Texto de Rabindranath Tagore [1] em "A morada da paz” (Ed. Verus) – pgs. 129 a 132. Tradução de Ivo Storniolo.
No plano material, existe um parentesco de natureza entre os objetos deste mundo e nós mesmos. Partilhamos uma mesma textura fundamental com o pó dos caminhos, assim como com as pedras e os vegetais, os animais e a humanidade inteira. Todavia, no nível em que nosso ser de verdade intervém em sua unicidade, essa semifusão entre tudo e todos desaparece.
Nossa individualidade eterna, que pressentimos com nosso Eu, por trás de nosso pequeno eu limitado, não tem igual no universo. Na Criação infinita, cada Eu é uma criação sem precedentes; ele é Eu apenas, Eu sem igual, Eu sem termo de comparação. Apenas o mundo de nosso Eu nos pertence como próprio, e a ninguém mais é dado, senão à pessoa regenerada, penetrar em sua morada, na qual reside, a seu lado, o deus que a anima.
Com efeito, ó meu Deus, nosso Eu único, nosso Eu diferente de qualquer outro, abriga uma parcela igualmente única, perfeitamente individualizada, de ti mesmo, manifestada em tua Total-Felicidade. E jamais, em nenhum tempo, em nenhum lugar, escolheste duas expressões idênticas de tua Personalidade infinita. Assim, aquele que chamamos de Eu se verifica ser, na verdade, uma aspecto bem definido, totalmente distinto, do Jogo eterno de ti contigo mesmo. Nele, nosso pequeno eu deve aprender a se religar integralmente a ti. Desse modo, Eu e eu se tornarão um no coração do Uno.
Que nosso nascimento sobre a terra possa permitir a essa parcela da Alegria divina, que é nosso Eu, expressar com toda a consistência a grandeza, a pureza, a harmonia e a beleza que ele traz em si. Possa este ser que somos na verdade, na sequência sem fim das existências, realizar nesta vida terrestre a finalidade para a qual se encarnou.
No decorrer das eras, tu deste forma ao nosso Eu em sua unicidade. Tu mesmo o guiaste por entre sóis e luas, planetas e estrelas, e velaste para que sua identidade jamais se confundisse com qualquer outra. Desde o instante em que os primeiros elementos que o constituem jorraram de uma fonte de sutil luminosidade, no coração de alguma nebulosa transcendente, tu o conduziste, alimentaste, de mutação em mutação, de finalidade em finalidade, até que ele eclodisse em uma forma humana.
Nosso Eu, teu companheiro de sempre, cresce hoje em nosso corpo de matéria. Desde a origem dos tempos, tu lhe traças, através de toda a Criação, uma caminho que lhe é próprio, em que ele progride sem fim junto de ti. Esse “Ti” é seu Guia eterno, seu Amigo sem igual sobre os caminhos do Infinito. Possamos, Senhor, no decorrer desta existência cá embaixo, te reconhecer nesse Amigo incomparável.
Permite que jamais concedamos a nenhum ser, a nenhuma coisa, igual ou maior valor que à tua Presença em nosso coração. Permite igualmente que de modo nenhum deixemos predominar em nós o aspecto material biológico de nosso ser, pouco distinto das árvores, das plantas e dos animais de qualquer espécie. Atribuir a primazia a essa faceta de nós mesmos é uma tentação fácil, uma vez que temos em comum, com toda a forma de vida vegetal ou animal, igual necessidade de alimento, de ar e de água, pois a mesma vontade de sobreviver nos habita, e nos defrontamos juntos com os mesmos perigos e os mesmos tormentos. Também devemos pedir para que as necessidades de ordem física e material não cheguem a preencher nosso campo de consciência, a ponto de expulsar dela toda a percepção de nosso Amigo secreto – nosso Guia de todos os tempos –, que, sob forma individualizada, manifesta o Divino em nosso ser por meio de um toque, de um modo de ação, de uma felicidade – que lhe são absolutamente próprios.
Nos planos em que nos sentimos parte integrante da Criação material, nós te respeitamos, Senhor, enquanto Senhor deste mundo. Nós nos esforçamos para seguir tua Lei, porque, se a infringirmos, consequências se seguirão, e as consideraremos como castigo vindo de ti. Mas, onde existimos em nossa unicidade, procuraremos te conhecer como nosso Todo.
No nível do Eu, nos quiseste livres, porque, se assim não fosse, teu Amor não produziria frutos, e teu desejo de união e tua alegria de ser permaneceriam sem eco. Por conseguinte, o Eu, assim dotado de livre-arbítrio, só encontra tua razão de ser na plenitude de uma total comunhão contigo. É por isso que a mais intolerável angústia, nas regiões do ser que ela rege, é a de não sentir tua Presença; aí se encontra a angústia inerente ao pequeno eu. E a mais completa felicidade consiste em estar conscientemente ligado a ti; aí se encontra a felicidade que nasce do Amor realizado.
Como pôr fim à dor do eu que não se sente unido a ti? Para chegar a isso, o Buda se entregou a terríveis austeridades, e, para revelar a todos como se pode dissipar o mal da separação, Cristo deu sua vida.
Ó tu, que, mais que qualquer filho de nossa carne, és o Amado de nossa alma, tu, inconscientemente amado nas zonas invioladas de nossa personalidade terrestre, ó tu, que és a essência de todo ser e de toda coisa, é em tua Presença, na morada de nossa individualidade sem igual, que o Jogo de Ti contigo mesmo encontre sua plena realização. Contudo, enquanto não se realizar a união entre ti e nós, reinará cá embaixo um inevitável sofrimento, que parecerá se extinguir apenas para imediatamente renascer. E a morte não poupa nada nem ninguém, embora as Forças da imortalidade tentem, sem cessar, penetrar em suas camadas obscuras, a fim de iluminá-las para sempre. Senhor, por todo o tempo em que subsistir essa cisão entre ti e a consciência humana, tua Manifestação cá embaixo assumirá inevitavelmente um caráter dualista: o da dor e o da alegria, da separação e da união, da morte e da imortalidade. Contudo, todo aquele que te reconhece e te aceita, sem reservas, sob tua dupla face, chega a se tornar um contigo e pode, finalmente, exclamar: “Tudo se realizou! Nada mais tenho a desejar”.
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[1] Poeta, filósofo, músico, pintor, escritor, e um dos grandes mestres espirituais da Índia dos séculos passado e retrasado, Tagore foi o primeiro ganhador não europeu do prêmio Nobel de literatura (em 1913, por Gitanjali). Também foi quem chamou a Gandhi de Mahatma (Grande Alma). O livro do qual foi retirada esta passagem é ele mesmo apenas uma pequena parte do Santiniketan, um conjunto de mensagens decorrentes das palestras matinais que Tagore proferia em sua universidade (fundada por ele próprio, ele foi também um assíduo contribuidor da educação e cultura de seu povo).
Eu geralmente trago comentários próprios para textos de outros autores, mas em alguns deles simplesmente não há o que acrescentar, e este certamente é um deles. Para quem acompanha este blog há algum tempo, perceberá que este texto resume vários conceitos que tenho desenvolvido aqui ao longo dos anos. Prestem atenção, particularmente, aos trechos que marquei em itálico... Tagore não traz nada de novo, apenas um entendiemento mais aprofundado daquilo que já era conhecido por qualquer espiritualista, porisso mesmo este é o tipo de texto que vale a pena ser relido na medida em que vamos adentrando mais e mais no Caminho.
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Crédito da foto: Wikipedia (Tagore recebe Gandhi e sua esposa em sua universidade. Foto tirada em 1940)
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