Da mitologia a psicologia, parte 2
Texto de Joseph Campbell em "O herói de mil faces” (Ed. Cultrix/Pensamento) – pgs. 255 a 257. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. As notas ao final são minhas.
A apreensão da fonte desse substrato do ser, indiferenciado e, não obstante, particularizado nos quatro cantos do mundo, é frustrada pelos próprios órgãos por meio das quais deve ser realizada. As formas de sensibilidade e as categorias do pensamento humano, elas mesmas manifestações dessa força, limitam a mente num grau tão considerável, que normalmente é impossível, não apenas ver, como também conceber, além do colorido, fluido, infinitamente variado e deslumbrante espetáculo fenomênico. A função do ritual e do mito consiste em possibilitar e, por conseguinte, em facilitar, o salto – por analogia [1].
Formas e conceitos que a mente e seus sentidos podem compreender são apresentados e organizados de um modo capaz de sugerir uma verdade ou uma abertura que se encontram mais além. Tendo sido criadas as condições para a meditação, o indivíduo é deixado consigo mesmo, sozinho. O mito não é senão o penúltimo nível; o nível último é a abertura – o vazio, ou ser, que se acha além das categorias –, na qual a mente deve mergulhar sozinha e ser dissolvida [2]. Portanto, Deus e os deuses são apenas meios convenientes [3] – eles mesmos compartilham da natureza do mundo de nomes e formas, embora sejam eloquentes referências do inefável a que, em última análise, levam. São meros símbolos destinados a despertar e pôr a mente em movimento, bem como chamá-la a ir ao seu encontro.
Esse reconhecimento da natureza secundária da personalidade de toda divindade cultuada é característico da maioria das tradições do mundo. No cristianismo, no islamismo e no judaísmo, todavia, ensina-se que a personalidade da divindade é final – o que torna completamente difícil, para os membros dessas crenças, a compreensão do modo pelo qual é possível ir além das limitações de suas próprias divindades antropomorfas. O resultado tem sido, de um lado, um obscurecimento geral dos símbolos e, de outro, um fanatismo, voltado para os deuses, sem precedentes na história da religião [4].
O céu, o inferno, a era mitológica, o Olimpo, bem como as outras moradas dos deuses, são interpretados, pela psicanálise, como símbolos do inconsciente. [...] Como diz Jesus: “Porque eis que o reino de Deus está dentro de vós” [5]. Com efeito, o sentido de que se reveste a imagem bíblica da Queda é precisamente a passagem da supraconsciência para o estado de inconsciência. A constrição da consciência, à qual devemos o fato de não vermos a fonte da força universal mas, tão somente, as formas fenomênicas que ela reflete [6], transforma a supraconsciência em inconsciência e, no mesmo instante, precisamente ao fazê-lo, cria o mundo. A redenção consiste em retornar a supraconsciência e, por intermédio desse retorno, a dissolução do mundo.
Aí temos o grande tema, bem como a fórmula, do ciclo cosmogônico, a imagem mítica do processo de manifestação do mundo e do subsequente retorno à condição imanifesta [7]. Do mesmo modo, o nascimento, e vida e a morte do indivíduo podem ser considerados como uma descida à inconsciência, seguida de um retorno [8]. O herói é aquele que, embora ainda se encontre vivo, conhece e representa os apelos da supraconsciência – que é, ao longo da criação, mais ou menos inconsciente. A aventura do herói marca o momento em que este, embora ainda esteja vivo, descobriu e abriu o caminho da luz, para além dos sombrios limites de nossa morte em vida [9].
Assim é que os símbolos cósmicos são apresentados num espírito de sublime paradoxo, que põe o pensamento em polvorosa. O reino de Deus está dentro de nós e, não obstante, também está fora de nós; Deus, todavia, não é senão um meio conveniente de despertar a bela adormecida, a alma. A vida é o seu sono; a morte, o despertar [10]. O herói, aquele que desperta a própria alma, não é mais do que o meio conveniente de sua própria dissolução. Deus, aquele que desperta a alma, é, nesse sentido, sua própria morte imediata.
