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30.8.10

A ciência da inspiração, parte 3

Continuando da parte 2

Metáfora: Figura de linguagem em que há a substituição de um termo ou conceito por outro, criando-se uma dualidade de significado.

Devoradores de maçãs

Um dos mitos mais conhecidos da humanidade trata de jardim do Éden, onde os primeiros humanos criados por Deus, a sua imagem e semelhança, viviam imortais, ociosos e aparentemente felizes. Isso foi até que eles resolveram comer os frutos (o mito fala em maçãs) da árvore do conhecimento do bem e do mal, da qual Deus havia alertado que eles não deveriam comer, ou conheceriam a morte. E o resto todos já sabem: Deus ficou furioso e os expulsou do Éden apenas com alguns trapos feitos de couro de animais, pois que agora um se envergonhava da nudez do outro. E Adão e Eva povoaram o mundo, muito embora o pecado de Eva tenha nos amaldiçoado por muitos e muito anos, até que Jesus veio pagá-lo para nós.

Joseph Campbell, grande estudioso do assunto, dizia que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Ele provavelmente queria dizer que os mitos tratam de verdades que existem fora do tempo, ou seja, que existem sempre. Todo grande mito da humanidade fundamenta-se em uma ou mais dessas verdades, dessa partícula de essência que emana da eternidade. Foi exatamente por isso que os sábios antigos tiveram o cuidado de popular suas histórias com vários desses mitos. Eles sabiam, certamente, que muitos aldeãos e camponeses ignorantes de sua época iriam interpretar tais histórias ao pé de letra, de forma literal – mas sem dúvida também tinham a esperança de tocar a alma dos outros sábios que viriam a Terra em épocas posteriores.

O mito do Éden é repleto de metáforas. Talvez a mais interessante delas seja exatamente o paradoxo do pecado pelo qual Eva foi condenada. Ora, antes de devorar a maçã, ela era sem dúvida ignorante do conhecimento (seja do bem, seja do mal). Se nunca houvesse comido o fruto proibido, estaria ociosa e imortal, por toda eternidade, em um jardim onde poucas coisas interessantes acontecem – mas seria feliz, acredita-se. Animais ignorantes também são "felizes" vivendo no meio selvagem; Entretanto, as pressões do meio-ambiente nunca os deixaram relaxar: na guerra do sofrimento e da fome, mesmo em meio a sua “felicidade”, presas e predadores lutaram pela sobrevivência por longos e longos anos. Não fosse por essa pressão da natureza, talvez a Terra estivesse até hoje populada por hominídios, ou nem mesmo isso, por roedores e outros pequenos mamíferos...

Pois foi exatamente quando adquiriu à consciência e o conhecimento do bem e do mal que o ser humano se tornou quem é. Por um lado, portanto, a metáfora do fruto proibido é apenas uma história fantasiosa, por outro, é uma explicação surpreendentemente avançada para a época em que foi escrita. Será que os rabinos judeus tinham ideia de que estavam a antecipar um dos grandes mistérios da evolução das espécies? Será que tinham pleno conhecimento daquilo que escreviam talvez guiados pela pura intuição? Acredito que a resposta não esteja nem tanto lá, nem tanto cá. Certamente os sábios antigos tinham noção de que lidavam com assuntos sagrados, e que os estavam passando adiante “cifrados” em metáforas dentro de mitos. Mas da mesma forma eles certamente tinham consciência de que não tinham como saber tudo, e é exatamente por isso que passavam tais símbolos para as gerações futuras – como uma mensagem numa garrafa arremessada no oceano, a espera de alguma praia onde existam seres mais sábios para decifrar seus enigmas.

Nós já ficamos com nós na cabeça ao abordarmos o conceito de programação genética. E, da mesma forma, já consideramos com carinho a possibilidade da mente humana ser o resultado da interseção de módulos mentais (naturalista, técnico e social). Além disso, também falamos sobre como a neurologia compreende a criatividade: o foco mental em novos estímulos e ideias, em fluxo e trocas constantes com as ideias que já dominamos em nossas respectivas artes ou disciplinas... Ora, em posse dessas informações, talvez o processo misterioso dos algoritmos genéticos não seja mais tão insondável.

Vamos falar, por exemplo, de poesia: da mesma forma que gerações de algoritmos se digladiam no meio-ambiente do problema a ser resolvido, todos os estímulos que os poetas enviam para suas mentes – através de seus olhares sempre atentos aos menores detalhes da natureza à volta – nada mais são do que algoritmos em busca da solução de sua próxima poesia. A grande diferença é que, ao contrário dos programadores, os poetas geralmente sequer tem ideia de qual é o problema a ser resolvido – de certa forma, para eles, as soluções chegam junto com os problemas, embora nenhuma solução seja realmente a derradeira, e todos os problemas sejam quase sempre infinitos. Nessa batalha mental travada por estímulos ambíguos e aparentemente sem relação uns com os outros, ninguém sai derrotado, pois o fruto é sempre uma nova legião de metáforas. E estas maçãs são divinas, jamais proibidas... Os poetas são verdadeiros devoradores de maçãs!

Vejamos uma dessas “soluções”, pelo grande poeta místico, Gibran Khalil Gibran: “Na floresta só existe lembrança dos amorosos / Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram, / seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos / Conquistador entre nós é aquele que sabe amar / Dá-me a flauta e canta! / E esquece a injustiça do opressor / Pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue”. Neste belo trecho do poema “A floresta”, é impossível chegar a uma compreensão efetiva do que o poeta quis dizer sem usar ao menos parte de nossa emoção e nossa intuição juntamente com nossa razão... Mesmo assim, ficará sempre aquela dúvida se realmente compreendemos todo o bem e todo o mal deste belo fruto da inspiração de Gibran. O lírio é uma taça para o orvalho, e não para o sangue – quantas e quantas interpretações e conceitos contidos em apenas uma frase.

Há ainda outros poetas que conseguem inserir metáforas dentro de metáforas dentro de ainda outras metáforas... Quando Fernando Pessoa diz que “o poeta é um fingidor, finge ser dor a dor que deveras sente”, ele está nos trazendo para uma análise existencial da qual a solução jamais será algo racional, objetivo, tal qual 2+2=4. Nesse sentido, é possível que os algoritmos genéticos sejam extensões de nossa racionalidade, aplicadas a problemas descobertos por nossos cientistas e matemáticos, e que tudo o que fazem é poupar seus cérebros de rodar trilhões de cálculos, antecipando uma solução que em séculos passados seria inviável. Entretanto, na poesia pode ser mais depressa ainda: a solução chega junto com o problema. A diferença é que na poesia a solução jamais será final, e após termos devorado todas as maçãs do Éden, teremos de sair nós mesmos em busca de mais conhecimento – ainda que o velho barbudo tenha se esquecido de nos expulsar...

Muito do debate acerca da existência de Deus se resume ao ancião das metáforas do antigo testamento bíblico – sim, pois o Deus de Jesus é sempre um coadjuvante, que intervém apenas por emanação de pensamentos, e não de forma “direta”. Esses debates se parecem mais com debates entre crianças que brincam em uma praia – uma delas constrói um castelo de areia e diz que “esta é a cidade de deus”... Enquanto outras crianças com senso crítico mais desenvolvido esperam as ondas da maré chegar e destruir os castelos, e então bradam convictas: “Viram! Não lhes disse que este deus tinha pés de barro?”.

Ora, mas e se o reino de Deus estiver em sua volta? E se ele abarcar não só os castelos de areia, como cada grão de areia da praia, e cada gota de água do mar, e cada nuvem e cada pássaro a planar pelo céu, e cada sol a flutuar pelo Cosmos, e cada partícula a bailar por nosso cérebro e nossa alma?

Einstein dizia que “a ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega”. Ora, um dos grandes cientistas de nosso tempo, em sua maturidade, defendia uma “religiosidade cósmica”, baseada na presença de um poder racional superior, revelado no universo ainda oculto ao conhecimento da ciência. Muitos outros cientistas e filósofos foram teístas, deístas, panteístas, agnósticos, etc. Para quem possuí muita ciência, fica muito difícil apostar que tudo o que há surgiu do nada como numa “passe de mágica cósmico”. No mínimo, é preciso admitir que tal questão não pode ser compreendida hoje, e talvez jamais possa... De qualquer forma, pela lógica, também se faz necessário concordar com Espinosa (como Einstein, aliás, concordou) quando este afirma em sua “Ética” que “uma substância não pode criar a si mesma”...

