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26.5.10

Navegar é preciso

Poema de Fernando Pessoa

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso."

Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essência anímica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.


***

Comentário
Além de interpretar seus diversos heterônimos, Pessoa era também mestre em interpretar palavras e simbolismos, de modo que muitas de suas poesias têm vários graus de interpretação – geralmente (mas não necessariamente) um mais profundo do que o outro, como nesse caso.

Esta é a origem da frase citada no poema: "Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra (cf. Plutarco, in Vida de Pompeu).

A primeira interpretação que muitos chegam, principalmente em focando somente a frase e não o contexto do poema, é a de que navegar, explorar o mundo ou até mesmo ser um guerreiro disciplinado é mais importante do que viver uma vida rotineira, sedentária e monótona.

A segunda interpretação envolve um olhar das entrelinhas da etimologia do jogo de palavras nesta frase. Nesse caso, navegar é preciso no sentido de ser uma atividade, uma ciência precisa; Já viver não é preciso no sentido de que a vida envolve não somente o lado racional, como também o emocional e o espiritual – viver não é nem nunca será, portanto, uma atividade precisa. Viver é deliciosamente ou terrivelmente impreciso, dependendo dos olhos de quem vê.

A interpretação derradeira e mais profunda (na minha opinião é claro) no entanto envolve parte do conceito das interpretações anteriores, com algo a mais. Pessoa quis dizer que para engrandecer sua pátria e colaborar com a evolução da humanidade, não lhe é necessário viver a vida egoisticamente como se esta fosse somente sua, e sim dedicar a vida – ou “perdê-la” – em prol da humanidade como um todo (sua pátria é o mundo e não Portugal).

Qualquer semelhança com alguns ensinamentos de Jesus não é mera coincidência. Mas além disso podemos ir um pouco mais além: a vida continua sendo imprecisa, mas navegar pelo oceano do mundo é mais necessário do que viver ancorado a sua aldeia (e dogma) local. O misticismo de sua Raça (com “R” maiúsculo) não é o misticismo dos portugueses ou dos homens de “raça branca” (na verdade raça não existe, apenas a espécie homo sapiens), mas o misticismo dos grandes sábios – esses que, como desejava Pessoa um dia o ser, viveram não para si, mas para toda a sua Raça.

***

» Veja também Navegar é preciso, uma coletânea em e-book dos textos místicos de Fernando Pessoa

Crédito da foto: jazz dalek

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24.5.10

O trabalho na era do conhecimento

"Vivemos num mundo onde, pela primeira vez, o conhecimento supera os fatores tradicionais de produção - terra, capital, matéria prima, energia e mão-de-obra - no processo de criação de riqueza. Mesmo em setores econômicos mais tradicionais, como a agricultura, a indústria de bens de consumo e de capital, a competição é cada vez mais baseada na capacidade de transformar informação em conhecimento e conhecimento em valor. Informação, conhecimento, criatividade e inovação são, assim, ingredientes básicos para todas as organizações que atuam nesta nova sociedade, sejam elas públicas ou privadas.

Mas, na prática, o que isto significa? Como criar novos modelos de negócio? E mais difícil ainda, como torná-los realidade, fazendo-os gerar resultados concretos? Que profissionais precisamos formar para fazer isto acontecer? Como devemos agir, no nosso dia-a-dia, para ajudar a construir esta sociedade do conhecimento?"

É com o texto acima que Marcos Cavalcanti - coordenador do Crie (Centro de Referência em Inteligência Empresarial) da COPPE/UFRJ - abre o primeiro post de seu excelente blog "Inteligência Empresarial" do O Globo Online.

Na palestra de aproximadamente 120 minutos que ele deu para o programa Café Filosófico da TV Cultura (em 18/09/09), ele destila algumas dessas respostas, enquanto trafega pelas eras agrícola e industrial, explicando o porque de já estarmos efetivamente em uma transição de eras, rumo a era do conhecimento - onde o foco da competição por recursos se desloca para a cooperatividade e compartilhamento do conhecimento.

Somente um pensador da gestão empresarial com certa sensibilidade poderia nos brindar com duas frases tão emblemáticas (e que dão o que pensar) enquanto fala sobre os rumos da sociedade moderna:

"O lucro é o oxigênio da empresa, mas viver é muito mais do que respirar." - Peter Drucker

"Navegar é preciso, viver não é preciso." - Fernando Pessoa


» Ver palestra na íntegra

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Crédito da imagem: Cena de "Tempos Modernos" (filme de Charles Chaplin, uma sátira da era industrial)

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22.5.10

Vida 2.0

continuando de Vida 1.0

“Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida a partir da vida” – James Joyce

Essa é uma três das frases “impressas” em trechos do código genético da primeira célula sintética “criada” pelo homem. Além disso, essa espécie tem “dentro de si” o endereço de um website e diversas instruções para interpretação do novo código lingüístico desenvolvido pela equipe de Craig Venter para poder inserir tais “marcas d’água” no código genético da nova criatura (“o código dentro do código dentro do código”).

Em 20/05/2010 Craig Venter anunciou a nova era da “ciência da criação”, e surgiu a Vida 2.0 – customizada por ela mesma... Quais os requisitos mínimos para um micróbio funcionar? Com essa pergunta originalmente na cabeça e US$ 40 milhões para gastar, a equipe de Venter foi capaz de “criar vida” a partir de informações armazenadas num computador.

O potencial biotecnológico é enorme mas os riscos associados à nova tecnologia não podem ser menosprezados. Ao montar o genoma do novo micro-organismo, a equipe eliminou os genes originais da bactéria Mycoplasma mycoides que as tornam nocivas às cabras. Eliminaram também as seqüências de DNA que permitiriam sua eventual reprodução fora de um laboratório de pesquisa. Só depois inseriram o material genético sintético numa versão “oca” de outra bactéria, a Mycoplasma capricolum.

Basicamente, eles “seqüestraram” uma célula e “assumiram o comando”, injetando nela um genoma essencialmente sintético. As questões técnicas não serão avaliadas a fundo aqui, mas a questão primordial é que nada aqui foi feito do nada - parafraseando Carl Sagan, “para se criar uma célula a partir do zero, você precisará primeiro inventar o universo”.

Mesmo assim, mesmo que os cientistas não tenham criado nada, eles deram um passo enorme na compreensão do mecanismo da vida. Tão grande foi este passo, nos ombros de gigantes, que podemos hoje não somente decifrar uma parte do “código da vida”, como interagir com ele, e customizá-lo! É como se tivéssemos uma Pedra de Roseta para a linguagem que informa a vida como ela deve se comportar... Ao invés de interpretarmos e redigirmos línguas esquecidas, estaremos agora interpretando e redigindo pequenos princípios de vida, pequenas bactérias talvez tão complexas quanto as que primeiro surgiram em nosso planeta.

