohr, Einstein, Schrödinger, Boltzmann, Mach e outros. Mas eles são selvagens não-civilizados, lhes falta a profundidade filosófica – e esse é o erro da própria ideia de profissionalismo que vocês hoje defendem”. Embora possa ter sido um tanto radical, a mensagem de Feyerabend atingiu um cheio a Academia, bem em seu ponto fraco e obscuro.

Ocorre que a Academia, ou o grupo de cientistas que nomeou a si mesmos como “escolhidos da Natureza”, nada mais era do que o outro lado da moeda neste interessante jogo entre as autoridades eclesiásticas e acadêmicas que tem sido jogado no Ocidente há mais de um século. Da mesma forma que os imperadores de outrora decidiam qual texto seria sagrado, e qual seria apócrifo, quais religiosos seriam salvos, e quais seriam perseguidos e esquecidos pela história (que eles próprios escreviam), alguns dos acadêmicos de hoje em dia tem tratado de tornar a ciência – a observação e o conhecimento da Natureza – uma espécie de ideologia associada à racionalidade e objetividade extremas. Dessa forma, puderam decidir, por exemplo, que Darwin e não Wallace deveria ser lembrado pela teoria da evolução (embora sejam co-autores, Wallace era espiritualista); que a ciência ocidental deveria ter preponderância sobre as outras, que foram chamadas de alternativas ou pseudo-ciências (embora a acupuntura já seja largamente utilizada no Ocidente, inclusive em animais); que todo e qualquer estudo científico que sugerisse a existência da alma fosse tratado como algo apócrifo (embora até mesmo Carl Sagan tenha admitido que o estudo com crianças que lembram vidas passadas seja intrigante).

Obviamente, e felizmente, os acadêmicos são ainda civilizados o suficiente para atacar os de pensamento contrário apenas no campo das ideias e no escoamento de verbas para pesquisas – ainda não se teve notícia de cientistas queimando religiosos em fogueiras... O importante é que não se pense a ciência e a religião como áreas hermeticamente separadas. Assim como Einstein e Bohr foram profundos conhecedores e admiradores de doutrinas espiritualistas (o deísmo espinosiano e o I Ching, respectivamente), não há nenhum bom motivo para os cientistas de hoje tratarem da religiosidade como algo apócrifo.

A questão não é se a verdade está no dogma eclesiástico ou no método acadêmico, se está na religião ou na ciência, na objetividade ou na subjetividade. A verdade é que não sabemos toda a verdade, e talvez jamais saibamos – ou, ainda que ela nos chegue por algum texto sagrado ou mensagem extraterrestre, não a saibamos interpretar corretamente.

A única verdade é que o Cosmos é algo muito, muito grande. Que a Natureza jamais nos deixará relaxar. Que ainda temos muito, muito o que desvendar dentre átomos e quarks, galáxias em agrupamentos inimagináveis, e delicadas e fluidas engrenagens de pensamento. Seja você um jovem acadêmico, teólogo, artista, filósofo, ou neófito (e, de certa forma, todos o somos), a verdade é que não há fronteiras neste reino.

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Crédito da foto: Niels Sörensen (vista do Platô em Monte Verde/MG).

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