E se Deus for um grande programador cósmico? E se nós formos parte dos algoritmos divinos que ele inseriu em sua criação? E se no núcleo de cada átomo, nos filamentos de cada DNA, em cada um de nosso neurônios, nas partículas etéreas de nossa alma, não estiverem inscritos códigos sagrados que ditam que este Cosmos nada mais é do que um problema em solução? E se formos nós mesmos os personagens e co-criadores desta poesia infinita? Navegando dentre raios cósmicos e poeira de estrelas, é impossível participar deste problema sem estarmos encharcados de Deus por todos os lados e a todos os momentos...

O reino de Deus sempre esteve a nossa volta. Nós jamais fomos expulsos do Éden. Tudo o que falta é compreendermos isso – que o Éden jaz, antes de mais nada, em nossa consciência... E que Deus ou o Cosmos jamais foram uma solução, jamais uma muleta na qual pudéssemos nos acomodar, mas sim um grandioso problema que vem sendo solucionado passo a passo, inspiração por inspiração. Nós devoramos uma maçã de cada vez...


Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes,
e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor

Gibran Khalil Gibran, trecho de “A floresta”.

***

Crédito das fotos: [topo] Guto Lacaz (exposição "Einstein no Brasil"); [ao longo] Marcos Homem

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27.8.10

A ciência da inspiração, parte 2

Continuando da parte 1

Mente: 1. Conjunto das idéias e convicções de uma pessoa, concepção, imaginação, intelecto; 2. Capacidade de raciocinar ou aprender, inteligência.

Após a caçada

Retornemos aproximadamente 200 mil anos no tempo, e observemos uma pequena comunidade de caçadores-coletores nas planícies africanas, berço de todos nós, os humanos. São ainda hominídios, humanos arcaicos, mas já possuem seus módulos mentais relativamente desenvolvidos: a inteligência geral foi herdada das outras espécies das quais evoluíram, e é responsável pelos processos básicos de instinto e sobrevivência; A inteligência naturalista desenvolveu-se ao longo da persistente guerra da fome – o conhecimento do terreno em sua volta, a análise dos rastros de presas livres deixados no solo, o cuidado para evitar plantas venenosas, etc; A inteligência técnica permitiu o manuseio de objetos e até mesmo a elaboração de ferramentas, como pedras pontiagudas que facilitam o corte da carne das presas abatidas; E, finalmente, a inteligência social evoluiu desde que reconheceram que caminhar pelo mundo em bandos era mais seguro do que enfrentar as caçadas sozinho.

Tais hominídios acabaram de retornar de uma boa caçada, e estão aproveitando o pouco tempo que resta de luz do sol no final da tarde... Alguns estão retalhando as carcaças para que a comida possa ser compartilhada; As mulheres e anciãos estão descansando, conversando, ou ensinando as crianças algumas regras básicas da vida em sociedade tribal; Já aqueles mais hábeis com os cinzéis estão afiando as pontas das lanças utilizadas na última caçada, ou ainda criando novas... Todas mais ou menos no mesmo formato, projeto de algum gênio primordial que se espalhou e manteve-se inalterado por dezenas de milhares de anos. Não havia muita criatividade, não havia muita inspiração, praticamente não existia a arte, nem a religião...

Avancemos então para cerca de apenas 50 mil anos atrás. No tempo da evolução das espécies terrestres apenas um piscar de olhos de meros 150 mil anos... Ainda estamos nas mesmas planícies do continente mãe, só que agora observando o retorno da caçada – igualmente bem sucedida – de uma comunidade de homo sapiens, humanos como nós, nossos avôs e avós ancestrais. Percebemos que eles continuam cortando as carcaças recém-abatidas (embora com instrumentos mais anatômicos e afiados, ainda de pedra), continuam fabricando novos instrumentos e afiando os desgastados, e as mulheres e anciãos continuam dando instruções básicas de vida social para os infantes. O que mudou, afinal?

Para os arqueólogos, os registros do solo dizem que mudou muita coisa, embora para os leigos talvez essa mudança passasse desapercebida. Ocorre que, na tribo de hominídios, cada grupo realizava sua tarefa em uma área em separado da aldeia; Já nos homo sapiens, todos faziam as atividades uns próximos aos outros, geralmente em torno da fogueira... Nessas longas noites de conversas e atividades após a caçada, muito do que somos hoje tornou-se possível.

Segundo o arqueólogo (sim, arqueólogo mesmo) Steven Mithen em “A pré-história da mente”, foi essa intercessão entre os módulos da mente primitiva que catapultou nossa inteligência a patamares inimagináveis para os humanos ancestrais. Subitamente, os dentes de animais caçados, que antes eram descartados, se tornaram decoração de colares; Colares estes que também serviam para demonstrar para outros membros (e mulheres, quem sabe) da mesma tribo quão bons eram os caçadores que os ostentavam; Da mesma forma, as pegadas deixadas na terra pelas presas tornaram-se também símbolos que demonstravam o tamanho e a direção em que o animal se deslocou; E logo tanto símbolos naturais quanto animais quanto os próprios homens se fundiram em pictogramas pintados em cavernas profundas – registros da história de um povo que se reconheceu como povo; Talvez ao mesmo tempo, surgiram os mitos, as forças naturais tornadas meio-homem, meio-animal, meio-espírito, meio-deus – a religião ancestral surgia em meio ao animismo e ao xamanismo, juntamente com a consciência de nossa vida e nossa mortalidade.

Esta é apenas uma teoria de Mithen, mas acredito que seja muito bem fundamentada. Essa união de módulos mentais, essa divina fluidez cognitiva, faz-se representar até os dias de hoje... Já se parou para perguntar por que a maioria das pessoas passa cerca de 2/3 de seu tempo de convívio com qualquer outra pessoa falando sobre relacionamentos com outras pessoas, ou os relacionamentos de famosos, ou quem morreu e quem nasceu? Ou porque revistas com fotos imensas de modelos de beleza que não possuem muito espaço para texto vendem que nem água? Ou simplesmente porque apreciamos tanto uma boa fofoca? Ora, Mithen sabe: porque nossa fluidez cognitiva nasceu de nosso convívio social ancestral – nada mais justo que dediquemos tanto tempo a ela ainda nos dias atuais. Ou pelo menos, se ainda nos identificamos com nosso lado animal...

Nós trocamos idéias, trocamos palavras, trocamos símbolos uns com os outros constantemente. Nosso maior dom não é a visão ou a audição ou nem mesmo a racionalidade, mas antes de tudo, a capacidade de interpretar símbolos. Um dom sim, mas que muitas vezes pode se tornar também uma maldição – principalmente quando mal fazemos idéia da extensão de tal capacidade.

A criatividade é a capacidade de reformular o que conhecemos, em geral sob a luz de uma informação nova, e de desenvolver um conceito ou uma idéia original. A fim de ser criativa, uma pessoa precisa ser crítica, seletiva e inteligente.

O processo criativo transcorre, segundo a ciência, da seguinte forma: nossos cérebros são bombardeados de forma contínua com estímulos, sendo que a maior parte é ignorada. Essa “exclusão” garante que usemos as informações mais relevantes para direcionar nossos pensamentos. A abertura de nossas mentes para informações novas promove o arranque do processo criativo. Para isso, o cérebro desativa a atenção aguda, identificada por eletrencefalograma como ondas beta (estado de alerta) e permite o aparecimento de ondas alfa, amplas e lentas (estado de relaxamento mental e ociosidade). Desse modo, os estímulos, que de outra forma poderiam ser ignorados, tornam-se conscientes e ressoam com as memórias, gerando novos pensamentos e idéias que podem ser tanto originais quanto úteis. Pois é, deve ser por isso que as pessoas têm a maioria das boas idéias no cafezinho, e não durante um dia estressante de trânsito e trabalho nas grandes cidades...

