Um efeito estranho, parte 2
Texto de Mario Beauregard (Ph.D.) e Denyse O’Leary em "O cérebro espiritual” (Ed. Best Seller) – trechos das pgs. 184 a 187. Tradução de Alda Porto. As notas ao final são minhas.
Como vimos, várias linhas de comprovação demonstram que os fenômenos mentais alteram significativamente a atividade cerebral. Essas linhas incluem nossos estudos de IRMf (Imagem por Ressonância Magnética Funcional) sobre observação emocional objetiva e o impacto da terapia comportamental cognitiva na fobia de aranha [1], além dos estudos de neuroimagens funcionais do efeito placebo. Os resultados dessa última série de estudos deixam bem claro que a atividade cerebral pode ser motivada pela crença e pela expectativa mental do paciente em relação a um tratamento médico proposto [2].
Para interpretar os resultados desses estudos, precisamos de uma hipótese que explique a relação entre atividade mental e atividade cerebral. A hipótese da tradução psiconeural [HTP] é uma delas. Postula que a mente (o mundo psicológico, a perspectiva da primeira pessoa) e o cérebro (que faz parte do chamado mundo “material”, a perspectiva da terceira pessoa) representam dois domínios diferentes em termos epistemológicos que podem interagir porque são aspectos complementares da mesma realidade transcendental.
A HTP reconhece que os processos mentais (tais como vontades, metas, emoções, desejos e crenças) são naturalmente demonstrados por exemplos no cérebro, mas afirma que não são idênticos nem podem ser reduzidos a processos neuroelétricos e neuroquímicos [3]. Na verdade, os processos mentais – que não são passíveis de localização no cérebro – não podem ser eliminados.
O motivo de não ser possível localizar os processos mentais dentro do cérebro é o fato de não haver nenhuma maneira de apreender os pensamentos apenas pelo estudo da atividade dos neurônios. O problema é semelhante ao de tentar determinar o sentido de mensagens em uma língua desconhecida (pensamentos) apenas pelo exame de seu sistema de escrita (neurônios). Seria necessária uma Pedra de Roseta para compará-las com o sistema de escrita de uma língua conhecida. Mas não existe tal pedra e, portanto, é impossível qualquer comparação [4].
Em consequência, a terminologia mentalista que descreve esses processos permanece absolutamente essencial para uma explicação satisfatória da relação entre a dinâmica cerebral e o comportamento humano. Ninguém jamais viu um pensamento ou um sentimento, mas eles exercem tremendo impacto em nossa vida. Além disso, segundo a HTP, os processos conscientes e inconscientes são automaticamente traduzidos em processos neurais nos vários níveis da organização cerebral (redes biofísicas, moleculares, químicas). Por sua vez, os processos neurais resultantes são depois traduzidos para processos e eventos em outros sistemas fisiológicos, como o sistema imunológico ou endócrino.
[...] Em termos metafóricos, podemos dizer que o mentalês (a língua da mente) é traduzido para o neuronês (a língua do cérebro). Por exemplo, pensamentos aflitivos aumentam a secreção de adrenalina, mas os felizes aumentam a secreção de endorfina [5]. Esse mecanismo de transdução informacional representa destacada realização da evolução que permite que os processos mentais influenciem causalmente o funcionamento e a plasticidade do cérebro. De certo modo, é como escrever nossas palavras faladas num sistema de símbolos que pode ser lido por outros a distância.
[...] Uma evolução biológica teleologicamente orientada (isto é, intencional, em vez de aleatória) permitiu aos seres humanos moldar, de maneira consciente e voluntária, o funcionamento de nosso cérebro. Em consequência dessa poderosa capacidade, não somos robôs biológicos governados por genes e neurônios “egoístas”. Um dos resultados é podermos, de forma intencional, criar novos ambientes sociais e culturais. Por meio de nós, a evolução se torna consciente, isto é, impulsionada não apenas por instintos de sobrevivência e reprodução, mas também por complexos conjuntos de percepções, metas, desejos e crenças [6].
Em minha opinião, as realizações éticas resultam do contato com uma realidade transcendental por trás do universo [7], e não apenas da multiplicação de neurônios no córtex pré-frontal do cérebro humano. Não se sabe com clareza se, por si mesmos, os neurônios desenvolveriam algum sistema ético.
