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31.5.13

As mãos sujas de plástico podem ser limpas

Ocean Cleanup Array

Há alguns anos postei aqui no blog um vídeo do Fantástico sobre o chamado "Lixão do Pacífico", uma imensa ilha de plástico e outros detritos leves formada pela circulação das correntes marítimas. Era um alerta sobretudo para nós mesmos, e por isso achei por bem intitular o post "As mãos sujas de plástico"... De fato, uma notícia desanimadora, mas que precisava ser dada. Pensemos em quanto plástico usamos e descartamos todos os dias, e até algum tempo atrás nenhum plástico produzido no mundo era biodegradável; e mesmo nos dias atuais, devido ao custo um pouco mais elevado, o plástico biodegradável ainda está muito longe de se tornar a norma. Além disso tudo, ficava difícil imaginar que o "Lixão do Pacífico" poderia um dia deixar de existir. Pelo contrário, a tendência seria aumentar cada vez mais e mais, com grande dano para o meio ambiente e sobretudo para a fauna marinha e as aves, que usualmente confundem os pequenos detritos plásticos com alimento, e acabam se envenenando...

Mas isto foi até hoje. Hoje conheci Boyan Slat, um jovem holandês estudante de engenharia. Ele desenvolveu o projeto de uma máquina que seria capaz de retirar mais de 7 milhões de toneladas de plástico dos oceanos. O invento se chama Ocean Cleanup Array, e se trata de uma estrutura (parecida com uma arraia marinha) que se comporta como um gigantesco filtro. Ela seria posicionada em pontos estratégicos dos oceanos, onde há maior concentração de lixo, e seria capaz de recolher todo o material flutuante levado pelas correntes do próprio oceano. Após isso uma equipe recolheria o material coletado e separaria a vida marinha do plástico. Como o lixo recolhido ainda fica em contato com a água, a fauna oceânica ficaria segura, mesmo sendo recolhida. O plástico “limpo” restante seria encaminhado a reciclagem.

De acordo com Boyan, seu invento seria capaz de limpar os oceanos em um período de 5 anos, tornando os mares completamente livres dos plásticos flutuantes e eliminando a ilha de lixo presente no Oceano Pacífico. Mas o mais impressionante de tudo é que a venda do plástico recolhido dos oceanos e reciclado traria um lucro maior do que o gasto com a implementação e manutenção do projeto. Noutras palavras, o projeto de Boyan não somente pode limpar boa parte do oceano, salvando milhares de animais, como ainda seria rentável!

Então, é com alegria que agora posso lhes dizer que as mãos sujas de plástico podem ser limpas. Basta vontade para mudar. Se vale a pena manter alguma esperança? "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena"...

***

Veja o estudante explicando como funciona o seu invento no TEDxDelft (para ver as legendas em português, clique no botão "Legendas" na barra inferior e selecione a opção "Português (Brasil)"):

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Crédito da imagem: Ocean Cleanup Array (Divulgação)

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30.5.13

Relâmpagos

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Da janela entreaberta do quarto, vi um relâmpago antes de ir dormir.

Era como se um milhão de vagalumes se alinhassem imperfeitamente e então algum deus desse o sinal para que iluminassem, em uníssono, a vasta escuridão noturna; Era como alguma espécie de orgasmo do crepúsculo; Como um exímio samurai a nos matar antes que pudéssemos ver nosso próprio sangue escorrer ou nosso cadáver tombar ao solo – tudo o que havia a ser lembrado era o derradeiro movimento estático de sua lâmina cortando o espaço escuro...

Os que têm certo asco de mitologia dizem que os antigos eram supersticiosos imbecis que acreditavam que algum gigante seminu morava no Céu e enviava relâmpagos para Terra a fim de nos assustar.

Eu não estava assustado. É o trovão o que nos assusta, e tem sido assim desde antes da civilização; Mas aqueles relâmpagos estavam tão, tão distantes, que o seu som não chegava. Eu vi somente as pinceladas de luz envolta em nuvens, eu não estava assustado.

Me aproximei da janela e a abri lentamente. Tinha sono, mas aquele baile elétrico a desvelar o horizonte oculto da noite havia me hipnotizado!