Os artistas que dominaram suas disciplinas têm uma base de conhecimento que sustenta melhorias e mudanças a partir da repetição e/ou reorganização dos padrões simbólicos que eles já dominam. Tal habilidade permite que esses processos rodem na inconsciência, liberando a consciência para a absorção e reconhecimento de estímulos inteiramente novos. Pessoas assim possuem uma alta capacidade de retornar a um estado de alerta mental quando reconhecem uma nova idéia, pois de forma recorrente as submetem a uma avaliação crítica rigorosa – “será que isto combina ou acrescenta algo a minha arte?”. Os estímulos, os símbolos que sobrevivem a esse segundo processo de pensamento criativo tendem a ser valiosos e, portanto, julgados como genuinamente originais.

Sejamos então todos artistas de nossa própria vida, pois que ela sempre será nossa obra mais importante. Após a longa caçada, após tantas noites de conversas em fogueiras amedontrados e extasiados com a imensidão da noite a volta, de alguma forma fomos guiados por essa vasta natureza a uma certa fluidez de pensamento. Em todos esses dias de homens, aprendemos passo a passo a compartilhar símbolos, idéias, pensamentos, e emoções... Nem sempre temos sido bem sucedidos em reconhecer tudo isso que há de sagrado em torno e mesmo dentro de nós – seja no mecanismo, seja no sentido. Mas o que importa é que podemos aprender com nossos erros, e melhorar um pouco, um pensamento de cada vez.

Idéias, idéias são tudo o que há além da natureza que aqui já estava quando chegamos. Idéias são tudo o que iremos deixar em retribuição. Reconheçamos então quais são as idéias que nos levarão a frente, e quais são âncoras disfarçadas de pipas, prontas a nos deixar fixados no mesmo lugar por mais uma vida inteira.

Sejamos caçadores então, e façamos de nossa caça uma verdadeira arte: cacemos não para sobreviver simplesmente, mas para viver, viver plenamente, viver em harmonia, conectados com a infinita teia da vida a nossa volta. Cacemos idéias que se escondem além da galáxia mais distante e no menor pedaço de átomo que fomos capazes de enxergar. Cacemos o horizonte à frente, cacemos os mecanismos e o sentido desse turbilhão universal, cacemos a nós mesmos, cacemos ao amor. Enfim, cacemos pela enorme felicidade e a enorme paz que essa caçada nos proporciona.

Na continuação, metáforas, poesia e o grande programador cósmico...

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Crédito das imagens: [topo] Becoming Human; [ao longo] Werner Backhaus/dpa/Corbis

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26.8.10

A ciência da inspiração, parte 1

Inspiração: 1. Ato ou efeito de inspirar; 2. Pensamento ou idéia que nos vem de repente; 3. Produto da imaginação ou entusiasmo criativo.

A arte dos algoritmos

A ciência da computação nasceu com o conceito de algoritmo, criado conjuntamente em 1936 pelo experimento mental de Alan Turing, conhecido como Máquina de Turing, enquanto quase ao mesmo tempo Alonzo Church criava o cálculo lambda. Um algoritmo é uma seqüência finita de instruções bem definidas e não ambíguas, cada uma das quais pode ser executada mecanicamente num período de tempo finito e com uma quantidade de esforço finita.

O conceito de algoritmo é freqüentemente ilustrado pelo exemplo de uma receita, embora muitos algoritmos sejam mais complexos. Eles podem repetir passos (fazer iterações) ou necessitar de decisões (tais como comparações ou lógica) até que a tarefa seja completada. Um algoritmo corretamente executado não irá resolver um problema se estiver implementado incorretamente ou se não for apropriado ao problema.

Roger Alsin é um programador sueco bem menos conhecido, mas que aborda a arte dos algoritmos de uma forma impensável na época de seus criadores... No final de 2008, ele resolveu brincar um pouco com alguns algoritmos, mais precisamente algoritmos genéticos. Ele criou um pequeno programa que evolui cadeias de “DNA digital” para renderização de polígonos, eis as instruções aplicadas:

(0) Cria uma cadeia de DNA aleatoriamente (início do programa); (1) Copia a seqüência de DNA atual e aplica uma pequena mutação; (2) Usa o novo DNA para renderizar polígonos em uma tela; (3) Compara a tela com a imagem original (a ser copiada); (4) Se a imagem se parece mais com a imagem original do que a imagem gerada pelo DNA pai, substituir o DNA antigo pelo DNA atual; (5) Repetir a partir do passo 1.

Então, Alsin colocou como meta aos seus algoritmos tentar recriar (ou copiar da melhor forma possível) a Mona Lisa de Da Vinci usando apenas 50 polígonos semi-transparentes... Após 904.314 gerações, o algoritmo genético de Alsin chegou a uma imagem bastante próxima da original, se considerarmos que algoritmos não são exatamente mestres da pintura (ou pelo menos, ainda não são). Você pode ver a imagem final no início do artigo, ou ver as diversas gerações no weblog de Alsin.

Em 1992, John Koza – cientista da computação – usou algoritmos genéticos para desenvolver programas para realizar certas tarefas. Ele chamou seu método de programação genética. Koza foi pioneiro neste método de programação, que hoje é cada vez mais utilizado no mundo.

O aspecto mais bizarro e intrigante da programação genética é que seus algoritmos – verdadeiras “entidades de software” – não sofrem as restrições dos hábitos de pensamento e das inclinações intelectuais sutis dos programadores humanos. Como exploram irrefletidamente todo o espectro de soluções possíveis para um determinado problema, os algoritmos genéticos podem trazer soluções puramente alienígenas. Por exemplo, a NASA utilizou a programação genética para produzir o projeto ideal de um suporte a ser usado na Estação Espacial Internacional. Como relatou o U.S. News and World Report, o resultado parecia ter saído de um romance de ficção científica:

“Surgiu, de 15 gerações e 4.500 projetos diferentes, um suporte que nenhum engenheiro humano projetaria. O conjunto grumoso e com a extremidade arredondada lembrava o osso de uma perna, irregular e um tanto orgânico. Testes em modelos confirmam sua superioridade sobre os projetos humanos com suporte estável. Nenhuma inteligência fez os projetos. Eles apenas se desenvolveram.”

Outro exemplo espantoso da total estranheza da programação genética bem-sucedida é o código e computador que foi desenvolvido para ajudar um paciente a controlar uma mão protética com base em sinais nervosos erráticos captados por eletrodos presos ao pulso do paciente. O software desenvolvido analisava misteriosamente os sinais nervosos e os traduzia com precisão perfeita nos movimentos que o paciente queria fazer.

Mas aqui está a parte realmente estranha – o método pelo qual o software realizou esse feito incrível está totalmente além da compreensão dos pesquisadores humanos. Como relatou a Scientific American:

“O código desenvolvido era tão confuso e indecifrável quanto um inseto esmagado. O programa que prevê os gestos consiste numa única linha de código tão longa que enche uma página inteira e contém centenas de expressões parentéticas embutidas. Ele nada revela sobre por que o polegar se move de uma certa maneira – só revela que se move.”

Eis que, como num passe de mágica, essas receitas de bolo que ajustam a si mesmas acabam por trazer resultados imprevisíveis, bolos de sabores que nós humanos jamais poderíamos imaginar.

Para alguns ateus entusiastas de inteligência artificial, esta é a prova cabal de que o argumento do Design Inteligente está descartado, e de que os problemas podem ser solucionados através de gerações aleatórias de algoritmos – assim como a vida pode ser explicada como uma evolução aleatória da matéria inorgânica que, de alguma forma, tornou-se orgânica.

Estão mal-informados, pois conforme o próprio Alsin – ele mesmo um ateu – explica em seu weblog, a programação genética não prova absolutamente nada além de que pode ser utilizada para resolver problemas além da atual capacidade humana:

(1) Não existe um objetivo claro nos algoritmos, pois o problema que estão tentando solucionar é o seu próprio meio-ambiente de desenvolvimento. Eles não possuem um sentido, são mero mecanismo de solução de um problema específico; (2) A réplica da Mona Lisa não é a imagem do DNA digital e muito menos do “corpo” dos algoritmos genéticos, ela apenas demonstra o seu nível de adaptação ao meio-ambiente, ou o quanto foram bem sucedidos na solução do problema; e finalmente: (3) A programação genética nada diz sobre o problema da Criação, pois toda ela foi desenvolvida por seres humanos, e nós fomos criados por um evento químico extremamente fortuito nos primórdios do planeta, ou por um ser (ou seres) além de nossa compreensão atual, mas certamente não por uma máquina humana!

