Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.
[Raph] Em sua origem na pré-história, há enorme evidência de que as crenças religiosas antigas compreendiam a natureza como uma espécie de “teia viva”, onde cada elemento natural era animado por algum espírito. Com o advento das doutrinas monoteístas, tais crenças foram reprimidas, e houve época em que se acreditou que escravos e animais não tinham alma...
Também na ciência, o que “anima” a matéria é um mistério. O astrobiólogo Chris Impey (citando a microbiologista Lynn Margulis) diz que “certamente ir de uma bactéria a um chimpanzé é um passo menor do que ir de uma mistura de aminoácidos a uma bactéria” [1]. A vida parece desafiar a entropia universal, mas ao mesmo tempo sabemos que somos também formados por elementos inanimados, forjados em estrelas distantes.
Essa sem dúvida não é uma questão fácil: que é, afinal, a vida?
[Mori] Bem, levou menos de um bilhão de anos desde a formação do planeta para que surgisse vida em sua superfície, na forma das células mais simples. Passaram-se quase 3 bilhões de anos para que essas células ficassem mais complexas e formassem o primeiro organismo multicelular. É algo difícil de compreender, mas foi à parte mais longa da jornada da vida na Terra. Mais longa do que o caminho dos aminoácidos à primeira célula, e mais longa do que o caminho das bactérias até o chimpanzé.
A analogia mais poderosa – e provocadora – que eu poderia oferecer aqui é à própria vida de Jesus segundo o evangelho. Damos muita importância ao seu nascimento, bem como à sua trajetória depois que começou a pregar seus ensinamentos, já adulto, já como uma forma de vida multicelular desenvolvida. Porém a maior parte da vida de Jesus, cronologicamente, é algo como a maior parte da duração da vida na Terra. Não se passou em seu surgimento ou na sua espantosa evolução de bactérias a chimpanzés. Foi bilhão, bilhão, e mais um bilhão de anos como formas de vida muito simples evoluindo muito lentamente.
Então, sim, a distância de um chimpanzé a uma bactéria é um tanto menor do que a de uma bactéria, eucariota, a uma sopa de aminoácidos, mas nosso entendimento científico hoje fornece uma perspectiva inusitada. Vida simples, como a que surgiu em um piscar astronômico de tempo na Terra, pode ser muito comum por todo o Universo. O “mistério” do surgimento da vida pode ser em verdade um caminho natural da físico-química. O lampejo do aminoácido à célula se acende rápido. Vida elementar pode ser ubíqua pela Galáxia. Porém o monte improvável dessa vida simples até organismos multicelulares seria extremamente difícil de escalar, ainda que uma vez vencido, leve então a uma explosão de diversidade e complexidade biológica que possa levar, inclusive, a macacos que vislumbrem todo este processo.
No que eu deva parecer me desviar da pergunta principal e ater-me a detalhes, mas veja, aqui está uma das belezas da ciência. Dos detalhes observados e comprovados no mundo que nos cerca, do conhecimento direto do mundo natural, podemos extrair visões que dificilmente atingiríamos pela mera filosofia. A partir destes detalhes constatamos um aparente paradoxo profundo, pelo qual a maior dificuldade não é nem que a vida surja, nem que evolua de uma simples bactéria a um cientista que estude bactérias, mas que dê o salto de uma célula simples a um simples grupo de células com membranas.
Parece menos misterioso, e mais relacionado à entropia, probabilidades e seleção natural, não? Pois essa é a perspectiva factual que a ciência pode oferecer sobre a vida. E uma provisória, claro, sempre aberta a novas descobertas.
Mas afinal, o que é a vida? Dificilmente encontraremos muitos biólogos dedicando suas vidas em busca da definição última do que seja a vida. Trabalham sim com definições utilitárias, úteis dentro de seu campo, e que possam ser deixadas de lado tão pronto se altere o contexto da pesquisa. Não se confunde o mapa com o território, o mapa é apenas uma ferramenta para conhecer o território.
Há um vasto território a se conhecer sobre a vida, muitas surpresas mais antes que possamos nos atrever a definir de uma vez por todas o que é, afinal, a vida. E a ciência não é, por certo, a única forma de explorar o que é, afinal, a vida. Não apenas pareço me desviar da pergunta principal, ela é mesmo difícil e eu realmente não posso respondê-la, afinal. Só espero que o desvio tenha valido a pena.
