« continuando da parte 1
Quem já bebeu, beberá; quem já sonhou, sonhará. Nunca desistirá desses abismos atraentes, que soam insondáveis, que penetram no proibido, que se esforçam por segurar o impalpável e ver o invisível; volta-se para eles, debruça-se sobre eles, dá-se um passo na direção deles, depois dois; e é então que se penetra no impenetrável e é então que se encontra o alívio ilimitado... (Victor Hugo)
Eros: a convivência
Susana Queiroz está visitando o Butão, um dos menores e mais isolados países do mundo, fincado nos Himalaias, entre a China e a Índia. Ela entra em uma loja de artesanato local, mas não consegue se comunicar com a vendedora, que não fala inglês – e muito menos o português, idioma da brasileira que apresenta o programa “No Caminho” para o canal de TV a cabo Multishow... Susana chama por seu guia de viagem, um simpático butanês que fala o idioma local e o inglês, mas ele não responde. Fora da loja, a bela apresentadora encontra o guia falando apressadamente no celular – até muito recentemente o Butão esteve fechado à modernidade, e faz poucos anos que o celular surgiu no país.
O guia desliga o celular e tenta ignorar o assunto, mas Susana já suspeita do que se tratava: era a “nova febre” entre quase todos os jovens butaneses, as pessoas falavam ao celular para marcar encontros amorosos. A questão peculiar, nesse caso em específico, é que o guia já era casado com duas mulheres, e ainda assim procurava conhecer mais parceiras amorosas.
Desde o final de 2006, o Butão é uma monarquia constitucional, mas o chefe religioso do reino goza de uma importância quase idêntica a do rei. O Butão é um dos últimos reinos budistas do mundo...
No reino animal, a poligamia se refere à relação onde os animais mantém mais de um vínculo sexual no período de reprodução. Nos humanos, a poligamia é o casamento entre mais de duas pessoas. Os casos mais típicos são a poliginia, em que um homem é casado com várias mulheres, e a poliandria, em que uma mulher vive casada com vários homens.
Diz-se que a poliginia já foi regra nos grupos humanos em estado natural. Durante a história, ela foi amplamente usada, tendo como principal causa a grande diferença numérica entre homens e mulheres ocasionada pelas guerras. A questão sempre esteve também no centro do debate religioso. O Velho Testamento fala de um personagem como Jacó, que teve duas mulheres e doze filhos (vários deles com servas). Essa prole viria a dar origem às doze tribos de Israel.
No Islã, por outro lado, ela tem sido praticada desde sempre (o próprio profeta Maomé teve 16 casamentos simultâneos). Hoje, continua a ser adotada em alguns países muçulmanos e em processo de adoção em outros. O costume é regulamentado pelo Alcorão, que tolera a poliginia e permite um máximo de 4 esposas. Em realidade, a poliginia certamente sempre foi bem mais comum do que a poliandria. As razões são até mesmo óbvias: além do mundo ter sido por muito tempo, e em muitas sociedades, dominado pelos homens, é extremamente custoso para uma mulher manter vários casamentos, pelo menos se levarmos em consideração que ela irá gerar filhos de cada um de seus maridos.
Eu costumo dizer que não acredito em casamento. Não quero, com isso, ofender a crença e a tradição cultural dos outros, mas apenas manifestar a minha própria crença... Tampouco estou querendo dizer que não acredito no amor, na fidelidade, na possibilidade de uma união realmente estável e duradoura entre dois indivíduos. Quero apenas ressaltar que o fato de estarem casados perante Deus, perante as leis ou perante a sociedade nada tem a ver com a garantia da manutenção do seu amor. Em suma: no fundo, o que quero dizer é que acredito sim no “casamento”, mas para mim ele se chama amor. É muito simples entender: qualquer casamento durará apenas enquanto o amor durar. Vai-se o amor, vai-se o casamento, ainda que não haja divórcio, ainda que o casal continue a “viver as aparências sociais”.
Na cerimônia religiosa cristã diz-se que “o que Deus uniu o homem não separe”. Mas por vezes o homem parece viver a se dedicar exclusivamente a não seguir os mandamentos divinos. Ora, é para mim mais uma frase sem sentido algum. Melhor seria dizer, portanto: “saibam que têm nas mãos a responsabilidade de manter e edificar, todos os dias de suas vidas, esse dom divino, esse amor que sentem um pelo outro, este milagre!”.
Também se costuma encerrar com um “até que a morte os separe”. Mas, se a morte separa alguma coisa, não é o amor. O amor não é um corpo e nem mesmo um cérebro, mas uma união de almas. Mesmo Carl Sagan, que era agnóstico e não acreditava em vida após a morte, dizia que “viver na memória daqueles que nos amam, é viver para sempre”. Ora, e o que diabos a morte separa? Se ela separa alguma coisa, é porque não era amor.