Venter afirma que “criou” a primeira forma de vida cujos pais são um computador. Isso dá o que pensar... Código de computador, código genético, código – será que o código gera a si mesmo? Ou necessita de uma inteligência para construí-lo?

Carl Sagan passou boa parte da vida considerando a possibilidade do contato de inteligência alienígena com a Terra. Em sua célebre ficção “Contato”, esse contato se dá através do envio de ondas de rádios em intervalos que ditam os números primos. Os números primos são um código não natural, no sentido que não se encontram aleatoriamente na natureza. Ou seja, em sua ficção os cientistas do SETI tem aí uma confirmação do contato de inteligências alienígenas... Mas, e se o nosso próprio código genético não for também uma linguagem, um código que denota alguma inteligência por parte de quem o criou?

A física contém alguns números persistentes e importantes – a massa do próton, a massa do elétron, a carga elétrica das partículas subatômicas, a energia das forças fundamentais da natureza e assim por diante. Se muitos desses números fossem ligeiramente diferentes, não estaríamos aqui. Em outras palavras, torça a base fundamental e a física ainda seria funcional, mas as conseqüências dessas leis agindo sobre o universo não incluiriam formas de vida baseadas no carbono como nós.

As condições necessárias para se produzir carbono são tão “especiais” que o astrofísico Fred Hoyle chegou a especular, em um artigo intitulado “O universo: reflexões passadas e presentes”, que “um superintelecto está brincando com as leis da física”. Não é muito diferente da idéia básica dos deístas e panteístas.

Mas eu não quero aqui diminuir a conquista de Venter e sua equipe. Muito pelo contrário, quero exatamente demonstrar que independentemente do que nos criou – um ser divino, um superintelecto, uma equipe de cientistas alienígenas ou elementos vindos de algum outro lugar obscuro “na cauda dos cometas” –, e ainda que talvez nunca possamos ter uma ciência exata da causa, estamos caminhando a passos largos para decifrar seu efeito e seus sutis e elegantes mecanismos.

Apesar de não terem realmente criado nada, Venter e sua equipe sintetizaram vida a partir de vida pré-existente, e uma vida que poderá agora se auto-replicar. É preciso muito cuidado, já que não sabemos até onde essa vida irá chegar, e se será usada apenas para fins medicinais e ecológicos, ou também como instrumento de morte e destruição.

Mas com grande conhecimento vem grande responsabilidade. Não adianta pestanejar: a evolução não anda para trás... Teremos de lidar com novas questões éticas e tentar sobreviver a nossa própria ignorância.

Entretanto, se tudo mais der errado, se nosso futuro é realmente a extinção devido às mudanças climáticas ou as guerras nucleares – e biológicas –, ao menos agora temos uma nova chance de sobrevivência. É que se o apocalipse da vida terrestre realmente chegar, bastará enviarmos satélites com nossas bactérias sintéticas para o infinito do Cosmos. Enviar e torcer para que caiam nalgum dia em algum outro planeta em formação, de modo que a vida se reinicie, e se façam novas todas as coisas.

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Crédito da foto: Treehugger.com (Craig Venter palestrando no TED)

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Vida 1.0

Em um dos episódios da saudosa série de TV Cosmos, Carl Sagan inicia dizendo a seguinte frase: "Se você quiser fazer uma torta de maçã a partir do zero, você precisará primeiro inventar o universo."

De fato, como Parmênides bem definiu, ex nihilo nihil fit (do nada, nada se faz). Essa é uma questão que talvez ainda esteja além de nossa ciência por um bom tempo – talvez mesmo para sempre. Já a questão do surgimento da vida a partir de matéria inorgânica possa ser resolvida nalgum dia, pelo menos é algo que pela lógica nos parece mais viável, embora estejamos ainda muito distantes de desvelar tal mistério.

Uma das teorias mais consideradas sobre a origem da vida na Terra é a panspermia. Ela trata da hipótese segundo a qual as sementes de vida são prevalentes em todo o Universo e que a vida na Terra começou quando uma dessas sementes aqui chegou, provavelmente “na cauda de um cometa”. Em “O Universo Vivo” Chris Impey nos esclarece melhor a questão:

“Tanto cometas quanto meteoros podem transportar moléculas complexas para a Terra. Surpreendentemente, quando os cientistas simulam impactos, os aminoácidos não só sobrevivem ao choque, mas muitos se unem para formar polipeptídios ou mini-proteínas – intimamente ligados à origem da vida.

Os meteoritos também trazem um ingrediente vital: o fósforo. Esse elemento reativo é o quinto mais importante elemento biológico depois de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, embora sua produção pelas estrelas seja bem pequena. O fósforo é decisivo para a vida porque forma a espinha dorsal do DNA, e também é o ingrediente principal do ATP – trifosfato de adenosina – o combustível fundamental da vida.”

A panspermia procura solucionar um problema corrente nas teorias do surgimento da vida na Terra – ocorre que nas condições iniciais do planeta, provavelmente não tínhamos elementos suficientes para explicar sua obscura origem. Para o “milagre da primeira célula”, é preciso recorrer a elementos alienígenas. Vejamos o que Impey tem a dizer:

“A vida hoje não se parece com substâncias químicas flutuando em uma lagoa salgada, ou com moléculas complexas aprisionadas em uma superfície mineral. Todas as formas de vida, da menor bactéria até a sequóia mais imponente, são feitas de células. Depois que uma célula primitiva foi criada, o caminho para o alto ficou claro. Certamente ir de uma bactéria a um chimpanzé é um passo menor do que ir de uma mistura de aminoácidos a uma bactéria. Saber como se formaram às primeiras células é vital para que a ciência compreenda a origem da vida.

Mas essa questão ainda permanece em aberto. Apesar de nos dias atuais a ciência pelo menos fazer uma idéia básica de como o processo provavelmente se conduziu, nunca vimos moléculas se reproduzindo, nunca produzimos uma célula sequer a partir de elementos sem vida.”

Em suma: o mecanismo pelo qual as bactérias evoluíram ao longo dos milhões de anos de vida na Terra até a incrível diversidade biológica que encontramos atualmente, este é bem fundamentado pela revolução do pensamento e da ciência a partir da teoria de Darwin-Wallace. Já o mecanismo que deu efetivamente origem a vida, e que transformou matéria inanimada em células orgânicas complexas, possibilitando o surgimento do RNA e do DNA, este ainda intriga a comunidade científica, e não sabemos ainda quando poderá ser compreendido.