[Del Debbio] O maior problema em se definir “Vida” é que, para o Hermetismo, a vida não é um objeto ou substância, mas sim um processo contínuo.
A definição mais aceita de vida na biologia, segundo Paul Davidson (How to Define Life, University of Alabama), é que vida é definida por qualquer ser que apresente os seguintes fenômenos: Homeostase (regulação do ambiente interno para manter um estado constante); Organização (ser composto de células); Metabolismo (a transformação de energia em ingredientes essenciais para a sobrevivência das células); Crescimento; Adaptação; Resposta a Estímulos e Reprodução.
Para os Hermetistas, esta definição pode ser estendida também para Pensamentos e Emoções. Pensamentos (e emoções) nascem; crescem; desenvolvem-se; regulam-se para que continuem existindo; organizam-se em idéias, vontades e Egrégoras; utiliza-se de energia dos hospedeiros (as mentes); mutam; adaptam-se e eventualmente definham e morrem, seguindo as mesmas regras definidas pelas leis da Evolução de Darwin, apenas mais sutis.
O biólogo Richard Dawkins chamou estas unidades de Memes em seu trabalho de 1976, O Gene Egoísta. Um Meme é considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros ou armazenado na internet). No que diz respeito à sua funcionalidade, o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma se autopropagar. Os memes podem ser idéias ou partes de idéias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autônoma. Foi o mais próximo que a ciência chegou do estudo das Egrégoras até agora.
Mesmo que o espiritualismo aceite a definição de vida como todo o processo de evolução, dentro ou fora dos corpos físicos, utilizamos o nome “Consciência” para isto, então foge um pouco do escopo específico da pergunta e me fixarei apenas na resposta para a palavra Vita (vital, em latim).
Na Kabbalah, a consciência vital está representada na letra Alef, que conecta simbolicamente as Esferas de Kether e Hochma e representa o “Sopro de Deus” (sem nenhuma conotação sobrenatural; apenas a essência, seja ela qual for, que anima cada ser vivente em particular) e o corpo que esta consciência habita está representado pela letra Beit, que conecta simbolicamente Kether e Binah e representa o “Templo de Deus”.
Quando realizamos nossa Verdadeira Vontade, diz-se que “o Sopro Divino habita o Templo do Ser” (quando nos tornamos pessoas éticas, verdadeiras e honradas, vivendo para um propósito construtivo), então, a partir daí, nos tornamos Alef e a letra Beit passa a representar o templo onde habitamos (nossa casa, nossa escola, nosso trabalho). Quando realizamos nosso dom e modificamos nossa casa, tornando-a um exemplo, a Casa torna-se Alef e a comunidade passa a ser Beit (o espírito da vontade inserido em um novo corpo, em um âmbito maior), e assim, sucessivamente, até que toda a humanidade se torne ética, nobre e honrada, tornando-se Alef, quando o “Templo Sagrado” será o próprio Planeta, modificado para melhor. Nesse simbolismo, podemos considerar o planeta como algo “que tem vida”.
Das letras Alef e Beit temos a origem do termo Alfa-Beta (alfabeto) que forma o conjunto de símbolos que cria e molda nosso entendimento da realidade, ou seja, o corpo total das idéias e pensamentos do Universo (ou memes, se preferir).
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[1] Em O universo vivo (Ed. Larousse). Gostaria também de homenagear a memória de Lynn Margulis com este post. De muitas formas, além da própria citação, ela tem a ver com esta série: casou-se ainda jovem com Carl Sagan, e teve com ele Dorian Sagan, que também é divulgador de ciência. Lynn também defendia ideias "fora da caixa" na ciência, e chegou por exemplo a defender a hipótese Gaia, que considera a própria Terra um ser vivo (o que o Del Debbio chega a citar, dentro do ocultismo, em sua resposta acima). Mas, talvez o mais supreendente é que Lynn faleceu ontém, no mesmo dia em que o Mori enviou sua resposta e me lembrou que o trecho do livro de Impey era baseado em uma citação dela. Vida, morte, e tudo se renova... Mas, citando um grande sujeito (e acho que pelo menos aqui todos iremos concordar): "viver na memória daqueles que nos amam, é viver para além da morte".
Crédito da imagem: Frans Lanting/Corbis
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