Este artigo é um adendo da série "Reflexões sobre o tempo".
Alguns de vocês podem ter passado desapercebidamente pelo que acabei de falar sobre o tempo, mas ainda outros podem ter ficado profundamente absortos nos paradoxos transcritos. Podem ter percebido que a luz eterna – não apenas os fótons, que estão entre os cerca de 4% da matéria que podemos detectar, mas a outra luz também – paira por todo o Cosmos e que para ela a formação da primeira galáxia, da primeira estrela, do primeiro átomo de carbono, pode ser tão relevante quanto os fogos de artifício de uma festa de ano novo qualquer em alguma praia deste mundo. Ou que, mesmo tendo percebido isso de relance, seja pela filosofia, pela ciência ou pela religião, ainda não conseguimos fugir do problema do tempo, tão bem descrito por Agostinho há séculos atrás. Ainda outros podem ter passado pelo apocalipse dos rapanui, apenas para terem o pensamento renovado pelo fogo... É tão difícil dizer, como saber o que o outro pensa? Cada um de nós é uma substância a parte, uma forma do Cosmos saber sobre si mesmo.
Há quase um ano, eu escrevi um texto sobre o mito da criação, e confesso que não o compreendi por completo, mas agora este trecho começa a fazer sentido:
Seu plano para cada universo era cuidadosamente elaborado em sua mente, entre os momentos em que apenas refletia sobre si mesmo...
Cada universo tinha uma substância, e essa substância os preenchia por completo – cada estrela, planeta e partícula.
E para que houvesse movimento, o Ser permitiu que a substância fosse maleável.
E para que os seres conscientes que brotassem pudessem renascer quantas vezes fossem necessárias, o Ser permitiu que a maleabilidade da substância construísse uma sequência de eventos na consciência dos seres.
E para que tudo não fosse determinado, o Ser permitiu que um átimo dessa maleabilidade ficasse a cargo dos pensamentos e da vontade dos próprios seres conscientes.
Ora, muitos foram ensinados a imaginar o universo como uma explosão, as vezes usa-se a imagem de uma bexiga de ar para explicar como o próprio tecido do espaço-tempo se expande. Estamos nos afastando de todo o restante, independente de estarmos parados ou não – mas nada está parado. De fato, esse crescimento foi tão rápido no início, que grandes porções do universo estão além da nossa fronteira de observação, mesmo na velocidade da luz jamais chegaríamos do outro lado. Se o universo não for infinito, isso pouco faz diferença para nossa compreensão atual...
Mas essas imagens são falhas num sentido profundo: jamais poderemos observar a bexiga do lado de fora. Estamos dentro da explosão, a homogeneidade da radiação de fundo cósmica já comprovou isso. Como minúsculas partículas de poeira, somos empurrados para lá e para cá em meio ao turbilhão de uma substância infinita, que parece ter uma sede de ser cada vez mais infinita – se é que isso faz algum sentido.
A grande questão é que aparentemente nós temos um papel de certa relevância nesse plano cósmico. Os estoicos estavam corretos ao dizer que não deveríamos nos angustiar com tudo aquilo que não podemos decidir – e são muitos os eventos que nos fogem o controle –, mas eles nos lembraram de que existem coisas que podemos decidir. Existem corpos, existem mentes, existem almas, existem eventos, existem partes da substância que nos foram ofertadas... O que faremos com tamanha responsabilidade?
Franz Bardon foi um ocultista checo do qual – apesar de sua enorme popularidade entre os estudantes de magia da atualidade – pouco sabemos por certo de sua vida, além dos grandes livros que nos deixou. Em “Magia prática” (recomendo a tradução da Ed. Ground, de Inês Lohbauer), ele nos traz uma série de rituais mentais que, quase que certamente, aprendeu em alguma montanha distante do Oriente. Num deles em específico, há uma curiosa analogia com o que viemos estudando acerca do tempo e de como o percebemos através de nossas mentes. Primeiramente, ele nos fala sobre a curiosa função de nosso subconsciente – nosso inimigo a viver nalgum tempo oculto:
“Aquilo que na consciência normal entendemos como pensamento, sentimento, vontade, memória, razão, compreensão, reflete-se no nosso subconsciente como um efeito oposto. Do ponto de vista prático podemos encarar nosso subconsciente como nosso oponente. A força instintiva, ou o impulso a tudo aquilo que não queremos, como por exemplo, nossas paixões incontroláveis, nossos defeitos e fraquezas, nascem justamente dessa esfera da consciência.”