Os cientistas já descobriram e computaram o que é, objetivamente, um relâmpago. Mas eu já havia desligado o computador, e o Grande Google estava inacessível as minhas indagações. Ademais, tudo o que poderia ser computado acerca dos relâmpagos, todos os dados científicos colhidos pela meteorologia, nada disso iria me responder exatamente o que eu estava sentindo naquela noite antes de ir dormir.

Quem disse que todos os antigos acreditavam nessa lenda do deus que arremessa relâmpagos? Talvez fosse uma história que eles contavam para atemorizar as crianças em torno da fogueira; Talvez fosse um código simbólico para alertar sobre a imprevisibilidade de tais eventos... Afinal, após milhares de anos, nós mal sabemos dizer em que dia do mês que vem vai relampejar novamente.

O acaso natural ou o acaso do mau humor de um gigante seminu que vive acima das nuvens – tanto faz, é o mesmo acaso.

Um dia um sujeito chamado Laplace postulou que se um demônio pudesse saber da posição e movimento exatos de todas as partículas do Cosmos, então poderia saber perfeitamente de todo o futuro – nada mais seria acaso para o seu vasto intelecto.

Ora, talvez seja isto exatamente a natureza de Satanás, um demônio que já sabe de tudo o que há para saber, e por isso enlouqueceu?

Felizmente a física quântica comprovou que tal demônio não poderia saber tanto...

Mas afinal, o que os antigos não sabiam é que dentro de nosso cérebro as sensações e reações se convertem em pequeninos relâmpagos que realizam um baile neuronal incessante.

Isto me conectou, de certa forma, aqueles relâmpagos distantes que também dançavam uma valsa silenciosa.

Sejam os relâmpagos distantes no Céu, sejam estes que viajam dentro do meu crânio, nenhum deles pode me explicar o que é exatamente ver um relâmpago antes de ir dormir, pela janela entreaberta do quarto.

Então, assim confuso e espantado, fui dormir.

E em meus sonhos, não haveria nada que pudesse me impedir de ser, eu mesmo, um gigante seminu a atirar lanças de luz pela imensidão...

***

Crédito das imagens: [topo] Rob Matheson/Corbis; [ao longo] Joel Robison (Zeus/Jupiter)

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29.5.13

Inquilinos do mundo

Inquilinos do mundo é o mais novo projeto do grupo musical Mawaca. Ele apresenta melodias e ritmos dos povos nômades, refugiados, exilados e ciganos de todo o mundo. São canções da Macedônia, Bulgária, Romênia, Grécia, Espanha, Índia, México, Haiti que ficaram guardadas na memória como verdadeiros relicários sonoros. Abaixo, uma prévia deste CD e DVD que deve estar sendo lançado em breve. A música Jarnana é uma canção tradicional de amor da Albânia:

***

Há mais de uma década tenho a felicidade de conhecer um dos maiores grupos musicais em atividade no mundo; E que é, quem diria, brasileiro...

O Mawaca é um grupo que pesquisa e recria a música das mais diversificadas etnias do globo buscando conexões com a música brasileira. Formado por sete cantoras que interpretam canções em mais de dez línguas (línguas indígenas brasileiras, espanhol, búlgaro, finlandês, japonês, húngaro, swahili, grego, árabe, hebraico, ioruba e português), o Mawaca revela no seu nome a essência do seu trabalho. Segundo a etnia hausa do norte da Nigéria os mawaka (cantores-xamãs) recorrem ao poder mágico da palavra cantada para atrair o poder dos espíritos.

Além das sete cantoras o Mawaca é formado por um grupo instrumental acústico que apresenta uma multiplicidade de timbres; acordeom, violoncello, flauta, violino e sax soprano, baixo, além dos instrumentos de percussão como as tablas indianas, derbak árabe, djembés africanos, berimbau, vibrafone, pandeirões do Maranhão e marimba.

Vejam abaixo mais algumas belíssimas canções retiradas dos últimos trabalhos da banda:

Tango dos Chavicos, uma canção sefardita que está no repertório do DVD "Pra todo canto" e tem arranjo de Magda Pucci e Thomas Howard.