Graças ao mecanismo da tradução psiconeural, os valores associados a determinada visão do mundo espiritual podem ajudar-nos a governar nossos impulsos emocionais e a agir de maneira genuinamente altruística [8]. Nesses casos, a consciência moral substitui a programação inata como reguladora de comportamentos. Por sua vez, a capacidade de comportamentos racionais e éticos liberta-nos dos primitivos mandatos do cérebro da classe dos mamíferos [9]. Tal liberdade é responsável pelo fato de que, embora o genoma seja o mesmo em todas as sociedades humanas, algumas culturas valorizam e fomentam a violência e a agressão, enquanto outras as julgam negativas e jamais as empregam.
Por sorte, muitas culturas também começaram a incentivar as pessoas a se mover além do senso de obrigação com os familiares ou grupo social para uma apreciação e compaixão por toda vida, sobretudo por outros seres humanos, porque podemos com muita facilidade identificar-nos com eles.
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[1] Citado em outro trecho do livro. Basicamente se trata de uma técnica para ensinar uma mente a, lentamente, abandonar sua fobia de aranhas. Sim, a terapia envolve muitos contatos diretos com aranhas, só que em condições estritamente controladas.
[2] Por muito tempo nada poderia ser feito objetivamente ante a alegação cética de que os espiritualistas “simplesmente fingiam experiências místicas”... Hoje, entretanto, as tecnologias de scanning cerebral têm comprovado, objetivamente, que gente como budistas e freiras carmelitas (neste último caso, incluindo um estudo do próprio Dr. Beauregard) não somente têm efetivamente tais experiências, como muitas das “redes de luzes” que se acendem em seus cérebros parecem fazer parte de um “reino místico”, reservado somente a certos tipos de experiências contemplativas.
[3] Ou seja, não se pode, ao observar a luz passando por um poste de luz, afirmar que aquele poste a gerou. Sabe-se que, num blecaute, nenhuma luz passaria por ali... Então, talvez, no caso do cérebro (e dos bilhões de postes de luz neuronais), esta usina oculta do pensamento também exista em algum território por ser descoberto.
[4] Segundo o filósofo americano John Searle, a consciência poderia ser imaginada como um “quarto chinês”: neste quarto estariam armazenados todos os dicionários e regras de gramática associados ao idioma chinês. Dentro dele haveria um homem capaz de traduzir e responder às questões escritas em chinês manipulando esses recursos, apesar de não saber falar uma única palavra nessa língua. Então, alguém que enviasse a frase “Como está o dia hoje para você?” poderia receber a resposta “Horrível!”, no mesmo idioma. Visto de fora, poderia parecer que o homem no interior “entendeu” a questão, mas Searle argumenta que esse comportamento não é suficiente para a compreensão. Da mesma forma, um computador nunca poderia ser descrito como “tendo uma mente” ou “compreendendo”. Já o cérebro poderia ser tão somente “um supercomputador pilotado pela mente”. Outros filósofos argumentam que a compreensão consciente seja tão somente o processo de “se comportar como se entendesse”.
[5] É impressionante como este fato extraordinário passa desapercebido pela grande maioria de nós, inclusive dos neurocientistas: pensamentos causam alterações fisiológicas que podem ser efetivamente medidas – logo, eles existem (objetivamente), e eles podem alterar nossa realidade corporal. Isto é um fato.
[6] A Natureza nos guiou na guerra da fome e da morte por bilhões de anos, mas a partir do momento em que nasce a consciência, em que o ser “desperta para si mesmo”, aparentemente a ascensão é repentina. Em apenas algumas dezenas de milhares de anos, estamos nós aqui, com o conhecimento e a tecnologia para efetivamente intervir na evolução de nossa própria espécie – esperemos que para melhor.
[7] Algo que pode ter ocorrido mais cedo em nossa história do que muitos imaginam.
[8] Isso não é exclusividade de espiritualistas e religiosos, mesmo os céticos, os cientistas materialistas e os ateus podem ser altruístas. A ironia é que, mesmo em alguns casos não crendo que sequer possuem uma mente, é através dela que elaboram suas próprias ações altruístas.
[9] Embora obviamente seja uma liberdade parcial; Ainda que nossa vontade muitas vezes não subjugue o puro instinto animal, fato é que pelo menos em algumas vezes a vontade vence – e a liberdade de escolha, de fato, existe!
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Crédito da foto: learnpure.com
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