Da mesma forma, a magnífica capacidade computacional de nossa tecnologia nada nos diz sobre o que diabos são a inspiração e a criatividade humanas. Nossas máquinas são produto de nossa criatividade, mas não podem (ao menos por enquanto) criar elas mesmas. Tudo o que podem fazer é computar informação, seguirem receitas de bolo e, quando muito, modificar tais receitas para trazer resultados inesperados. Mas quem dita à receita somos nós. Mesmo que um dia máquinas possam nos imitar quase que a perfeição, ainda assim serão imitadores, computadores, e não seres que interpretam e reavaliam a informação de forma subjetiva, única.

Ainda assim, o mistério, a magia das soluções trazidas pelos algoritmos genéticos permanece insondável. Isso irá requerer uma análise mais profunda sobre como exatamente à mente humana cria novos conceitos e idéias a partir de outros já existentes – ou algumas vezes, aparentemente a partir do nada...

Na continuação, como a relação dos módulos da mente primitiva nos tornou humanos, demasiadamente humanos.

***

Pequeno glossário de alguns termos técnicos utilizados no artigo:

Máquina de Turing – Modelo abstrato de um computador, que se restringe apenas aos aspectos lógicos do seu funcionamento (memória, estados e transições) e não à sua implementação física. Numa máquina de Turing pode-se modelar qualquer computador digital.

Cálculo lambda – O cálculo lambda pode ser considerado como uma linguagem de programação abstrata, isto é, as maneiras como funções podem ser combinadas para formar outras funções, é uma linguagem pura, sem efeitos colaterais, e sem complicações sintáticas.

Algoritmo – é explicado nos primeiros parágrafos do artigo :)

Polígono – Um polígono é uma figura geométrica plana limitada por uma linha poligonal fechada : p.e. o hexágono é um polígono de seis lados. A palavra “polígono” advém do grego e quer dizer muitos (poly) e ângulos (gon).

Mutação – Em Biologia, mutações são mudanças na sequência dos nucleotídeos do material genético de um organismo. No caso da programação dos algoritmos genéticos, as mutações são induzidas propositadamente (e não aleatoriamente) a cada nova geração.

Linha de código – Em Programação, são as linhas de código que contém as informações (código fonte) que determinam como um programa deve proceder. No caso do software que analisa sinais nervosos, todo o código está agrupado (desde a origem) em uma única linha, sendo incompreensível para a cognição dos próprios programadores (é o resultado dos algortitmos genéticos).

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Crédito das imagens: [topo] Roger Alsin (sim, pois foi ele quem criou o programa que copiou a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci); [ao longo] Andrea Ruester/Corbis

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25.8.10

Parcerias

Este blog se orgulha de ter seus artigos publicados em outros blogs e sites, em um sistema de parceria e amizade. Estas são nossas parcerias:

Teoria da Conspiração e Projeto Mayhem Wiki
O blog Teoria da Conspiração é hoje uma espécie de portal, que juntamente com o Projeto Mayhem Wiki, uma wikipedia, falam sobre ocultismo, mitologia e espiritualismo em geral. Eles são administrados por um dos maiores especialistas do assunto no país – Marcelo Del Debbio, que também é autor da Enciclopédia de Mitologia.

O que pretendemos publicar lá?
Artigos sobre a temática dos sites, além de outros sobre espiritualidade, ciência e filosofia. Voltados para um público mais específico e livre de dogmas.

» Veja nossa coluna no Teoria da Conspiração (TdC)

» Veja nossa página no Projeto Mayhem Wiki

Conheça também o Projeto Entrementes, onde blogueiros membros do Projeto Mayhem falam sobre um mesmo tema a cada rodada:

» Veja a lista dos artigos publicados no Projeto Entrementes


Conversa Alheia (podcast)
Eu, que sou um estudante de poesia, fui convidado por Igor Teo e Rodrigo Ferreira, estudantes de psicologia e autores do blog Artigo 19, para participar de um bate papo descontraído sobre todas essas coisas que passam por nossa mente de vez em quando, e que por vezes refletimos também em nossos respectivos blogs.

» Veja nosso canal no TouTube


Universalistas
Um blog sobre ecumenismo e universalismo religioso. No Universalistas todas as formas de contato com o sagrado são consideradas igualmente relevantes.

O que pretendemos publicar lá?
Artigos sobre ecumenismo e religiões em geral, voltados para uma visão abrangente de religiosidade cósmica. Também pretendo lembrar dos agnósticos.

» Veja nossa coluna no Universalistas


DalheMongo
Um nome curioso para um blog administrado por uma mocidade jovem espírita. Eu que não sei bem minha idade, concordo que espiritismo e juventude têm tudo a ver, e fico muito contente de ter sido convidado a participar.

O que pretendemos publicar lá?
Artigos sobre espiritismo e reforma íntima, dentre outros que têm a ver com o tema – como sobre filosofia, ciência e espiritualismo em geral. Voltados para um público jovem e descolado :)

» Veja nossa coluna no DalheMongo


Revista Entrementes
Trata-se de uma revista digital sobre cultura holística, abrangendo inúmeras áreas afins, tais como arte, ciência, filosofia e cosmovisão. Fui convidado para ser um dos colunistas do site.

O que pretendemos publicar lá?
Artigos sobre arte, espiritualidade, ciência, filosofia e cultura geral. Geralmente voltados para um público mais abrangente, não necessariamente espiritualista.

» Veja nossa coluna na Revista Entrementes

***

É revigorante perceber que estamos atraindo a atenção de públicos tão variados. Do público que normalmente comenta em nosso blog, acredito que só esteja faltando termos alguma parceria com um blog sobre ceticismo e/ou agnosticismo...

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Crédito da foto: Marília Cacho

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23.8.10

Buscando perdão

"Mercy Street" - música e letra de Peter Gabriel, inspiradas pela obra da poetisa Anne Sexton. Tradução para o português por Rafael Arrais.

Olhando abaixo para ruas vazias, tudo que ela pode ver
São os sonhos todos feitos sólidos
São os sonhos todos feitos realidade

Todos os prédios, todos esses carros
Foram antes apenas um sonho
Na cabeça de alguém

Ela vislumbra o vidro quebrado, vislumbra a neblina
Ela vislumbra uma alma
Sem escorrimento pela cicatriz

Vamos levar o barco para fora
Esperar até o anoitecer
Vamos levar o barco para fora
Esperar até a escuridão chegar

Em lugar algum dos corredores de pálido verde e cinza
Em lugar algum dos subúrbios
Na luz fria da manhã

Há em meio a isso, tão vívidas e solitárias
Palavras que nos suportam como essência

Sonhando com a via do perdão
Consumindo você de dentro para fora
Sonhando com perdão
Nos braços de seu pai novamente
Sonhando com a via do perdão
Sonhando com perdão
Nos braços de seu pai

Retirando os papéis das gavetas que deslizam facilmente
Arrastando pela escuridão, palavra por palavra

Confessando todas as coisas secretas na morna caixa de veludo
Ao padre - ele é o doutor
Ele pode suportar os impactos

Sonhando com a delicadeza - o agitar das pernas
Em se beijar o lábios de Maria

Sonhando com a via do perdão
Consumindo você de dentro para fora
Sonhando com perdão
Nos braços de seu pai novamente
Sonhando com a via do perdão
Sonhando com perdão
Nos braços de seu pai

Perdão, perdão, buscando perdão
Perdão, perdão, buscando perdão

Anne, está lá fora no barco com seu pai...
Viajando pela água
Viajando pelas ondas do mar

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Obs: No vídeo, parte de um show ao vivo na cidade de Milão, em 2003, quem está sentada no barco ao final é a própria filha de Peter Gabriel, que também é cantora.

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20.8.10

O que é a vida?

Texto de James Gardner em "O universo inteligente" (Ed. Cultrix) – Trechos das pgs.53 a 55. Tradução de Aleph Eichemberg e Newton Eichemberg. As notas ao final são minhas.

Essa questão tem uma história sabidamente longa e turbulenta, estimulando poetas e céticos, filósofos e mecânicos quânticos, biólogos e místicos, a oferecer um desnorteante pot-pourri de explicações radicalmente diferentes. A vida é um fenômeno único e fundamentalmente diferente da não vida, opinou o filósofo francês Henri Bergson. Bergson teorizou que a vida é irresistivelmente impelida a níveis cada vez mais altos de realização evolutiva por uma misteriosa força vital (élan vital), que é inteiramente ausente na matéria não viva [1].

