Abrindo portas na mente, parte final
Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).
Uma semana depois, retornava ao consultório de Kátia. Naquela altura, já tinha elaborado boa parte do que havia relembrado uma semana antes, e me considerava praticamente “curado”. Não sabia exatamente o porque, mas uma intuição me dizia que “já estava bom”, que não seria mais necessário, nem recomendável, insistir em abrir mais portas da mente, em adentrar ainda outras vidas antigas... Mas Kátia não concordou, achava que era necessário prosseguir com o tratamento [1]:
Ao abrir a mesma porta imaginária, estranhamente vi um castelo, cercado por uma cidade medieval, mas em vista aérea... O que depois vim a perceber que se tratava de minha chegada a Terra, o renascimento!
Logo após vi água, mar, e um imenso casco de navio cortando a imensidão azul e provocando pequenas ondas que surgiam para logo depois desaparecerem. Estava observando o barco no qual eu era encarregado por cortar o Mediterrâneo. Tinha por volta de 30 anos, bigodinhos pontudos e ridículos (que vira no espelho), uma roupa aparentemente típica da época do renascimento europeu. E tinha um longo chapéu também, apenas evitava usa-lo quando na proa para não voar para longe...
Era empregado de uma companhia de comércio marítimo, e após algum tempo como marujo me tornei encarregado de um barco inteiro. Eu adorava velejar, ver aquelas velas imensas e decoradas com símbolos serem acariciadas pelo vento... E o mar, sobretudo amava o mar!
A impressão que tive é que passei toda uma vida a observar o mar, a navegar dentre pequenas cidades do Mediterrâneo, vivendo do comércio de alimentos e especiarias variadas. Parecia um conto de fadas a primeira vista, mas como sempre, as aparências enganam...
Infelizmente não era uma vida só de alegria. Eu havia me casado moço, e pouco antes de ganhar aquela função importante, já havia gerado seis filhos, e outros dois nasceriam depois... Mas eu usava todo meu tempo no trabalho, nas viagens, no comércio... Nunca tive muita disposição para amparar minha esposa e assistir meus filhos crescerem de perto, aquilo não me atraía, apenas o mar era meu refúgio naquele tempo.
Então minha esposa morreu doente. Eu a havia amado bastante, principalmente no início de nossa relação. Dessa vez ao menos eu soube dar valor a esse tipo de amor... Mas não fui exatamente um bom pai. Após sua morte, deixei as crianças numa espécie de orfanato, e as mantinha muito bem com o dinheiro que ganhava no comércio, apenas não lhes dava amor e atenção, exatamente o que uma criança mais precisa...
E o tempo passou, e chegava a hora de me aposentar, mas isso aconteceu antes do que eu esperava, fui simplesmente demitido de um dia para o outro. Não me faltava dinheiro, mas sentia muitas saudades do mar... E meus filhos não eram mais do que amigos distantes, já crescidos e com suas próprias vidas, e eu os entendia muito bem, claro, não tinha o que exigir deles.
Na hora da morte, constatei mais uma vez o valor do amor:
Graças a Deus, minha única filha, e ao que parece a que mais me amara, me aceitou em sua casa, e passei o final da vida aos seus cuidados. Eu aprendi a gostar dela, é claro, e a partir daí passei a lamentar meu egoísmo em relação as minhas crianças... Mas ainda havia tempo para me reabilitar: nesses anos passei a me aproximar dos meus filhos com cautela, e eles de certa forma me aceitaram. Poderia ter sido bem melhor, é claro, mas pelo menos ainda houve tempo para uma reavaliação das minhas escolhas.
E quando morri de complicações intestinais, lá estavam minha filha e mais dois filhos que puderam comparecer a sua casa no dia final. Eu morri sem tanta dor assim, pois na passagem já estava sendo auxiliado por um grupo de espíritos amigos. Minha filha, principalmente, chorou muito minha morte, ela realmente sempre me amou, e eu só lamentava por essa falha por tantos anos de minha vida, e o desperdício da oportunidade de ter criado meus filhos mais próximos de mim.
Embora não soubesse exatamente quem eram, sentia em minha alma que aqueles que vieram me buscar eram conhecidos, e não desconhecidos como os que me visitaram na vida ateniense. Isso parecia fazer toda a diferença do mundo: um ser que lamentava minha morte na Terra, que se lembraria de mim, e que deu sentido a uma vida inteira; e amigos do outro lado, amigos de outras épocas, outras vidas... O que mais eu poderia desejar? Estava começando a achar que valeria a pena continuar visitando minhas vidas passadas.
Mas isto durou pouco. Pouco antes das memórias se encerrarem, tive um pequeno vislumbre do motivo de ter vivido toda aquela vida velejando pelo Mediterrâneo... Lembrei-me, num breve relance, da vida imediatamente anterior, de ter sido um dos guerreiros cruzados, que acreditava piamente que estava seguindo aos desígnios de Cristo e da Igreja Católica ao invadir, pilhar e assassinar nas terras árabes, na dita “terra santa”. Este relance foi o suficiente para que eu desistisse de prosseguir adiante na investigação de minhas memórias.
Uma vida inteira de contemplação no mar, porque? Para que? Ora, porque, ao contrário do que os filmes de Hollywood podem fazer crer, espadas não cortavam homens como se corta manteiga, e não se mata com a mesma facilidade que um herói do cinema. Lutar nas guerras medievais mais parecia um açougue do inferno, com sangue por todo lado, gemidos de dor aterrorizantes, e cenas surreais – como procurar por amigos feridos ou mortos em meio a pilhas de corpos apodrecendo dentro de metal. Hoje, apesar de tudo, ainda se mata a distância; mas matar ao lado, isto sim, era o terror [2].
E, este sim, foi motivo suficiente para que eu interrompesse o tratamento com a Kátia, o que não me arrependo nem um pouco; embora também não me arrependa de ter iniciado o tratamento, pois acredito que tenha me auxiliado, nesta vida, de muitas formas:
Provavelmente não farei mais regressões, mas eu sabia que seria assim. Havia curiosidade, havia medo, hoje só há mesmo uma profunda fé, uma fé renovada, de que não existe nada melhor do que existir, de que não estou sozinho, e nada pode ferir aquele que ama, pois o amor é uma energia poderosíssima, escudo contra todo o mal, e combustível para qualquer realização verdadeira nessa esteira temporal, onde vidas não passam de momentos, e onde a luz irradiada dos confins do Cosmos nos aponta o caminho, sempre...
***
[1] Se por um lado, é óbvio que seria do interesse dela prosseguir com o tratamento – afinal, nenhuma terapeuta sobrevive de uma seção única por paciente –, por outro ela tinha razão no sentido de que meu tratamento psicológico ainda deveria prosseguir. O caso é que não necessariamente deveria prosseguir com mais regressões, pois elas nem sempre são somente benéficas, como veremos na sequencia do texto.
[2] É preciso explicar que tais lembranças hoje são totalmente indiretas, isto é: já as imagino como se fossem a história de uma outra pessoa, e não de mim mesmo. Isto é bem diferente do que senti no rápido vislumbre emocional, já no fim da regressão – é deste tipo de trauma que procurei me afastar. É este também boa parte do motivo do meu grande temor em me aproximar do meu Eu Superior, pois é exatamente Ele quem comporta todas as lembranças – as boas, e as ruins. Felizmente ainda O encontrei em outras oportunidades, quando estava mais preparado para encará-Lo... Mas isso é uma outra história.
***
Crédito da imagem: Paul Edmondson/Corbis
Marcadores: contos, contos (71-80), existência, festa estranha, guerra, psicologia, regressão