Ciranda Indiana
Este cirandeiro tradicional brasileiro é uma das faixas do DVD "Rupestres Sonoros". Com arranjos de Magda Pucci e base eletrônica de Xuxa Levy, esta música é uma comunhão de coletivos tribais e uma homenagem a cultura indígena.

Cangoma Me Chamou
Este tema dos escravos brasileiros, imortalizada pela cantora Clementina de Jesus, é uma das faixas do DVD "Pra todo Canto".

Soran Bushi
Esta música tradicional dos pescadores de Hokkaido (Japão) faz parte do repertório do DVD "Ikebanas Musicais". Esta faixa tem arranjo musical de Magda Pucci e Cíntia Zanco, e participações especiais de Deborah e Daniella Shimada.

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Crédito da imagem: Divulgação (Mawaca)

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28.5.13

Ó, asno meu!

Monge sorrindo

Um dia encontrei-me com um antigo mestre
que trilha o Caminho há tanto tempo
que já não sabe se segue para leste ou oeste...

Disse-lhe assim:
“Mestre Chuang, agora já sei da dualidade das coisas;
o Yin passivo e o Yang ativo, como a mulher e o homem,
a terra e a chuva, o caminho da mão esquerda
e o da mão direita, o bem e o mal!”

E ele, que não chamava a si mesmo de mestre,
levantou-se da sombra da macieira onde descansava
e sorriu enquanto me massacrava:
“Ó, asno meu! De onde tirou tamanha imbecilidade?”

Eu, é claro, pedi que me ensinasse de sua maioridade,
e ele me ensinou sem dizer uma palavra...

Trepou de um meio pulo na macieira
e com sua mão esquerda retirou uma maçã da beira;
depois saltou de volta e se acomodou recostado ao tronco
e comeu do fruto meio tonto,
saboreando lentamente cada pequena parte
enquanto me olhava com arte
(seus olhos continuavam a sorrir).

Depois de deixar somente um pálido fiapo de maçã,
retirou com a direita cada uma de suas pequenas sementes
e depois correu até o outro monte
(eu o segui, quase a mostrar os dentes).

Lá, do alto do outro monte, arremessou cada semente numa direção,
e foi como se algum vento houvesse me soprado nos ouvidos:
“Cada semente é um universo; Quando isto tudo começou?
Quando isto tudo termina? Qual nome lhe daremos?
Imensidão!”

Então compreendi que até mesmo a mais frágil macieira
ainda tem suas raízes encravadas na Terra;
no Céu pela vida é capaz de buscar
e uma doce maçã nos ofertar.

***

Antes de ir-me, Mestre Chuang ainda me ensinou assim:
“Olá asno, hoje irei lhe demonstrar o segredo dos dois caminhos,
o da mão direita e o da mão esquerda”.
E ele simplesmente aproximou ambas as mãos,
quase até que encostassem (mas sem encostar) e disse:
“Elas não se encostam, e no entanto uma sabe da outra;
Ó asno meu, é este o segredo do magnetismo dos opostos –
Não há opostos!”

E esta foi uma lição de que me lembro até hoje,
sempre que saboreio uma nova maçã.


raph’13

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Crédito da foto: Anders Overgaard

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27.5.13

O homem que não acreditava em rebanhos

Neste documentário português sobre o lendário Livro do Desassossego, temos não somente um retrato (ou uma tentativa de retrato) de quem foi Fernando Pessoa, como uma associação de toda a história de sua vida e de seus momentos solitários a escrita do "não livro" do seu semi-heterônimo, o "quase eu", Bernardo Soares.

Pessoa, o homem que foi muitos, e que não acreditava em rebanhos, mas sim na essência única de cada alma, deixou tais escritos inacabados, por publicar. E só foram publicados muitos anos após sua morte, em 1982. É um livro sem forma, sem tempo, um sonho parcialmente capturado pelas palavras:

Veja também:

» O ano do desassossego (trechos do livro neste blog)

» Lançamento: Navegar é preciso (neste livro digital editado por mim, há dois capítulos com vários trechos selecionados do livro)

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23.5.13

O amante

Numa noite fria da Galileia, enquanto acampavam próximos a Magdala, Yeshua teve um sonho com o Anjo do Senhor:

Anjo – É chegada a hora de encontrar-te com aquela que fala conosco.