Entretanto, não há motivo para imaginar que o homem nunca irá solucionar tal enigma. Se considerarmos o ano cósmico – todo o tempo do universo comprimido em um ano imaginário – faltando 20 segundos para meia-noite, os hominídios evoluem para se tornar exatamente como nós, inventam as ferramentas e a agricultura, e constroem as primeiras cidades. A Revolução Coperniciana acontece quando falta um segundo para a meia-noite. A teoria de Darwin-Wallace e a biologia surgem dentro desses centésimos de segundo já no finalzinho do ano... Ou seja: se é verdade que a evolução da vida levou bilhões de anos na Terra, também é verdade que chegamos a um estágio inimaginável, uma verdadeira ebulição da informação e do conhecimento humano acerca do grande Cosmos a sua volta.

Carl Sagan dizia que “nós somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo”. Pois bem, até pouco tempo atrás a vida evoluiu por si mesma, no que costumamos chamar de “evolução natural”. A vida permitiu que seres humanos pudessem evoluir para chegar ao conhecimento necessário para descobrir o DNA, clonar algumas espécies e seqüênciar seu próprio genoma... Mas nesse momento chegamos ao anúncio de Craig Venter: a primeira forma de vida auto-replicante, a primeira bactéria “artificial” foi “criada” pelos cientistas de sua equipe.

Até aqui estivemos na Vida 1.0, agora chegamos a Vida 2.0

» continua em Vida 2.0

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Crédito da foto: Nepmet

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20.5.10

A música vai até você

A Companhia de Ópera de Filadélfia preparou uma surpresa para os homens e mulheres apressados em um mercado, próximo a um stand de fast-food. Além da beleza evidente no olhar dos desavisados, e do talento evidente dos intérpretes "à paisana", me pareceu interessante o choque entre o tempo "da correria e do almoço rápido" com o tempo da apreciação da arte. Que lindo contraste! Schopenhauer teria ficado mais otimista...

Trecho de La traviata, de Giuseppe Verdi, cantada em brindisi

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18.5.10

Soberania

Texto de Manoel de Barros em "Memórias Inventadas - A Terceira Infância" (Editora Planeta), Tomo X

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos.

E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.

E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura.

Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo — o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:

A imaginação é mais importante do que o saber.

Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.

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17.5.10

Meu semelhante

Eu ando pelo mundo dentre olhares e expressões
Promessas de curas e maldições
Acordos de paz que não podem seguir adiante
Pois os homens em suas guerras
Por riquezas ou santificações
Já não o vêem mais, meu semelhante

Nem a vida que lhes oferta a fronte
Nem os peixes nem as aves nem as vacas sagradas
Nada que nade, caminhe ou voe pelo horizonte
Nada, apenas esse fétido ouro negro
A escravizar aqueles que lhe buscam lá fora
Pois que são como cascas vazias, meu semelhante

Quem dera pudessem olhar o céu noturno
E ver sua luz trazendo as boas novas
De épocas em que não participamos
Não como homens, mas como átomos
Como luz a cruzar o infinito
Quem dera vissem suas estrelas
Como quem vê poesia em quadro negro
Como quem se alegra, mas guarda segredo

Que nem todos estão preparados para enxergar
O que vêem a olho nu
Preferem se iludir ou se entreter com essas sombras
Essas cascas de sentimento
Esses manuais de verdades absolutas
Esses códigos de ciência infalível
E promessas e barganhas de um mundo melhor
Um céu que está sempre lá fora a ser alcançado
Nunca aqui dentro, a ser amado

Eu quero conhecer só a ti, meu semelhante
Que estamos todos conectados:
Pela biologia, a vida.
Pela química, aos planetas.
Pelos átomos, as estrelas.
Mas é tão somente pelo agitar da mente
E pelas lentes claras do pensamento
Que percebemos que aqui sempre estivemos
Que sempre fomos semelhantes
Pois nunca um poderia estar fora do outro
Embora sua substância nos permeie a todos
Como o perfume dos amantes

Todo o turbilhão de partículas do cosmos
E todas as galáxias e estrelas
E todas as eras geológicas
E todas as poesias, e todas as equações
E todos os olhares e expressões
Todo amor e toda a gratidão para ti
A substância que não pode criar a si mesma
Mas que tudo o mais criou
Eu quero desvendar todos os mistérios e enigmas
Todos os códigos que nos ocultou
Dentre essa brisa de poeira vacilante
Eu quero conhecer só a ti, meu semelhante

raph'10

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Crédito da foto: Descubra o Cosmos (NASA)

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14.5.10

O mito da caverna comentado, parte 2

Texto de Platão em “A República”. Os comentários ao final são meus.

continuando da parte 1

Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?

Glauco - Com toda a certeza.

Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?

Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.

Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz [5].

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.

Glauco - Necessariamente.

Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna [6].

Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.

Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?

Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.

Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia? [7]

Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.

Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?

Glauco - Por certo que sim.

Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? [8] E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?

Glauco - Sem nenhuma dúvida.

Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível [9], não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.

Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la [10].

(Platão, A República, v. II p. 105 a 109)

***

[5] Na metáfora Sócrates discorre sobre o processo de evolução do conhecimento, e como ele necessita ocorrer passo a passo, gradativamente.

[6] Buscar o que sustenta a Criação, ou “porque existe algo e não nada”, é o estágio primordial da evolução do conhecimento – onde ela também pode ser confundida, não sem razão, com uma evolução espiritual. Não importa o que dizem os materialistas atuais, foi buscando a Deus que os grandes cientistas comporam suas equações e os grandes filósofos pautaram sua lógica. Qual Deus buscavam eles, entretanto, é algo próprio de cada um deles...

[7] Lembremos que não se trata de mudar de uma realidade para outra, e sim de retroceder a uma vida de ignorância. Ainda que quisesse, entretanto, já não mais conseguiria. Quem vê a luz uma vez e a compreende, jamais voltará a enxergar sombras.

[8] Aquele que compreende a essência das coisas – que sai da caverna – se torna um ser modificado. O que antes lhe interessava na vida dentro da caverna, não lhe interessa mais... Dessa forma, mesmo seus familiares e amigos mais próximos vão estranhar seu comportamento.
É isso precisamente o que ocorre com todos aqueles que “se iniciam” nos estudos mais profundos em filosofia, religião ou ciência. Um físico não conseguirá mais ignorar o baile de partículas do Cosmos, um budista não conseguirá mais ignorar o que compreende em suas meditações, e um filósofo não conseguirá mais viver sem o eterno exercício dos questionamentos existenciais... E todos esses serão agora “estranhos no ninho”, “excêntricos”, “loucos”, “nerds”, etc.
Isso não quer dizer que todo louco seja sábio. Muitas vezes, é apenas louco mesmo. Eis que os sábios são ainda muito poucos, e esta é a razão do mundo ser como é. Tolstói já dizia: “Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo”.