Claro, existe muita confusão acerca do que vem exatamente a ser amor. Me parece que aqui estamos nos referindo ao que os gregos antigos chamavam de eros: não o deus, mas o conceito de troca de prazer entre os seres. Nesse estágio do caminho do amor, os seres não mais usam os outros como mero objeto, ou como parte de uma transação comercial, mas efetivamente trocam carinho, se preocupam tanto em dar prazer quanto em receber. Fortalecem o elo com o seu próximo um pouco mais...
É preciso, no entanto, tomar cuidado com até que ponto estarão unidos. Duas árvores podem crescer a certa distância uma da outra, e podem até fazer sombra uma à outra, dependendo do momento do dia. Mas se estiverem por demais unidas, às próprias raízes no solo irão se entrelaçar, e disputar os nutrientes, até que uma aniquile a outra, ou por vezes, até que ambas se destruam mutuamente.
Foi o grande poeta do Líbano (Gibran) quem nos alertou: “Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor um grilhão: Que haja antes um mar ondulante entre as praias de vossas almas. Enchei a taça um do outro, mas não bebais na mesma taça. Dai de vosso pão um ao outro, mas não comais do mesmo pedaço. Cantai e dançai juntos, e sede alegres, mas deixai cada um de vós estar sozinho; Assim como as cordas da lira são separadas e, no entanto, vibram na mesma harmonia” (trecho de “O Profeta”).
Muitos ditos cristãos ao longo da história se declararam escandalizados com práticas como a poligamia por outros povos. Logo depois da descoberta de Colombo, os colonizadores portugueses e espanhóis que vieram da Europa colonizar o novo mundo concluíram que esses nativos eram “pouco mais do que animais”. Ao notar que muitos nativos praticavam uma ou ambas as formas de poligamia, um ministro calvinista afirmou que não possuíam nenhum senso moral. Um médico europeu, após examinar cinco nativas e perceber que não menstruavam, concluiu que “não pertenciam à raça humana”...
Não satisfeitos em despojá-los de sua humanidade, os espanhóis começaram a dizimá-los como animais. Por volta de 1534, 42 anos após a chegada de Colombo, os impérios inca e asteca haviam sido destruídos e seu povo escravizado ou assassinado. A hospitalidade inata dos nativos não comoveu os “seres morais do velho continente”: os colonizadores matavam crianças, rasgavam o ventre de mulheres grávidas, arrancavam olhos, queimavam vivas famílias inteiras e incendiavam aldeias à noite. Entre a poligamia e a matança, acredito que Deus tenha feito uma escolha já há muito tempo, quando ainda éramos hominídios.
Mas, retornando ao Butão: eis um exemplo de sociedade onde todos vivem efetivamente livres e não parecem se “escandalizar” tão facilmente com práticas como a poligamia ou até mesmo a homossexualidade. Ao contrário de muitas outras partes do mundo, de muitas sociedades atuais ou passadas, no Butão tanto homens quanto mulheres sentem-se livres para ter quantos parceiros amorosos quiserem. No Butão se construiu uma verdadeira rede de convivência, de troca de prazer, de troca de informações íntimas, de troca de compreensão. Nesse distinto e exótico microcosmo de sociedade humana, há tantos “casamentos” quanto possibilidades de convívio amoroso, e mesmo falos e símbolos genitais são entendidos como sagrados, como formas de proteção contra os “maus espíritos”.
E quem serão os maus espíritos senão os próprios homens e mulheres no topo de seu preconceito, de sua ignorância? Se as potências do homem na visão, na audição, nos recursos imensos do cérebro, nos recursos gustativos, nas mãos, nos pés; se todas essas potências foram dadas ao homem para a educação, para a evolução no convívio com o próximo, para a compreensão cada vez mais aprofundada do amor, mereceria o sexo, e as várias manifestações sexuais onde há respeito e carinho de ambas as partes, serem sentenciados às trevas [1]?
» Na continuação, o terceiro amor: filia...
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Nota: Este artigo não deveria ser entendido como uma exaltação da poligamia. Devemos sempre, isso sim, exaltar o amor: cada pequena possibilidade de amar, amar da melhor forma possível, amar da forma que hoje temos possibilidade de amar. Sejam quantos “casamentos” forem necessários, que não se desista do amor, jamais...
[1] Boa parte desse último parágrafo foi retirada (livre adaptação) de uma das respostas de Chico Xavier no lendário programa Pinga-Fogo, em que participou nos idos de 1971.
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Crédito das fotos: [topo] Divulgação/Multishow ("No Caminho"); [ao longo] riisli
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