Mensageiro – A essênia?

Anjo – Tu já cruzaste com ela, mas não em sonho. Esta que vê em teus sonhos pertence somente a tua imaginação. A outra de que falo é ainda mais sábia do que imaginas. Tu foste o mensageiro das coisas do Alto, mas será ela quem fará tua mensagem chegar ao mundo todo...

Yehsua acordou subitamente com um raio de sol nascente lhe cegando os olhos. Enquanto ainda se habituava de volta ao mundo dos despertos, disse aos demais: “Amigos, levantem-se. Devemos aproveitar a manhã, nosso próximo destino será a própria aldeia de Magdala”.

“O que iremos fazer em Magdala, mestre?” – perguntou Shimon (aquele a quem Yehsua chamou Kepha). “Iremos nos encontrar com um mestre essênio, e o convidar para o nosso grupo” – tendo dito isso, fez com que todos se entusiasmassem com aquele dia, particularmente Shimon, que sempre teve curiosidade em conhecer mais sobre os essênios.

***

Chegaram na pequena Magdala, nada mais do que uma antiga torre em ruínas perto da costa, onde um dia houve um agrupamento de essênios, mas que naquele tempo estava mais para um agrupamento de pescadores e mercadores.

Não foi sequer necessário perguntar pela essênia. Uma bela mulher, de pele morena e cabelos negros, contrastando com sua longa veste branca que ajudava a ornar um corpo sinuoso, aproximou-se do grupo de Yeshua. Ela logo disse o seu nome, “Miriam”.

Yeshua parecia aturdido (não se sabe se por sua beleza ou por sua presença), então Shimon falou em seu lugar:

Shimon – Olá mulher. Acaso sabe de algum essênio que ainda tenha permanecido em Magdala?

Miriam – Em realidade todos se foram. Foram buscar um local ainda mais afastado do mundo dos homens, onde não existe propriedade nem a necessidade de pagar tributos a César. Mas vocês têm sorte, pois que hoje há um deles que retornou a aldeia em visita.

Shimon – Mas nós buscamos por um mestre essênio, um Mestre da Justiça.

Miriam – Quem veio é também Mestre da Justiça.

Shimon – E onde está?

Miriam – Está diante dos seus olhos, ó caminhante.

Shimon (confuso) – Mas como? Eu só vejo uma mulher na minha frente!

Não foi preciso que Miriam de Magdala explicasse, foi o próprio Yeshua quem interrompeu a conversa, já recobrado da espécie de transe em que tinha entrado repentinamente:

Mensageiro – Kepha, meu caro amigo, não seja rude... Acaso não sabe que entre os essênios mesmo as mulheres podem ser mestras?

***

Já se passavam três dias desdê que a comitiva de Yeshua havia se hospedado na antiga torre de Magdala. Os discípulos começavam a ficar impacientes, não somente pelo fato de que não havia muito o que se fazer naquela aldeia, mas sobretudo pelo fato de seu mestre passar quase todo o tempo conversando a sós com a Mestre da Justiça. Ora eram vistos no entorno da aldeia, ora muito distantes, caminhando juntos sob a sombra de um pequeno bosque que crescia na direção da costa...

Mensageiro – Então você é aquela garotinha que encontrei há anos quando me dirigia ao Oriente. Inacreditável como cresceu, e neste caso me refiro a sua alma e sua sabedoria.

Miriam – É muito gentil, Yeshua. Mas, ainda que minha sabedoria crescesse muito além da torre de Magdala, jamais haveria de alcançar o Céu, como você parece fazer todos os dias.

Mensageiro – Se consigo alcançar o Céu, não sou como você que vê aos anjos ainda acordada...

Miriam – Você não precisa ver aos anjos. Eles vêm somente para nos ensinar, e não há nada que tenham para lhe ensinar, Yeshua.

Mensageiro – Bobagem; há sempre o que se aprender, mesmo entre os que sabem menos do que nós. Ainda que este fosse o caso dos anjos, mas não é... Há alguns anjos que sabem muito mais do que outros, e há alguns que sabem muito mais do que eu. Foi exatamente um destes que me enviou até você há quase três dias atrás...