Não tenho certeza se isso ficou bem explicado, mas reconheço que é algo bastante complexo de explicar por palavras, então prefiro não me arriscar a complementar Bardon. Prossigamos adiante, quando ele nos fala do ritual mental de auto-sugestão:
“Na maioria dos casos, principalmente numa vontade fraca ou pouco desenvolvida, o subconsciente quase sempre consegue nos pegar de surpresa ou provocar um fracasso. Se ao contrário, na impregnação do subconsciente com um desejo nós lhe subtrairmos o conceito de tempo e espaço, o que passa a agir em nós é só a sua parte positiva.
[...] A fórmula escolhida para a auto-sugestão deve ser obrigatoriamente mantida na forma presente e no imperativo. Portanto, não se deve dizer: “Eu pretendo parar de fumar, de beber”, mas sim, “Eu não fumo, eu não bebo”, ou então: “Não tenho vontade de fumar, ou de beber”, conforme aquilo que se pretende largar ou obter pela sugestão.”
Para quem acreditava que magia significasse rituais com velas negras e invocações de seres sobrenaturais, essa descrição de ritual mágico de Bardon pode parecer um tanto quanto sem graça... Mas, pensem novamente: vivemos cercados por um oceano cósmico de infinita beleza, e pela luz eterna, a cada momento do tempo, e quão poucos tiveram ainda olhos para ver tudo isso, sequer de relance!
Obviamente que o ritual de Bardon, que alguns mais desaforados poderiam chamar de catalisador de efeitos placebo – sem estarem longe da razão, diga-se de passagem –, não nos servirá para tudo aquilo que os estoicos incluíram na lista do que não nos cabe a decisão. Servirá, portanto, para o autoconhecimento, o desenvolvimento da sabedoria, da sensibilidade, da criatividade, até mesmo do amor – mas de nada servirá para ganharmos na loteria, ou conquistarmos alguma amante (os amantes tem vontade própria). O que se tira disso tudo: que seu ritual serve para muita coisa.
E é precisamente aqui que me foi pedido para complementar tais ensinamentos vindos de algum canto do Oriente...
Ora, se existe certo grau de incerteza acerca de como a substância se movimentará a seguir – e a física quântica tem nos comprovado isso a décadas –, então talvez a existência não seja o mero agitar de partículas aleatoriamente, tampouco uma determinação estrita de um grande diretor de cinema cósmico, talvez afinal nossa vontade faça alguma diferença neste turbilhão!
Mas, curioso de se pensar: a maior parte de nossos desejos, a grande parte de nossa vontade, se sintoniza exatamente aos eventos que não nos cabe decidir. De nada adianta, portanto, se aventurar pelo ritual de Bardon sem primeiro compreender, de verdade, o que os estoicos diziam a tanto tempo. Só nos compete moldar o mundo naquilo que nos é dado decidir, no tempo em que dispomos para tal.
Será então, tanto mais difícil, imaginar as conquistas do ponto de vista do conquistador, sentado em seu grande trono. Talvez Bardon tenha esquecido que nem todos tinham o seu grau de vontade... Que não se imagine, portanto, “eu não fumo”, mas que se imagine cada passo dado nesta empreitada, cada olhadela para um maço sem que tenhamos pensado “e onde estará meu isqueiro?”. Que não se use a mente para visualizar um grande ser amoroso que nos empresta apenas a face, mas que se pense com cuidado em cada pequeno desafio de caridade que nos espera.
Dessa forma, quem sabe, até mesmo o inconsciente, até mesmo o tempo oculto, venha em nosso auxílio. Não após a conquista, num tempo ainda imaginário, mas nesse exato momento – no momento em que planejamos nossa jornada de autoconhecimento, nosso lampejar de consciência.
Que nosso inimigo jamais nos quis mal, ele tão somente serve de contrapeso para nossa longa jornada. Como um arquirrival, um Lúcifer que se presta ao papel de bode expiatório, até que tenhamos consciência de que toda a ignorância sempre partiu de nós mesmos – e não poderia ser de outra forma, que não nascemos sabendo, nem fomos programados para a perfeição.
Quem diria, quem diria que a substância, além de tão bela, ainda nos teria dado tal relíquia, tal tesouro... A capacidade de conquistar a consciência por nosso próprio mérito e esforço, a divina vontade! Perto desta, nenhum tempo permanecerá oculto por muito tempo...
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Crédito das imagens: [topo] Maria Eugênia Guimarães ; [ao longo] Bardonista (foto de Franz Bardon).
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