[9] O “mundo inteligível” não é um céu localizado fisicamente em algum lugar. Nem a “subida da alma” é uma elevação a esse céu mítico. O céu está na consciência de cada um, assim como a ascenção da alma corresponde a ascenção do conhecimento de si mesmo e da essência das coisas. Repito: não é o mundo que muda, somos nós!

[10] Platão nunca afirmou que compreendeu totalmente Sócrates. Eu não afirmo que compreendi totalmente este mito. Da mesma forma, Krishna, Lao Tsé, Buda, Jesus e tantos outros sábios jamais foram compreendidos totalmente, exceto pelos seres de igual estatura espiritual – muito provavelmente não estamos ainda entre eles.

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Crédito da foto: Diana Oliveros

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O mito da caverna comentado, parte 1

Texto de Platão em “A República”. Os comentários ao final são meus.

Trata-se de um diálogo metafórico onde as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão. No diálogo, é dada ênfase ao processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante, que vive de senso comum, e do filósofo, na sua eterna busca da verdade [1].

Sócrates - Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres [2] armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.

Glauco - Estou vendo.

Sócrates - Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.

Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.

Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?

Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?

Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?

Glauco - É bem possível.

Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?

Glauco - Sim, por Zeus!

Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados? [3]

Glauco - Assim terá de ser.

Sócrates - Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? [4]

Glauco - Muito mais verdadeiras.

» continua na parte 2

***

[1] Essa introdução ao texto foi transcrita da Wikipedia.

[2] Bonecos de pano ou marionetes. A metáfora fala sobre um teatro de bonecos e sobre os prisioneiros da caverna que crêem piamente que tal teatro corresponde a realidade.

[3] Há aqui um conceito importantíssimo para a compreensão do mito – algo que normalmente escapa as análises superficiais. Decerto vocês já ouviram críticos de Platão afirmando que sua filosofia nos deixa alienados da realidade física, nos convencendo de que existe uma mítica “realidade superior”, normalmente chamada de “mundo das idéias”.
Dizem esses que foi “culpa de Platão” toda essa alienação do mundo físico que encontrou ressonância no cristianismo... Ora, eu não vou nem questionar aqui o cristianismo, mas me parece que aqueles que acreditam que Platão nos aliena do mundo físico estão bastante equivocados em sua interpretação.
Vamos lembrar que Sócrates, o grande sábio que inspirou quase todos os textos de Platão, dava pouca importância à sociedade hipócrita de sua época (não tanto diferente da de hoje), mas não ao mundo físico e a natureza em si. Tanto que participava de rituais em celebração as estações e a época de colheita. Freqüentemente temos trechos de livros de Platão onde Sócrates conversa com seus discípulos em agradáveis passeios pela área rural. Não me parece, honestamente, que Sócrates era um alienado da realidade.
Repare que o mito não fala em duas realidades opostas, e sim em um plano de observação onde as coisas são vistas com clareza, e um outro plano onde as mesmas coisas são vistas sem tanta clareza (onde vemos apenas sombras das coisas em si). Ou seja: é a mesma realidade, e são as mesmas coisas, o que muda é tão somente nossa visão – consciência, conhecimento, compreensão – delas.
Sócrates não nos pedia para ignorar o mundo físico, mas sim para não considerar apenas a aparência superficial das coisas, e nos esforçar para buscar uma compreensão mais elaborada de sua essência. Dessa forma, assim como Jesus, Sócrates viveu sim neste mundo, embora soubesse que sua essência não pertencia a ele.
Eu particularmente acho que Nikos Kazantzakis (ateu) resumiu muito bem a questão em um diálogo de Jesus de “A Última Tentação de Cristo”: “Eu vi o mundo dos homens, e vi também o mundo espiritual. Me perdoa Pai, pois não sei qual é o mais bonito”.
O grande sábio carrega seu céu e seu “mundo das idéias” consigo, de modo que o mundo é o mesmo, mas sua visão dele é muito mais profunda e maravilhosa.

[4] Aí está o principal motivo porque a evolução do conhecimento deve se realizar passo a passo. De nada adiantaria transportar um selvagem canibal para uma academia de física – não se produziriam grandes cientistas na tentativa. Porque para o selvagem a academia seria um inferno, ainda que não tivesse mais que caçar seus alimentos. Na natureza as coisas seguem o seu próprio ritmo, e é importante que respeitemos o tempo de cada um.
Não se trata de “jogar pérolas aos porcos”, mas sim de ensinar os porcos a apreciar a casca da ostra, para que um dia possam apreciar também sua pérola... Passo a passo, mas sempre à frente.

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Crédito da foto: Zep10

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13.5.10

Processo

Texto de Marcelo Ferrari, livre-pensador.

De que adianta lutar contra uma vida que começa sem querer e acaba de repente?

O fim de toda busca humana é satisfazer o desejo. Só que o desejo não tem fim e o ser humano tem.

A lagarta não precisa buscar a borboleta, basta aceitá-la.

Num caminho eterno, não importa o tamanho do passo, importa o sentido.

Trecho de "Pra Boi Acordar".

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11.5.10

O homem que afirmava levitar

Trecho do Projeto Ouroboros

(O.) Vamos dizer que tenhamos ouvido falar de um homem que afirma levitar. E vamos dizer que ele já tenha realizado o fenômeno algumas vezes na presença de inúmeras testemunhas, e que muitas delas afirmem que de fato este homem levitou bem à frente de seus olhos. Digamos também que ele tenha de realizar uma espécie de meditação e invocar alguma espécie de auxílio divino para realizar o fenômeno, mas que ainda assim não consiga levitar mais do que alguns palmos acima do chão.
Não retirei esse exercício mental do nada, ele reflete mais ou menos uma média das características do que o conhecimento popular afirma acerca do fenômeno da levitação, e das pessoas que dizem levitar.
Dito isso, o que vocês teriam a me dizer acerca da possibilidade? Provável, improvável, possível ou impossível?

(I.) Certamente possível, há inúmeros relatos de santos católicos que levitavam, assim como de xamãs e yogis... Mas creio que para tal fenômeno se realizar tais homens tenham de ter uma comunhão com Deus própria das grandes almas!

(P.) Absurdo! Se formos confiar em todos os relatos do que os santos, xamãs e yogis fazem, teríamos antes que afirmar que a gravidade “nem sempre é a mesma”. O sistema-natureza teria então os seus defeitos de funcionamento...

(S.) Eu preferia responder com outra indagação: E seriam tais homens mais ou menos sábios, mais ou menos conectados a Deus ou ao Cosmos, somente porque levitam a alguns palmos do chão?