Absurdo, objetou o cético Robert Morrison. A palavra vida é apenas uma convenção lingüística que empregamos para descrever uma classe especial de objetos materiais que têm algumas incomuns características termodinâmicas e comportamentais. Além do fato de partilharem certas propriedades, as coisas vivas são indistinguíveis de pedras sem vida:

“A vida não é uma coisa ou um fluido mais do que o calor o é. O que observamos são alguns conjuntos incomuns de objetos separados do resto do mundo por certas propriedades peculiares, como crescimento, reprodução e maneiras especiais de lidar com a energia. Esses objetos, escolhemos chamar de coisas vivas [2]”.

A arma secreta da vida, concluiu o pioneiro da física quântica Erwin Schrödinger num livro intitulado What Is Life? [O Que é a Vida?], é sua capacidade única de metabolizar: exportar desordem para o ambiente circundante em forma de calor irradiado e excrementos enquanto importa ordem desse ambiente em forma de alimento e energia [3].

[...] O livro de Schrödinger foi uma inspiração para toda uma geração de cientistas que criaram, basicamente a partir do zero, o enorme empreendimento científico hoje conhecido como biologia molecular. Em particular, Schrödinger antecipou e inspirou a épica façanha de James Watson e Francis Crick: a descoberta da estrutura do DNA.

[...] Watson revelou que foi a conjectura de Schrödinger que inspirou seu insight:

“Schrödinger argumentou que a vida pode ser pensada em termos de armazenamento e transmissão de informações biológicas. Os cromossomos seriam assim meros portadores de informação... o livro de Schrödinger teve muita influência. Muitos dos que seriam os principais atores do Primeiro Ato do grande drama da biologia molecular, inclusive Francis Crick (ele mesmo um ex-físico), leram What Is Life? e ficaram impressionados, como eu”.

Watson tirou uma importante conclusão filosófica de sua descoberta do fundamento molecular da vida e da hereditariedade: que a vida não é tão diferente assim da não vida, e que a matéria viva não abriga segredos inerentemente impenetráveis:

“Nossa descoberta põe fim a um debate tão antigo quanto a espécie humana: Será que a vida tem alguma essência mágica, mística, ou é, como qualquer reação química produzida numa aula de ciências, o produto de processos físicos e químicos normais? Haverá alguma coisa divina numa célula que a traga a vida? A dupla hélice respondeu a essa pergunta com um definitivo Não”.

Ironicamente, seu mentor intelectual (Schrödinger) chegou precisamente à conclusão oposta em What Is Life?, ao observar que a característica que define a vida – sua capacidade para produzir e prolongar a existência de uma ilha de ordem contínua, incessantemente fustigada por um mar de aleatoriedade e de desordem movida a entropia – é uma forte evidência da existência de um “novo tipo de lei física” que governa o comportamento da matéria viva [4].

***

[1] Mesmo antes da descoberta do DNA, muitos filósofos antigos e recentes têm concebido esta idéia de uma força vital a impulsionar os seres a evoluir. Schopenhauer, por exemplo, fala em uma força que nem sempre está interessada em nossa felicidade – tudo o que ela “deseja”, em realidade, é garantir a procriação da espécie. Desnecessário dizer que muitos biólogos evolutivos concordam com ele.

[2] Há muitos que se dizem materialistas, crendo que isso significa simplesmente que não crêem em espíritos ou assombrações. Outros acham que ser materialista significa dar grande valor a bens materiais e riquezas, etc. Não, ser materialista significa crer que apenas a matéria já detectada explica todo o funcionamento da vida e da consciência. Sim, detectamos apenas em torno de 4% da matéria do universo, os materialistas têm uma fé enorme nesta aposta... Dito isso (e também considerando que nem todos os céticos são materialistas), para reduzirmos seres a coisas, consciências a máquinas biológicas, antes é preciso comprovar que coisas ou máquinas são capazes de interpretar informações e elaborar respostas morais e emocionais em geral, ao invés de apenas computar informações e/ou imitar comportamentos de seres que consideramos vivos. Para começar, seria bom alguma máquina finalmente passar no teste de Turing.

[3] Geralmente se considera esse mecanismo anti-entrópico singular dos seres vivos apenas no campo da ordem do organismo em si. Se fomos pensar em toda a ordem de armazenamento de informações no cérebro, independente de entropia “exportada” para fora do corpo, temos uma outra grandeza de ordem a ser analisada. Poucos cientistas pensam nisso...

[4] Moral da história: “Pouca ciência afasta, muita ciência aproxima”... De que afasta? De que aproxima? De Deus (seja como for), do Cosmos, dos mistérios ainda insondáveis da natureza, daquilo que somente os grandes gênios da ciência ousam considerar...

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Crédito da imagem: Bill Varie/Corbis

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18.8.10

O homem que se lembra do céu

Texto de Nicolas Grimaldi em "Sócrates, o feiticeiro" (Edições Loyola) – Trechos das pgs.7 a 10. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. As notas ao final são minhas.

“Quando o servidor trouxe a taça de veneno que acabara de preparar, Sócrates olhou-o, como era de seu costume, um pouco por baixo com seus olhos de touro e perguntou-lhe se com esse veneno ele poderia fazer uma libação a uma divindade.” Fédon, 117 b

Sócrates era um feiticeiro. O testemunho é do próprio Platão. “Ouvindo-lhe”, diz-lhe Mênon, “parece que fui drogado. Tu me enfeitiçastes tão bem que não sei mais o que penso”. Essa magia constituía o charme de Sócrates. Ele encantava. O efeito de suas palavras era tão arrebatador quanto a música. Como se tratasse de um transe dionisíaco, era-se possuído. Alcibíades confessava não poder ouvi-lo sem ficar totalmente a sua mercê. Acusá-lo de feitiçaria era reconhecer-lhe o poder, do mesmo modo que aqueles que o admiravam. E, com efeito, designando-o em As nuvens como o mais célebre dos sofistas, Aristófanes não mostrava um Sócrates capaz de persuadir qualquer um sobre qualquer coisa? [1] Ora, vangloriando-se de ser capaz de fazer qualquer pessoa perder o sentido da realidade, de fazê-la experimentar o falso como mais evidente que o verdadeiro e o real como mais inconsistente que o irreal, a sofística também era uma feitiçaria. Até mesmo os discípulos que viam em Sócrates o mais cáustico crítico dos sofistas não deixavam de reconhecê-lo, eles também, como uma espécie de feiticeiro, de mágico ou de xamã [2]. Quando Sócrates tem apenas algumas horas a mais de vida, ou alguns momentos, é menos o desaparecimento de seu amigo que Fédon lamenta que a perda do encantador: “Onde encontraremos um mágico tão perfeito depois que nos abandonares?”

E, contudo, esse xamã, esse feiticeiro, sempre é o ponto de referência como o próprio exemplo do que deve ser um filósofo [3]. Ele não apenas parece ter encarnado o modelo humano de filósofo, mas além disso nos faz remontar a origem da filosofia à sua maneira de pensar e de argumentar. O que precisamos tentar compreender é por que o primeiro dos lógicos, o inventor da dialética praticou filosofia como uma feitiçaria.

[...] O que torna Sócrates um feiticeiro é, em primeiro lugar, o fato de ele ser um curandeiro. A maior parte dos males que afetam o corpo, explica ele a Cármides, se originam na alma; mas “a alma só pode ser curada por meio de discursos que agem como encantamentos”. Sócrates pretendia livrar a alma se suas dores unicamente com a magia de suas palavras, como as parteiras que recorrem a drogas para aliviar as dores das parturientes. [...] Fédon ficava maravilhado, sentindo gratidão: “Como soube nos curar!”. [...] O segundo [traço] é devolver cada um a si mesmo ao restaurar o sentido de sua identidade. Isso é o que Sócrates faz tanto com Alcebíades como com aqueles cujos tormentos ele evoca no Teeteto. O terceiro traço característico de um xamã é ser habitado por espíritos ou escolhido por alguma divindade. Ora, há divindades que aparecem nos sonhos de Sócrates para anunciar-lhe o futuro ou para exortá-lo à poesia. É por se sentir investido pelos deuses de uma missão de justiça que Sócrates interroga, questiona, e põe à prova a competência de que se vangloriam os notáveis atenienses. É também um espírito divino, um demônio [4], uma voz sobrenatural que o contém quando ele poderia se desviar do destino que lhe foi atribuído pelos deuses. Quanto a permanecer em sua cela e ali esperar a morte em vez de fugir, não apenas as Leis em uma célebre prosopopéia o comprometeram a isso, mas também o que o próprio Deus lhe prescreve [5].