Miriam – E os anjos que vejo raramente são desta falange, Yeshua. Veja bem, eu sei que o Pai e a Mãe estão espalhados por todas as coisas, naquela pedra ali, naquele outro galho partido acolá. Mas eu ainda não participo deste casamento, ainda não fui convidada a presenciar esta cerimônia, ainda não trouxe o Céu para a Terra. Você quem se aventurou nas terras do Alto e retornou, Yeshua, me conte dessas maravilhas!

Mensageiro – Você quer a história verdadeira?

Miriam – Se acha que mereço a verdade, me conte a verdade...

Mensageiro – No início, eu era levado à força. O Pai surgia como um pássaro raivoso, embora eu não pudesse vê-lo. Tudo que sentia eram suas garras: uma me segurava pelo pescoço e impedia que eu fugisse, e a outra se enterrava em minha cabeça... Era então que a dor se iniciava. Era como se eu explodisse e me separasse em milhares de pedaços, para só então renascer em sua Casa. Lá o Anjo do Senhor me falava do que vim fazer neste mundo, enquanto uma grande luz pairava por todo o ambiente. Nesta época em me rebelei, eu não suportava mais toda aquela luz, e sussurrei em meio às lágrimas que escorriam: “Pai, afasta de mim este cálice”.
Então passei alguns anos da minha infância pretendendo não ser o que sou, mas com o tempo me arrependi, pois percebi que o mundo precisava de um pouco daquela luz, e talvez eu fosse mesmo aquele quem deveria trazer a mensagem, refletir um pouco dela para aqui embaixo... Mas não sabia se eu era o único, e por isso rumei para o Oriente...

Miriam – Existiram outros como você?

Mensageiro – Sem dúvida, muitos, muitos outros! Mais sábios e mais antigos... Mas parece que o grande plano do Céu era reunir toda a sabedoria antiga nalguma espécie de ensinamento simples que pudesse ser transmitido a todos, e não apenas aos mestres e aos príncipes.
Após muito sofrer e muito duvidar, eu finalmente compreendi o que o Pai queria de mim, foi então que descobri o que sou... Não sou eu quem vai divulgar tais ensinamentos pelo mundo, Miriam, eu sou apenas um mensageiro.

Miriam (entristecida) – Foi o que os anjos me contaram... Então, é verdade... Então, não lhe resta muito tempo junto conosco, junto comigo?

Mensageiro – Miriam, Miriam, não chore para que eu não chore junto contigo. Saiba que o Pai veio até mim como uma brisa suave de primavera, e me encheu de entusiasmo e de sentido!
Eu me pus de pé e agora estou aqui entre vocês para realizar o que precisa ser realizado. E quando eu me for, será você quem divulgará minha mensagem. A tarefa não foi dada a um homem, mas a uma mulher – a única capaz de fecundar um novo pensamento na alma dos homens.

Miriam – Mas você não é um homem nem uma mulher, Yeshua. Sua natureza nos transcende... É como se a própria terra houvesse sido fecundada pela chuva, para que nascesse um ser como você... Se eu serei aquela quem divulgará sua mensagem, ao menos isto eu tenho de saber: O que, afinal, é você?

Mensageiro – Um coração. Um amante de tudo o que há, foi e ainda está para ser... Eu sou um coração, Miriam, e todo o sangue do mundo passa pela minha alma...

 

FIM

 

Este é o fim da série de contos Mensageiro dos Céus,
que havia iniciado em 1996. Gostaria de agradecer
a todas as brisas de primavera
que tornaram isto possível...

raph’13

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Este conto é uma continuação direta de "O recitador".

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Crédito da foto: worldwidehealth.com

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21.5.13

Exercícios para manter o foco

Texto retirado do artigo "Por onde andam seus pensamentos?", de Ingrid Wickelgren, jornalista científica e editora da Scientific American nos EUA. Publicado no Brasil pela revista Mente Cérebro de Maio de 2013 (Duetto Editorial). Os comentários ao final são meus.