(O.) Precisamente minha amiga. Há mesmo muitas perguntas que se tornam secundárias ante à perguntas ainda mais profundas... Você acaba de nos trazer um belo exemplo.
Quando tocamos no tema de fenômenos sobrenaturais, freqüentemente caímos na questão superficial: se Deus permite ou não permite, se intercede ou não intercede... Ora, e o que Deus tem a ver com isso? O que pode lhe interessar se um homem na periferia de uma de suas bilhões de galáxias vai ou não conseguir levitar alguns palmos do solo?
Se estivemos falando de igualdade universal, de como a gravidade e outras forças naturais afetam a todos e à todo momento, sem distinções, e que por isso mesmo esse sistema-natureza seria “perfeito” – ao menos no sentido de que sua totalidade induz ao florescimento da vida, sem que para tal algum Criador precise interceder, modificando ou deturpando suas próprias leis –, então a questão da levitação se torna secundária ante uma outra questão bem mais profunda: e Deus acaso se “disporia a atender” a todos os chamados desses homens que afirmam levitar?

(S.) Não se disporia. Se é que algum homem pode levitar, o faz por suas próprias forças e conhecimento...

(P.) Concordo plenamente. Hoje mesmo temos algumas tecnologias que permitem a levitação, como a dos modernos trens de Xangai. Se é verdade que é possível levitar objetos até mesmo milhares de vezes mais pesados que um ser humano, não acredito que um homem consiga fazer levitar-se apenas pela “força do pensamento”, por auxílio divino ou qualquer outro efeito sobrenatural parecido.

(I.) Decerto o fenômeno da levitação não é algo para ser utilizado de forma leviana, como que para entreter platéias... Acredito que Deus possa sim interceder a favor daqueles que entram em contato estreito com Ele, e estão em comunhão divina.
Porém, não creio que o fenômeno seja um fim em si mesmo, e sim apenas um efeito de tal contato direto com as forças divinas.

(O.) Bem, acho que podemos chegar num consenso prévio sobre o assunto, meu amigo: você diria então que o fenômeno da levitação, em sendo real, não deveria ser utilizado como um “teatro” ou “show de mágica”, visto que Deus não deveria se sujeitar a esse tipo de evento?

(I.) Certamente, isso é algo sagrado, próprio da comunhão divina dos grandes santos da humanidade.

(O.) Então, se acaso o homem de nosso exemplo não fosse um grande “santo”, poderíamos pressupor que a alegação de que ele pode levitar é falsa de antemão?

(I.) Sim. Correto.

(P.) Levanta a mão e intercede na conversa.
Permita-me comentar: muito provavelmente falsa. Mas não inteiramente falsa, visto que não fomos lá para ver por nós mesmos, ou realizar algum tipo de estudo ou experiência objetiva para comprovar se é ou não uma fraude.

(O.) Surpreso.
Mas você acabou de afirmar que não acredita que esse tipo de fenômeno seja possível.

(P.) Correto: e eu não acredito mesmo. Porém, não posso afirmar objetivamente que seja falso sem estar lá para ver ou realizar um estudo. Da mesma forma, não acredito no relato das levitações de santos católicos, xamãs, yogis e etc., mas não posso afirmar objetivamente que não ocorreram.
Isso é o cerne do ceticismo: não crer sem evidências, não descrer sem evidências. Mas toda a prova tem de ser objetiva, e cabe a quem afirma provar o fenômeno... Enquanto o tal homem que afirma levitar não provar sua afirmação em algum experimento objetivo, replicável, e que não dependa apenas de relatos subjetivos de sua platéia, eu me reservo ao direito de não acreditar.
Mas não posso julgá-lo uma fraude a priori, por mais absurda que seja a sua afirmação, sem ao menos estar presente em seu “espetáculo” e encontrar algum mecanismo secreto ou truque de mágica pelo qual ele faça sua “levitação”. E, da mesma forma, não posso afirmar que é impossível que ele consiga levitar. É, na minha opinião, algo extremamente implausível, mas não impossível...

(O.) Parabéns, eis uma coerência de pensamento notável.

(P.) Obrigado amigo. Eu acredito que se Deus existe, também trata e ama da mesma forma crentes e descrentes. Assim como os céticos oferecem iguais oportunidades para que todos comprovem suas alegações, têm de tomar o cuidado para não atacar injustamente aqueles que teoricamente afirmam coisas absurdas. A ausência de evidência não é uma evidência da ausência.
No entanto, se fica comprovada a fraude, tenho o direito de tratar o homem que afirma levitar como um falsário. Até lá, entretanto, nada posso afirmar sobre suas intenções...

(O.) Fico feliz que tenha encontrado tamanho senso de justiça independente da crença em um Deus pessoal. Mas prossigamos em nosso exercício mental...
Acredito que a questão não está em se Deus intercede ou não intercede. Como concluímos ao longo de nosso diálogo, as leis naturais já operam à todo momento e o sistema-natureza provavelmente não necessita de uma interferência divina, ou de um “milagre” ou evento sobrenatural. Afirmamos isso através de nossas conclusões lógicas, e não porque fomos investigar a todo e qualquer evento em que algum homem afirme levitar ou realizar quaisquer outros fenômenos do tipo.
Simpatizo com a abordagem de nosso amigo P. para com o assunto: há certos fenômenos realmente implausíveis, mas não podemos afirmar que sua totalidade seja formada por fraudes. Talvez ocorram fenômenos ainda desconhecidos da ciência, talvez o homem que afirme levitar realmente consiga afetar campos magnéticos ao redor de seu corpo e, com algum mecanismo mental desconhecido, levitar por alguns momentos a alguns palmos do chão.
Mas, se é que tais fenômenos são possíveis, acredito que deveríamos lhes dar outro título: paranormais, e não sobrenaturais. Pois na natureza não há nada que possa “entortar” ou “desligar” as forças e as leis naturais, sequer por alguns momentos... No entanto, toda nossa ciência dos mecanismos naturais é ainda precária e infantil, e me parece ser plausível que muitos dos fenômenos compreendidos como sobrenaturais sejam apenas fenômenos paranormais ainda incompreendidos pela ciência.
Se, por outro lado, Deus realmente intercedesse a favor de certos homens, por mais “santos” que fossem, para “desligar” a gravidade por alguns momentos, ele estaria sendo injusto – no sentido estrito de estar tratando aos seres de forma desigual, privilegiando alguns poucos “santos” em detrimento de todos os outros.
Há menos que o fenômeno seja paranormal, que dependa de alguma técnica ou mecanismo desconhecido da ciência, mas que repouse apenas na vontade e nas forças do ser em si, não acredito que devamos aceitá-lo como plausível. Ao menos não em detrimento de toda a noção de igualdade universal há que estivemos ligando o conceito de justiça divina. O que me dizem?