Provavelmente o símbolo mais eloquente possível deste mistério seja o do deus crucificado, o deus oferecido “ele mesmo a si mesmo”. Entendido numa das direções, o sentido é a passagem do herói fenomênico para a supraconsciência: o corpo, com os cinco sentidos – semelhante ao do Príncipe Cinco Armas grudado a Cabelo Pegajoso –, fica pendendo da cruz do conhecimento da vida e da morte. [...] Mas é igualmente verdadeiro que Deus desceu voluntariamente e colocou sobre si mesmo a carga de sua agonia fenomênica. Deus assume a vida do homem, que liberta o Deus que se acha em seu interior no ponto médio do cruzamento das hastes da mesma “coincidência de opostos”, a mesma porta do sol pela qual Deus desce e o homem sobe – Deus e o homem se alimentam mutuamente [11].
O estudioso moderno certamente pode examinar esses símbolos como lhe aprouver, quer como sintoma da ignorância do outro, ou como algo que lhe assinala a própria ignorância; quer em termos de uma redução da metafísica à psicologia, ou em sentido inverso. A forma tradicional consistia em meditar sobre os símbolos em ambos os sentidos. De qualquer maneira, os símbolos são metáforas reveladoras do destino do homem, bem como de sua esperança, fé e obscuro mistério.
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[1] Muitos compreendem os mitos de forma superficial, como se todos os que utilizam os mitos acreditassem literalmente que seres de pele azulada com enormes cabeçorras de elefante realmente andam pelos montes da Índia. Para estes o salto seria um “salto de fé”. Mas, para os que conhecem os mitos, e os sabem utilizar, tal salto é nada mais que um salto de compreensão ou, talvez, se poderia igualmente dizer: um salto da imaginação, da intuição e da consciência.
[2] Há uma longa discussão acerca de se a mente é aniquilada, ou apenas o “eu”, a personalidade desta vida. Quando místicos dizem “eu já não vivo, mas Deus vive em mim”, obviamente ainda preservam resquícios de sua antiga personalidade, porém, de agora em diante, vivem segundo os desígnios do Cosmos (ver, por exemplo, a parte final da Ética de Espinosa, para uma abordagem filosófica deste mesmo conceito). Como reencarnacionista, eu obviamente creio que apenas as personalidades se vão (como não somos, de fato, os mesmos de 15 anos atrás), enquanto que as potencialidades, as essências, caminham sempre à frente.
[3] Há que se separar aqui o conceito de “Deus” do conceito da “existência”, ou do antigo problema: “porque existe algo, e não nada?”.
[4] No livro, este parágrafo em realidade era uma nota ao final do parágrafo anterior. Devido à importância da nota, decidi trazê-la para cá.
[5] Lucas 17:21. O que não é tão frequentemente lembrado no Novo Testamento, por outro lado, é repetido inúmeras vezes no Evangelho de Tomé e outros textos gnósticos.
[6] Voltando a Espinosa: vemos as infinitas irradiações e divisões da Substância, mas não vemos a Substância em si – ou, pelo menos, não com os olhos.
[7] Somos irradiados de Deus, de uma ancestral condição de supraconsciência, e somos obrigados a viver no mundo manifesto, com uma consciência nublada de nossa origem que, não obstante, ainda paira nos arcabouços do inconsciente. O caminho de retorno, de religação ao Cosmos de onde viemos um dia, nada mais é do que a origem (inclusive etimológica) do conceito de religião, religare, religação, reconexão: Eis o ciclo cosmogônico presente em toda mitologia.
[8] Considerando a imensidade de vidas por que passamos, devemos igualmente considerar que este ciclo de nascimento, vida e morte, não é único e, portanto, serão ainda muitos mundos deixados para trás, e muitos mundos ainda por se manifestar.
[9] A única certeza que temos todos é a de que a morte não existe: o máximo que pode existir é vida após a vida. E, em não existindo uma continuidade, a morte também é nada. No entanto, há muitos de nós que vivem como se estivessem mortos, sem o pleno domínio de sua vontade, imaginação, intuição, liberdade, etc. A esta “morte” poderíamos chamar estagnação – e a Natureza detesta estagnação, daí que a dor é o melhor remédio para aqueles que temem simplesmente amar.
[10] A essa altura você já deve ter percebido que esta “morte” significa um renascimento em vida, um despertar da consciência, da bela adormecida, da alma. Vide nota acima.
[11] “Nós somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo”, já intuiu alguém pleno de espiritualidade.
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Crédito da foto: Roy McMahon/Corbis
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