Há por fim um quarto traço característico em que se reconhece o poder sobrenatural de um xamã: poder libertar-se de sua existência corporal, às vezes conhecer o êxtase, e “elevar-se aos céus porque já esteve lá”. Ora, não há temas mais constantes que esses nos discursos socráticos. Preparar-se, por meio de todos os tipos de exercícios ascéticos, para desatar os nós que mantêm a alma vinculada ao corpo, chegar gradativamente até a insustentável visão do absoluto não são a base do ensinamento do Fédon e da República? Por fim, a metáfora ascendente, a oposição entre as aparências de baixo e as realidades lá de cima não teriam sido tão pesadamente ridicularizadas por Aristófanes nas Nuvens se elas não tivessem sido, notoriamente, tão repetitivas nos discursos de Sócrates [6].

***

[1] Se ainda existem críticos céticos em relação à própria existência de Sócrates enquanto ser real – e não apenas um personagem da obra de Platão –, é principalmente devido à obra de Aristófanes, ironicamente uma sátira de Sócrates, e também ela mesmo uma crítica, que hoje podemos ter evidências fortes de que ele realmente existiu. Foi satirizando ao grande filósofo que nada deixou escrito que Aristófanes nos deixou o legado da confirmação de que “algum Sócrates existiu”.

[2] É muito comum encontrar críticos que se opõe a filosofia das idéias de Sócrates afirmarem que ele era um dos maiores sofistas, senão o maior. Ocorre que, antes é preciso indagar-se: e será que tais críticos realmente compreenderam a filosofia de Sócrates? Eu, de minha parte, posso afirmar que é praticamente impossível compreendê-la apenas no campo da linguagem e da teoria – é preciso vivenciá-la!

[3] O que é o grande paradoxo da filosofia moderna: elevar Sócrates ao patamar de precursor da filosofia ocidental, para depois ignorar solenemente o fato de que ele foi um místico – não no sentido metafórico ou estrito a linguagem, mas no sentido real e objetivo. Ele foi um iniciado nos Mistérios de Elêusis e em inúmeros outros, além de citar constantemente o Oráculo de Delfos como catalisador de sua busca pela sabedoria. Mas, e o que os “filósofos modernos” sabem sobre isso? Muito pouco, quase nada... Eis o paradoxo.

[4] Para os gregos da época demônios (daemons) eram espíritos que faziam uma espécie de intercâmbio de informações entre o reino dos homens e o reino divino. Poderiam ser bons ou maus, sendo que os que influenciavam Sócrates poderiam ser comparados, em realidade, ao que hoje chamamos de anjos ou arcanjos. Claro que os mesmos seres que deturparam esse conhecimento irão prontamente discordar.

[5] Sócrates não fugiu da prisão, Buda fugiu de seu palácio, Jesus não fugiu da cruz. Seres de consciência elevada que vem a Terra geralmente colocam sua missão acima da própria vida – inclusive por compreenderem que sua vida perdurará e que a missão é o que importa.

[6] É interessante como nesse livro curto e escrito de forma brilhante, Grimaldi tenha exposto inúmeras evidências de que Sócrates era um xamã, edificando a concepção de uma filosofia das idéias, para ao final tentar desconstruí-la com uma filosofia secundária atribuída ao próprio Sócrates no livro Parmênides. Ocorre que, para compreender o Parmênides, Grimaldi teria de deixar a filosofia de lado, e adentrar a religião. Pois o Uno que está em discussão não é apenas uma teoria lógica edificada em números e geometria, mas a própria essência do problema da origem das coisas, do "porque existe algo, e não nada". Não deixa de ser um bom exemplo da perplexidade que Sócrates provoca até hoje na filosofia moderna.

***

Crédito da imagem: parte da pintura de Raphael Sanzio para a Sala da Assinatura no Vaticano (percebam que enquanto Platão aponta para os céus desconhecidos, Aristóteles prefere permanecer no solo conhecido - o último remete a ciência e a racionalidade, e o primeiro remete a religião e a intuição, sendo que tais conceitos jamais foram mutuamente excludentes)

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16.8.10

Injusto consigo mesmo

Trecho do Projeto Ouroboros

(S.) Pois bem, mas estivemos atrelando o conceito de justiça divina primordialmente a igualdade, ou igualdade universal. Devemos então retornar a ela...
Estive considerando que um homem ou mulher pode nascer livre e pertencente a uma fraternidade. Mas pode alguém ser igual em si mesmo?

(I.) Igual em si mesmo?

(S.) Sim, da mesma forma que dizemos “este é um homem livre”, poderíamos construir uma frase como “aquela é uma mulher igual”... Mas ela faria algum sentido?

(I.) Ah sim, agora lhe entendi... Realmente não faria sentido algum.

(S.) Dessa forma, quando falamos em igualdade, estamos falando sempre de uma relação entre uma ou mais partes, uma ou mais pessoas ou seres.

(I.) Não há dúvida.

(S.) Nesse sentido, conforme estivemos atrelando o conceito de justiça universal e divina a uma igualdade universal, chegamos a conclusão de que ninguém pode ser justo ou injusto para consigo mesmo – a justiça envolve sempre a interação e o relacionamento com um ou mais seres distintos. Você ainda concorda?

(I.) Com muito gosto. Uma bela exposição lógica, minha cara!

(S.) Obrigado, mas então permaneça atento a este fio de pensamento...
Muitos concordarão, portanto, que é justo afirmar que onde termina o direito de um se inicia o direito do outro. Há aí uma linha extremamente tênue, e é precisamente esta “fronteira” de direitos que demanda a interpretação cuidadosa e lúcida dos grandes juízes, sobre os quais recaiu a monumental tarefa de atuarem conforme deuses – julgando o destino daqueles que são encaminhados as suas cortes...
Dessa forma, obviamente aquele que rouba ou agride ou tira a vida de algum outro deve se penalizado pela lei dos homens, que está tentando imitar a justiça divina desde sua criação. Quanto a isso praticamente não há discussão, exceto nos casos de legítima defesa, mas não quero entrar em detalhes; Consideremos que o assassino que mata sem ter sido provocado ou ameaçado está agindo injustamente, isso me parece sempre claro a todos não?

(I.) Certamente, a vida é sagrada e não deveria caber aos homens julgar ou decidir quem se vai e quem fica. Na realidade nunca coube, e aqueles que se acharam no direito de efetuar tal julgamento estavam equivocados, como nossa conversa já deve ter deixado claro até aqui...

(S.) Sim, conforme falamos de liberdade e fraternidade, esperamos que isso tenha ficado claro... Mas, e quando alguém pratica uma injustiça consigo mesmo, isso é passível de repreensão e julgamento?

(I.) Você fala do suicídio?

(S.) Não somente o ato de se matar, mas qualquer ato consciente que vise prejudicar a manutenção da própria vida... Ora, acabamos de afirmar que a igualdade sempre se aplica a um conjunto de seres, e que como a justiça universal também está atrelada ao conceito de igualdade, ninguém teoricamente poderia ser injusto consigo mesmo... Porém, o que dizer daqueles que intencionalmente atentam contra a própria vida, seja em curto prazo – um ato direto de suicídio –, ou à longo prazo – geralmente através de vícios em substâncias nocivas a vida –?

(I.) Realmente havia me esquecido dessa possibilidade. Como me pegou novamente em sua armadilha lógica, vou deixar que você mesmo continue a expor uma solução enquanto eu continuo nesta profunda reflexão.