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Crédito da imagem: Juanpri

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Ad infinitum (Projeto Ouroboros)

Desde que comecei a escrever sobre assuntos relativos a espiritualidade – algo que costumo classificar como filosofia espiritualista – tenho me perguntado do motivo de insistir em tentar definir ou conceituar o que não pode ser definido nem conceituado.

Os sábios antigos raramente nos deixaram algum escrito. Sócrates foi interpretado por Platão, Lao Tsé mal deixou alguma coisa escrita, a vida e os ensinamentos de Buda foram descritos por seus discípulos. Acredito que eles viviam plenamente a sabedoria, e por isso lhes era desnecessário deixar discursos escritos – mas talvez eles soubessem que seus seguidores iriam terminar por redigi-los a sua maneira.

Penso, seguindo essa lógica, que mesmo sem conhecer tais sábios, terminei por me tornar uma espécie de discípulo tardio de todos eles. Me intriga como as pessoas possam ignorar solenemente essa fonte de luz, e preferir muitas vezes assistir a um jogo de futebol, ir ao shopping, ver um filme de ação no cinema, ir rezar na missa, sair para beber...

Não me entendam mal, eu também faço tudo isso. A minha maldição é que raramente consigo me ater somente aos ditos afazeres mundanos. É difícil andar pelas ruas e não imaginar que cada ser é um caminho único do Cosmos conhecer a si mesmo, cada livro uma história com potencial para sacudir o meu mundo para sempre, e cada estrela na noite um reflexo de eras das quais nós homens não participamos – ao menos, não como homens. Essa é sim a minha maldição, mas há males que vem para o bem.

De certa forma, portanto, tenho escrito sempre sobre o mesmo assunto. Aqui no blog tenho feito isso de forma relativamente descompromissada e espontânea. Não que isso seja ruim, mas certamente sinto a necessidade de construir textos mais elaborados sobre um tema tão fantástico.

Dessa forma a pouco mais de um ano tenho escrito um livro, que vou chamar aqui de “Projeto Ouroboros” [1]. Ele trata de um diálogo amigável entre quatro personagens: S., O., P. e I., respectivamente.

Um deles é cético e agnóstico, o outro uma jovem filósofa, ainda outro um espiritualista com certa simpatia pelo oculto, e finalmente temos o teísta moderado. Acredito que essas personalidades resumem boa parte dos “lados da história” em uma discussão sobre o tema em questão.

Neste blog irei a partir de hoje postar trechos desse projeto em construção. Quanto a qual personagem corresponde a qual característica citada acima, assim como ao tema do livro em si, vou deixar que cada um se arrisque a descobrir por si mesmo.

Bem vindos ao Ouroboros: veja todos os posts do projeto.

Rafael Arrais, 12/05/10

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[1] Em 1/12/12 foi revelado o nome final do livro: Ad infinitum.

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Crédito das imagens: Benjamin [topo], Ori [ao longo].

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6.5.10

A busca pela verdade

Texto de Rafael Arrais, em homenagem ao grande poeta Gibran Kahlil Gibran.

Então Almitra [1] disse: fala-nos da busca pela verdade.

E ele respondeu:

Buscai a verdade como quem busca o horizonte.

Pois vós sabeis: o horizonte está sempre à frente. Não adianta se virar para outra direção nem pegar um atalho. O horizonte está além de qualquer atalho, e seu reino jaz no fim de todos os caminhos.

Mas não vos inquieteis com a imensidão do céu nem com a distância que vos separa da verdade. O infinito é dividido em eras, as eras são divididas em dias dos homens, e tais dias são divididos em momentos...

A cada momento a sua preocupação, e a sua verdade. Não acheis que algum momento trará “a verdade”, mas ficais satisfeitos se encontrardes “uma verdade”.

Povo de Orfalés, não busquem a verdade como quem busca um vagalume pela noite. Não confundais vagalumes com estrelas, nem pretendeis que ao agarrardes um com as mãos, que tenhais dominado uma verdade.

Que a luz não se detém nem com as mãos nem com a razão. Ela escapa, flui por entre caminhos invisíveis, e só se revela nos sonhos de vossas almas.

E as estrelas da noite, essas estão muito além do horizonte.

Cabe ao homem buscar a verdade neste mundo, para somente após se arremessar rumo às estrelas.

Que todos os dias dos homens são como um piscar de olhos da eternidade. E não há verdade que fuja dela. Toda a luz do mundo irradia da essência que está fora do tempo, além de vossos horizontes, no momento que é para sempre o mesmo...

Mas não nos demoreis muito em tais pensamentos, nem pretendais serem desbravadores de novas eras. Que todas as eras já foram desbravadas, e todas as verdades já foram descobertas.

Contentai-vos, portanto, em viver com alegria. Em buscar o horizonte não como quem quer salvar-se do mundo, mas como quem quer abraçar o céu inteiro, e dançar com as estrelas pela noite adentro...

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[1] Almitra é o personagem que faz a maior parte das perguntas para Almustafa, o escolhido e bem amado, personagem principal que dá voz aos ensinamentos de Gibran em sua obra-prima, “O Profeta”. Este texto, entretanto, é apenas uma homenagem ao grande poeta.

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» Parte da série "Após Gibran"

Crédito da foto: Larissa Januzzi

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3.5.10

Astrologia genética

Texto de Eva Jablonka e Marion J. Lamb em "Evolução em quatro dimensões" (editora Cia. das Letras) – Trechos das pgs.77 a 81. Tradução de Claudio Angelo. Os comentários e notas ao final são meus.

Infelizmente, o entendimento de muita gente da relação entre genes e caracteres é baseado nesse minúsculo conjunto de doenças monogênicas [1]. A visão popular é a de que os genes determinam, individual e diretamente, a aparência de uma pessoa e o seu comportamento. Nós temos genes para isso e aquilo (a cor dos nossos olhos, o formato do nosso nariz, o quanto somos tímidos, a nossa orientação sexual etc.), e a pessoa que você vê é em grande parte a soma dos efeitos dos genes dele ou dela mais um pequeno verniz social e educacional. O indivíduo é visto como pouco mais do que um robô, guiado por seus genes [2].

Obviamente, tal concepção de como os genes agem abastece a crença de que a biotecnologia dará enormes poderes aos geneticistas. As pessoas acreditam (e são incentivadas pelos cientistas a acreditar) que num futuro não muito distante os geneticistas conseguirão descobrir tudo a respeito delas apenas seqüenciando o seu DNA [3]. Não apenas os geneticistas poderão traduzir o “livro da vida” de cada pessoa como também serão capazes até mesmo de editá-lo, cortando os erros se necessário.