(S.) Pois bem, minha intenção não era pregar peças em você meu amigo, mas apenas fazer com que todos possam chegar a uma conclusão mais completa, se conseguirem seguir este fio de idéias.
Ora, se é viável afirmar que ninguém é desigual para consigo mesmo, me parece que não podemos prosseguir e afirmar que ninguém é injusto para consigo mesmo...
Ocorre que, embora tenhamos sido criados iguais, e todos sejamos responsáveis por nossas próprias escolhas; e embora resida exatamente nesses conceitos o cerne do que estivemos discutindo sobre a justiça divina e universal, não podemos nos apressar e esquecer de uma coisa: embora não sejamos a Eva que mordiscou a maça proibida [1], todos temos ainda um débito que talvez nunca possamos quitar, e que por isso mesmo deve ser sempre respeitado.
Me diga, meu caro I., se alguém lhe pedisse emprestada uma roupa fina para comparecer a uma festa, o que você esperaria dessa pessoa nos dias seguintes a festa em que ela foi com sua roupa?

(I.) Que me devolvesse, conforme o combinado...

(S.) E o que você diria se a roupa fosse devolvida com rasgos ou manchas permanentes?

(I.) Que a pessoa foi descuidada!

(S.) E se, digamos, ela nem chegue a lhe devolver nada, não iria atrás dela para cobrar satisfações?

(I.) Certamente, iria cobrar uma nova roupa ou o valor da antiga, se ela encontra-se arruinada...

(S.) E você julga que estaria agindo conforme a justiça, pelo menos a justiça dos homens, correto?

(I.) Correto, não que eu vá ficar muito revoltado se alguém arruinar uma roupa minha, mas sem dúvida seria uma coisa injusta...

(S.) Pois bem, isto já é o suficiente para eu encerrar a exposição...
O que diriam então, amigos, de uma roupa preciosíssima que nos foi ofertada no início da vida, a qual formos encumbidos de preservar da melhor forma possível, visto que é nosso veículo essencial na existência – não seria um ato injusto rasgá-la e arruiná-la de forma intencional?
Ora, conforme expomos no início de nossa conversa, todos somos parte da substância-primeira (ver conclusões do cap. X) [2], e embora ainda não tenhamos discutido sobre o que exatamente forma nossa alma, e mesmo que sejamos apenas um corpo formado por poeira de estrelas distantes, ainda assim esta poeira nos foi emprestada, e não nos pertence – ainda que simplesmente porque somos incapazes de criá-la por nós mesmos.
Dessa forma, já viemos para a existência com pelo menos este débito e esta responsabilidade: a de cuidar e preservar o veículo de nossa própria vida, a começar obviamente pelo próprio corpo. Concluindo, ainda afirmo que todo ato que atenta contra a própria vida é injusto, e cada vez mais injusto na medida em que temos consciência plena deste ato. Digo isso porque, apesar de sermos responsáveis por nossa própria vida, por nossas próprias escolhas, é impossível crer que somos os criadores de nós mesmos... Ora, se uma substância não pode criar uma outra substância, e se somos todos parte da substância-primeira, se todos somos os devedores desse empréstimo sagrado, obviamente que estaremos sendo justos, cada vez mais justos, na medida em que preservamos nossa própria existência, e compreendamos cada vez mais os mistérios que a encerram.
Todos estão de acordo?

***

[1] Conforme a nota existente no livro: Em sua análise mais aprofundada o mito de Adão e Eva se refere ao estágio em que os seres tiveram consciência de si próprios, de sua individualidade, e também das noções de “bem” e de “mal” (poderia-se também dizer: quando deixaram o estágio de animalidade). No caso em questão, a personagem alude a visão menos aprofundada mesmo: uma alegoria que sugere que os filhos de Adão e Eva estão em débito com Deus por conta do “ato pecaminoso” de Eva.

[2] No capítulo em questão temos uma discussão em torno da célebre pergunta: "Porque existe algo, e não nada?" – Já postei um trecho deste capítilo no blog: "Como criar um universo". Notem que o objetivo da exposição de trechos do livro no blog não visa uma espécie de marketing (até mesmo porque nem sei ainda quando terminarei de escrever a obra), mas sim colher comentários e interpretações dos leitores...

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Crédito da foto: sadheartgirl

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12.8.10

Breve conversa com uma das nereidas

Um conto sobre as almas e suas máscaras...

“Ora, faz o que bem quiser” – diz-me Ligea sempre que venho propor mais uma de nossas conversas a beira de seu lago. Não é sempre que consigo achá-la em casa, pois sua morada é distante – alguns séculos no passado – e somente podemos chegar até lá nos raros momentos em que há esta distinta paz na alma. Ligea é bela e gosta de conversar sobre tudo, menos sobre a acusação de que ela e as irmãs exigiram um sacrifício...

“Há de ser toda a Lei: que não fiquem inventando mitos sobre nós! Deixem-nos cuidar das águas, cuidem de sobreviver que nós cuidamos de viver” – é quando ela fala isso que consigo sentir que, apesar de meio-deusa, ela é ainda tão mortal quanto nós. Dizem que a linguagem é sempre uma ficção, e que nada que pode ser descrito por palavras corresponde à realidade. Ora, mas isso é óbvio, me surpreende que as pessoas creiam que mitos tratem da realidade em que sobrevivemos – não, eles tratam de heterônimos, de máscaras para as almas.

Pessoa também foi amigo de Ligea, mas se despediu lá pelo passado e não pôde mais se defender nem se explicar... Dizem que inventou tantos heterônimos que ele próprio era um desconhecido de si mesmo, uma mitologia feita pessoa. Dizem que tudo o que há de real em Pessoa é sua poesia, e isso basta. Ora, mas ele fica muito agradecido, só não entende como podem ter vasculhado toda sua obra e ter convenientemente esquecido de publicar exatamente à parte em que ele fala de si mesmo. Pessoa vivia uma vida oculta, apenas isso – “está tudo lá explicado” – ele dizia a Ligea...

A linguagem trata sempre de dois mundos, o transitório e exposto, e o oculto e permanente. O mundo oculto não possuí movimento algum, apenas essência, e por isso empresta seus mitos ao mundo transitório, onde cada grão se move e vibra em turbilhão, onde absolutamente tudo está catapultado rumo a imensidão. Todos os heterônimos de Pessoa falavam sobre isso, e eram todos mitos de um homem só, de uma só essência... Depois que se compreende, é simples.

Mas eu sempre trago a questão das disputas religiosas e anti-religiosas para Ligea. E ela sempre me diz mais ou menos assim: “deixem que se digladiem pelos seus espantalhos de mitos, nós aqui não temos nada a ver com isso... No fim, tudo se resume a questão da sobrevivência sobre a vivência. São como símios que precisam impor-se ante seu pequeno grupo, mas ocorre que ninguém poderá jamais domar o pensamento alheio; ao menos não o pensamento que se encontra livre, do tipo que ainda consegue enxergar a essência por detrás de todas essas máscaras...”

“O amor, o amor é o que importa, o que nos une a todos em uma teia de luz” – ela geralmente completa... E são nesses momentos que percebo que sua beleza não está na superfície, na menina de seus olhos, mas bem mais aprofundada, como pequenos cristais de calcário capazes de refletir ao Sol mesmo lá debaixo, por dentre todo o lodo de seu lago.

Eu tenho visitado e conhecido esses mitos, essas almas... Tudo o que há são almas – algumas puras em sua ignorância, outras que se comprazem na própria ignorância e insistem em caminhar em círculos; ainda outras que sofreram já o suficiente, deixando o rastro de seu sangue em diversos espinhos da floresta. E existem as bem-aventuradas, que evitam espinhos e sangue, e chegam tão mais depressa na margem do lago das nereidas.

O amor sob a vontade, a vida sobre a sobrevivência, o dar sobre o receber, o buscar sobre o encontrar, a máscara sob a alma – “não, não é necessária mais essa máscara, agora você já pode nos ver como sempre temos lhe visto” – este é mais ou menos o caminho que leva a casa de Ligea. Tenho passado boas temporadas por lá...

raph’10

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Crédito da foto: Bernd Vogel/Corbis

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11.8.10

Ritmo ancestral

É esse batimento de coração
Vindo dos confins do universo
Reverberando por toda criação
Como estrelas cintilando em verso

É essa brisa, obscura e suave
Que sopra com sua peculiar calmaria
Como no alto do céu – a divina ave
A planar em leve bruma de alma macia

É esse turbilhão, esse ritmo ancestral
Essas ondas sem fim tocando a pauta
De uma sinfonia universal

Diga-me então, o que é isso
Que sacode tanto a nossa fé...
Diga-me, diga-me ó poeta, o que isso é?

raph'10

Este é meu primeiro soneto intencional. Dedicado a meu primo, "repentista de sonetos", Fernando Cunha Lima.