[...] A convicção de que o caráter de uma pessoa está “escrito nos genes” foi uma das razões para a reação histérica do público quando a clonagem produziu a ovelha Dolly. Aquela ovelhinha invocou uma estranha mistura de sentimentos, pois por um lado parecia oferecer a esperança da imortalidade pessoal [4]; por outro, porém, dava a impressão de que a nossa identidade individual única estava sob risco. Ambas as noções derivam da crença de que a relação causal entre genes e caracteres é simples e previsível – ou seja, que conjuntos idênticos de genes sempre produzirão fenótipos [5] idênticos. Essa convicção, no entanto, é muito enganosa e potencialmente prejudicial.

Nós não podemos garantir que no futuro não haja institutos de genética que finjam ler o futuro de um embrião no seu DNA. Se houver demanda, com certeza haverá pessoas dispostas a estabelecer esses institutos. No entanto, poucos geneticistas profissionais (ao menos em seus momentos mais lúcidos) acreditam em tal astrologia genética [6]. Isso apesar de incessantes alegações nos meios de comunicação de que o gene para a homossexualidade, o espírito de aventura, a timidez, a religiosidade ou de alguma outra característica mental ou espiritual foi isolado. Os geneticistas são em geral muito mais cautelosos em relação ao seu trabalho. Se você ler artigos científicos genuínos em vez de reportagens nos jornais sobre esses genes maravilhosos, vai perceber que na verdade o que se descobriu foi uma correlação entre a presença de uma determinada seqüência de DNA e a presença do caractere. De forma geral não fica claro que a seqüência de DNA tem uma relação causal com o caractere, e quase sempre fica bem claro que “o gene” não é condição necessária nem suficiente para o desenvolvimento do caractere.

[...] Estudar a genética humana não é fácil, pois os pesquisadores não podem controlar com quem as pessoas devem se casar e como elas devem viver [7]. Sempre há muitos fatores incontroláveis que poderiam estar influenciando aquilo que eles descobrem. Mesmo quando um estudo mostra que existe uma correlação entre a presença de um alelo [8] em particular com algum aspecto do comportamento humano, nós temos de ter cuidado em aceitar que essa relação seja causal. Por exemplo, precisamos saber se a associação observada é encontrada sob todas as condições e em todas as populações ou apenas na amostra estudada pelo cientista. Uma das razões pelas quais muitas celebradas descobertas dos “genes para” várias coisas terminaram em um silêncio constrangedor é que, quando começaram a seguir a descoberta original, os cientistas concluíram que a correlação não existia em outras populações. É muito raro que a associação entre um gene e um traço seja algo simples [9].

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Comentário geral
Aqueles que costumam ler meus artigos a algum tempo devem lembrar que abordei a questão do problema da evolução cognitiva em artigos como “A evolução desconhecida” e no mais aprofundado “Onde estarão os memes?”; Nesses artigos questionei a solução encontrada por teorias da biologia (os memes de Dawkins) e da psicologia (o Inconsciente Coletivo de Jung) para a questão da transmissão de características não físicas entre as gerações, e tentei demonstrar como a hipótese da reencarnação é ao mesmo tempo mais lógica e mais abrangente para a explicação do problema.

Pois bem, neste excelente livro (talvez revolucionário, tento pelas questões levantadas quanto por ser um dos poucos livros de grande alcance na divulgação científica atual escrito por mulheres – ver também, por exemplo, a excelente crítica recebida na Scientific American de Abril de 2010 [ano 8, #95]) as autoras trazem a primeira teoria inteiramente científica (leia-se, “ciência oficial” e/ou “não espiritualista”) que explica o problema levantado.

Sua teoria identifica quatro “dimensões” – quatro sistemas de herança que desempenham um papel na evolução: a genética, a epigenética (ou transmissão de características celulares, alheias ao DNA), a comportamental e a simbólica (transmissão através da linguagem e de outras formas de comunicação). Elas argumentam que esses sistemas são capazes de fornecer variações sobre as quais a seleção natural pode agir.

Não significa que explique alguns fenômenos como o das crianças que se lembram de vidas passadas, mas ao menos trata-se de uma teoria muito mais sólida, plausível e abrangente do que as propostas por Dawkins, Jung, pelos psicólogos evolutivos e ainda muitos outros.

O importante é que elas estão, verdadeiramente, caminhando adiante – e não estagnadas em um “genecentrismo” que nada mais é do que um antigo dogma da biologia.

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[1] Doenças de origem em componentes genéticos que se resumem a alterações de um único gene. São menos de 2% do total de doenças genéticas mapeadas – a maioria envolve a interação complexa de inúmeros genes e muitas vezes do ambiente em si.

[2] Essa é precisamente a visão do determinismo genético. Uma visão que vem se provando cada vez mais falha com o passar dos anos, e da divulgação de estudos mais honestos e corajosos sobre a evolução das espécies – em particular do homo sapiens.

[3] É o sonho neo-modernista do “autoconhecimento fast food”. As pessoas estão tão distantes delas próprias que crêem piamente que poderão “se descobrir” pelo seu DNA. As pessoas ainda vão sofrer muito, sem idéia do que fazer com seu sofrimento, e a indústria do “antidepressivo tarja preta” agradece...

[4] Como se a imortalidade (física) fosse resolver nossos problemas... Mas isso já é uma outra história.

[5] O fenótipo são as características observáveis ou caracteres de um organismo como, por exemplo: morfologia, desenvolvimento, propriedades bioquímicas ou fisiológicas e comportamento. O fenótipo resulta da expressão dos genes do organismo, da influência de fatores ambientais e da possível interação entre os dois.

[6] Seria melhor recorrer à astrologia tradicional, que tem muito mais a ver com uma “previsão” das potencialidades e da personalidade do bebê, do que o que vem codificado em seu DNA – e trata apenas de características físicas. Mas não quero aqui discutir sobre a astrologia em si, deixo isso para meu amigo Marcelo Del Debbio, que a conhece bem mais do que eu.

[7] Muitos pesquisadores investigam certas regiões da Índia onde a tradição dos “casamentos familiares” entre primos é seguida a milênios. Se existe alguma “raça pura” no sentido de ter seus genes restritos a um pequeníssimo grupo de pessoas a incontáveis gerações, ela está na Índia – e é bem mais fácil “isolar genes” entre eles.

[8] Um alelo é cada uma das várias formas alternativas do mesmo gene. Por exemplo, o gene que determina a cor da flor em várias espécies de plantas - um único gene controla a cor das pétalas, podendo haver diferentes versões desse mesmo gene. Uma dessas versões pode resultar em pétalas vermelhas, enquanto outra versão originará pétalas brancas.

[9] Não somos máquinas nem robôs, não adianta buscar “manuais de código fonte” para nos decifrar. Esse tipo de conhecimento será sempre um conhecimento “pela metade”, ou até bem menos da metade. Pretender que seres que interpretam informação se assemelhem a máquinas que simplesmente a computam é algo tão ou mais fantasioso quanto crer na literalidade bíblica.

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Crédito da imagem: Autism News

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2.5.10

Ponto de encontro

Poucos se interessam pela etimologia – o significado e a origem das palavras –, talvez porque nunca tenham pensado mais aprofundadamente sobre o assunto, talvez porque creiam que todas as palavras e todos os idiomas tenham surgido de uma forma meio mágica, como no mito da Torre de Babel.

Eu penso na cor laranja: ela compartilha seu nome com a laranja, a fruta. Eis um belo exemplo de como o nome de uma coisa concreta – a fruta – deu origem ao nome de um conceito abstrato – a cor, nada mais do que um dos espectros da luz quando refletida pela superfície de uma laranja madura. Mas a cor laranja é assim chamada na língua latina, originária da antiga Europa; certamente em outros lugares do mundo, em outros idiomas, não teremos essa curiosa associação entre a fruta e a cor, simplesmente porque as laranjas não cresciam em todas as partes do mundo...

Ainda numa analogia próxima, podemos nos lembrar dos esquimós, ou de todos os povos que se desenvolveram nas zonas gélidas, mas principalmente os da América do Norte. Se perguntarmos quantas cores um esquimó vê no horizonte gelado de suas casas, eles nos darão uma lista de praticamente meia-dúzia delas – no entanto, nós vemos apenas branco. É preciso um longo convívio com os esquimós para compreender a importância das variadas gradações de “cinza-creme” para “cinza-branco” e finalmente o “branco-branco”: é através delas que eles conseguem se orientar em um “deserto de gelo”, inclusive identificando onde temos o gelo mais fino, onde é arriscado trafegar com muito peso (bem, hoje em dia eles estão modernos, caçam com motos de neve e aposentaram os trenós puxados por cachorros – some o peso da pesca e da caça e não é difícil compreender a necessidade de se evitar o gelo fino).

Nas civilizações e crenças humanas, ocorre algo um tanto parecido. Cada povo desenvolveu um sistema próprio de escrita e linguagem, um sistema próprio de arte e cultura e, sobretudo, um sistema próprio de lidar com o sagrado. Todos nós lidamos com os mistérios do nascimento e da morte, com as atribulações da vida em sociedade, com a doença e os vícios, a guerra e a paz, o amor e a indiferença – mas acima de tudo lidamos com a natureza, com esse Cosmos infinito a nossa volta, com esse “Deus-Branco” ao qual cada povo deu um nome, e talvez ao qual, assim como os esquimós, cada povo defina através de inúmeras gradações de branco, muito embora o chamem simplesmente de Deus, de “O Grande Branco”.

Essa talvez seja a origem de tantos conflitos entre os povos: é que um não consegue compreender o outro, pois cada povo traz consigo séculos de cultura e linguagem, séculos de interpretações de conceitos e símbolos, e às vezes é muito complicado fazer com que outros povos o entendam. Não adianta simplesmente dizer: “Olha só, eu creio em Krishna e você crê em Allah, e nosso vizinho crê em Jeová, mas eles são todos nomes para uma mesma coisa, um mesmo conceito.” – Pois falar é fácil, difícil é se fazer entender. Porque o deus de um afirma que somente aqueles que rezam ajoelhados em uma direção são dignos, enquanto outro afirma que somente aqueles que crêem em seu filho serão salvos, e ainda outro afirma que antes da salvação ainda serão necessárias inúmeras vidas de purificação espiritual... E daí que todos criaram nomes para o mesmo conceito? A questão é que nenhum parece ter compreendido o conceito em si, a abrangência do sagrado.

Dessa forma, assim como as gradações de branco das cores dos esquimós no fundo são simplesmente branco (embora seja necessário para eles identificar todas as gradações), no fundo um Criador universal, uma substância primeira que originou todas as demais, só pode ser simplesmente “O Grande Branco”. Mas ninguém parece se preocupar em compreender o porquê de cada povo dar um nome diferente ao Branco – e a todas as suas gradações.

Ao invés de colocarmos um “deus-barreira” entre nós, seria muito mais interessante nos focarmos na compreensão uns dos outros, e do porque cada povo chegou a sua conclusão sobre o sagrado, o Grande Mistério, a substância primeira. Dessa forma não nos isolamos uns dos outros, nem entre espiritualistas nem entre agnósticos e ateus – pois em todo caso todos vivem na mesma realidade, todos caminham pelo deserto do mundo e eventualmente encontram laranjas e horizontes de gelo. Todos têm de lidar com o sagrado, mesmo que sua forma de lidar seja o ignorando.

Levantemos a barreira, criemos um ponto de encontro nas vielas estreitas de nossas metrópoles existenciais. Que seja uma praça, um bar, um lugar onde se toma café, um jardim, um pórtico, uma trilha em torno da cidade... Qualquer lugar onde possamos falar do mundo, do sagrado, de Deus e de nós mesmos, sem que um “deus-barreira” ou um dogma se interponha entre nós. Os pensamentos cristalizados, solidificados, represados, não são nem pássaros a voar nem rios a fluir, mas a mais pura angústia, o mais puro sofrimento de ter de se viver ancorado a crenças impostas, a “mandamentos” que não fazem mais sentido – pois não somos mais fugitivos em um deserto escaldante.

Hoje temos o mundo todo no controle remoto, e principalmente, boa parte do conhecimento do mundo ao alcance de uma máquina acessível à imensa maioria dos que tem o luxo de poder se dedicar a amar tal conhecimento. Mas toda informação e toda tecnologia do mundo de nada nos adiantará se continuarmos a viver isoladamente, sem nos encontrar alguma noite da semana em nosso ponto de encontro, sem procurar compreender como o outro pensa, como o outro sente, como o outro lida com o sagrado.

É preciso aprender a pensar por si próprio, a romper à represa e deixar a água correr livre para o oceano, a abrir à gaiola e deixar o pássaro decidir que rumo tomar no horizonte; Então poderemos acordar num céu de liberdade, onde todos foram convidados, e onde os primeiros a chegar não se preocuparam em adorar o “deus-ausente”, mas se comprometeram a serem eles mesmos as mãos e os olhos de Deus.

No ponto de encontro, os anjos comparecem todos os dias com os convites para esse novo mundo – um mundo onde o laranja e as demais cores, e todas as gradações de branco, se unem em uma só luz, em um branco infinito... Basta-nos achar o jardim onde os anjos pousam, e prosseguir nessa viagem sem fim pela imensidão do Cosmos.

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Crédito da imagem: jlmccoy

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