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Crédito da foto: pejiguera (dança dervish)

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10.8.10

Quase morte, parte 3

Continuando da parte 2

E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido – Dalai Lama

Neófito, não há morte

O reino de Hades, na mitologia grega, é o local para onde seguem os mortos. Existe um conceito bastante interessante desta travessia simbólica, que fala sobre o julgamento dos recém-chegados. Em seu entendimento mais profundo, este mito narra uma espécie de auto-análise da consciência sobre os atos da vida pregressa. Desta forma, o assassino é assombrado pela repetição incessante de seus atos criminosos, como se todas as vítimas estivessem ao seu entorno – ao mesmo tempo sendo assassinadas e amaldiçoando-o. Aquele que enviou pessoas (inocentes ou não) para a fogueira pode se encontrar ardendo no fogo juntamente com elas. Aquele que esteve na Terra julgando-se um “semi-deus”, tratando a todos como escravos, desta feita é ele mesmo um escravo, enquanto seus antigos escravos agora são seus donos, etc.

Já os bem-aventurados, os que tocaram a vida com a leveza de alma necessária, seja por serem almas simples, seja por serem seres de grande sabedoria, praticamente não se afligem nesta passagem derradeira. Acostumam-se ao “lado de lá” como quem chegou de uma longa viagem em uma nação estrangeira. Não têm o que temer nem o que duvidar, pois continuam existindo, e não se encontram em débito com as próprias consciências. Apenas continuam a tocar a vida, em uma nova dimensão da realidade. O Hades não lhes pesa a alma, pois a alma que não é em si mesma pesada, nada tem a ver com a escuridão...

Porém, este mito foi cuidadosamente erradicado pela nova ordem da igreja de Roma, aos cuidados de Constantino... Curiosamente, é exatamente o Apocalipse bíblico – um verdadeiro hino pagão – que afirma que o “Hades cristão” é quase exatamente igual ao mito; No entanto era necessário lhe dar um outro nome, e mudar o seu sistema para que ficasse verdadeiramente assustador.

Assim nasceu o Inferno, governado não por um deus secundário, mas pelo verdadeiro anticristo, o grande adversário, o supremo bode expiatório – aquele de quem era conveniente sequer citar o nome! Mas não era somente isso, agora o julgamento nas portas do Inferno era sumário: ou iremos para o jardim da Árvore da Vida, admirar ao Criador eternamente em uma aparente ociosidade sem fim; ou seremos condenados a arder eternamente em um Lago de Enxofre. Curioso imaginar como os santos do Céu poderiam estar em paz sabendo que qualquer reles mentiroso ou adúltero estaria ardendo eternamente logo abaixo de seu jardim. Tudo bem, você pode até crer que nunca mentiu ou que nunca traiu, mas será que não conhece, será que não ama alguém que cometeu tais pecados? Pois é...

Essa pequena história do Hades e do Inferno diz muito sobre a diferença entre dois conceitos fundamentais: a religião e a igreja.

A religião, etimologicamente vinda do latim re-ligare, significa um caminho de volta, de eterno retorno, de re-ligação a Deus ou ao Cosmos. De compreensão de nossa própria origem e, conseqüentemente, de união com todas as outras coisas e seres, pois que mais dia menos dia neste caminho percebemos que estamos todos conectados. Somos filhos não apenas do mesmo Pai, mas da mesma substância, aquela mesma que o grande Espinosa compreendeu como “o que não poderia criar a si mesmo”... A religião é essencialmente uma experiência subjetiva, e precisa ser assim. Não se pode querer ditar o seu rumo, pois assim como cada um tem a sua impressão digital, sua menina dos olhos e sua própria crença ou descrença, a religião precisa ser livre – ou corre o risco de se tornar dogma.

Já a igreja vem do grego ekklesia, e significa algo como “a comunidade dos escolhidos por Deus”. Em sua forma pura e não dogmática, como é muito comum encontrarmos em doutrinas orientais, a igreja é simplesmente uma comunidade de irmãos e seres afins, que se unem em torno de algum guru ou mestre espiritual, ou em torno de si mesmos, para buscar de forma conjunta, em grupo, o caminho que pertence à religião. É nesse sentido que todo eclesiástico é religioso, embora nem todo religioso pertença a alguma igreja...

Mas é na forma hierárquica, dogmática, que a igreja tem se portado como uma verdadeira seção do Hades na Terra. São nas doutrinas “editadas” por imperadores e governantes evidentemente distantes da religião que nasceram os grandes dogmas e os ultimatos mais irracionais: “ou crê em nosso Manual da Verdade Absoluta, ou estará condenado ao Inferno”; “ou está conosco, ou contra nós”; “ou marcha conosco em nossa Cruzada para converter os infiéis, ou será tu mesmo um infiel”... Nada disso faz sentido, nunca fez, nunca fará. Para qualquer verdadeiro religioso, isso é evidente. Nem Moisés nem Jesus nem Maomé jamais marchariam com exércitos para “evangelizar” seus próprios irmãos, nem tampouco afirmariam que “só será salvo aquele que se converter para este ou aquele grupo eclesiástico”.

É precisamente nessa batalha entre a liberdade e o dogma, entre o conhecimento que se busca e o que se julga já ter, entre a dúvida e a “certeza”, que muitas almas tem se esfacelado desde que o primeiro sacerdote julgou-se a única via entre os homens e Deus. Para quem é espiritualista e reencarnacionista, é até mesmo esperado e compreensível o crescimento do anti-teísmo – para aqueles que foram dizimados pela irracionalidade, não basta hoje não crer no “deus barbudo senhor dos exércitos”, é preciso contra atacá-lo, é preciso fazê-lo pagar, é preciso “evangelizar” aos outros que ele é o pior Diabo que já pisou em nossas terras...

Mas, e para aqueles que já se cansaram de alistarem-se em guerras (santas ou não), o que resta fazer? Será que ainda vale à pena tentar dialogar neste mundo polarizado? Será ainda possível fazer aos seguidores de dogmas perceberem que não se pode matar em nome de Deus? Que Deus não quis nos trazer revelações, mas quis que nós mesmos as encontrássemos em seu Reino – debaixo de uma pedra, dentre um galho de árvore? Que não faz sentido existir um rival do próprio Criador, e que o Céu e o Inferno, e inclusive o Hades, sempre estiveram inscritos em nossa própria consciência profunda?

É nesse momento que a ciência e a observação cuidadosa dos fenômenos espirituais e/ou paranormais (mas nunca sobrenaturais) pode ser o grande elo de um verdadeiro ecumenismo universal. Pois desta vez não estamos mais falando de povos no deserto que eventualmente entraram em contato direto com eventos e seres miraculosos, não estamos falando de fenômenos que se perderam em eras pregressas e hoje só podem ser vislumbrados pela fé – estamos falando de coisas que acontecem aqui e agora, todos os dias, em todos os cantos do planeta. As experiências de morte são apenas uma delas...

Sendo elas um evento conhecido tanto da ciência “oficial” quanto das alternativas, tanto de céticos e ateus quanto de espiritualistas e teístas, e que ocorrem com crianças, adultos e idosos, elas podem ser um elo, um campo de estudo em que (quase) tudo é ainda possível – onde não existe um “deus barreira” ou um dogma a ditar: “é assim!”.

Não, não é assim. Talvez seja mais ou menos como afirmam os espíritas e reencarnacionistas em geral, talvez seja uma ante-sala do purgatório ou uma mensagem dos anjos de Deus, talvez seja um sonho panteísta, talvez apenas um delírio da consciência em sua despedida rumo ao sonho sem sonhos... A única verdade é que ainda não sabemos, mas podemos saber, juntos!

A questão da Criação, do “porque existe algo e não nada”, da natureza exata de Deus, talvez esteja ainda além do nosso alcance – mas o estudo do que acontece quando morremos é um campo promissor tanto da ciência quanto da religião, tanto da neurologia quanto da parapsicologia. É algo palpável, é algo que ocorre em diversos hospitais em todo o mundo. Só não vê quem não quer, só não procura compreender quem tem medo do desconhecido, ou quem se fossilizou abraçado ao seu precioso Manual da Verdade Absoluta.

Mas para todo neófito, não há morte.

***

Crédito das imagens: Maxfield Parrish

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