É possível pensar que a concentração seja uma forma intensa de atenção. Embora a capacidade de se manter atento a algo varie de pessoa para pessoa, como a maioria absoluta das habilidades também essa pode ser treinada e fortalecida. O importante é incorporar os exercícios ao cotidiano, ainda que sejam dedicados a eles apenas alguns minutos por dia, principalmente no início. Aos poucos, o tempo dedicado à atividade pode ser ampliado.

A seguir, algumas sugestões de exercícios simples que ajudam a ampliar a concentração:

1. De olho no horizonte
De pé, em posição ereta, com os braços ao longo do tronco, sinta o peso do seu corpo e olhe para um ponto fixo à sua frente. Desloque o peso do corpo para o pé esquerdo e flexione o joelho direito elevando-o lentamente enquanto inspira profundamente. Delicadamente, segure o joelho com as duas mãos por alguns segundos e mantenha a coluna naturalmente ereta. Faça cinco respirações profundas. Abaixe a perna enquanto solta o ar. Repita o procedimento levantando a outra perna. Ao terminar, pense que uma linha imaginária passa pela sua coluna vertebral e vai até o topo de sua cabeça, mantendo-o equilibrado em todos os seus movimentos.

2. Olhos abertos, olhos fechados
Esse exercício é feito em duas etapas. Primeiro, escolha um objeto qualquer, como um lápis, por exemplo. Coloque-o na sua frente. Olhe firmemente e concentre sua atenção nele. Deixe que o objeto ocupe todo o espaço mental durante o tempo que for possível. Aumente gradualmente o tempo de duração do exercício. Na segunda fase, feche os olhos e visualize em sua mente o mesmo objeto. Concentre-se nesta imagem virtual, atendo-se a todos os detalhes, pensando apenas nessa tarefa. Caso se distraia, recomece a imaginar o objeto e aumente progressivamente a duração do exercício. Com a prática, verá que fica cada vez mais fácil manter-se focado.

3. Tique-taque
Escolha um ambiente silencioso, sente-se em posição confortável. Pegue um relógio que faça barulho e coloque-o a trabalhar. Concentre sua atenção no ritmo e deixe que o som ocupe todo o seu espaço mental. Se alguns pensamentos passarem por sua mente, não se apegue a eles, deixe-os passar e retome a concentração.

4. Mensagem do bem
Sente-se de maneira confortável, com a coluna reta e escolha uma palavra ou frase positiva (por exemplo, “eu me sinto bem”, “sou grato pelo que tenho em minha vida” ou “sou capaz de aprender”). Repita-a várias vezes, primeiro de olhos abertos, depois de olhos fechados. Deixe que o som das palavras ocupe a sua mente, até que sinta como se o som não viesse de sua boca, mas tomasse conta de todo a ambiente. Pense nas palavras escritas recobrindo objetos e as paredes ao seu redor, com se você estivesse ouvindo um disco uma ou várias vezes. De forma progressiva, aumente a duração do exercício.

5. A chama da vela
Como essa prática é mais longa, com duração de aproximadamente 15 minutos, convém ler as orientações a seguir até se familiarizar com elas, para que não precise se ater ao texto durante sua realização.

Ao criar a imagem mental de uma chama, o fluxo de pensamentos que causam distração tende a ficar mais lento e você poderá atingir uma sensação de bem-estar, com mais consciência de seu corpo:

(a) Acomode-se num ligar calmo e confortável. Acenda uma vela e coloque-a a cerca de um metro à sua frente. Sente-se com as pernas cruzadas no chão, sobre uma almofada ou, se preferir, numa cadeira, mantendo as costas retas contra o encosto e as pernas separadas. Feche os olhos e tome a consciência de cada uma das partes do seu corpo, relaxando uma de cada vez. Respire calma e profundamente, enquanto percorre mentalmente todo o seu corpo.

(b) Mantenha-se nessa posição, com os olhos fechados. Conscientize-se do ritmo de sua respiração, que ficará cada vez mais regular. Abra os olhos e foque na chama da vela. Se os seus pensamentos tentarem “fugir”, traga-os lentamente de volta à chama. Relaxe os músculos faciais e mais uma vez feche os olhos. Inspire e expire profundamente, prestando atenção a esse movimento, sentindo o abdômen subir e descer. Leve o tempo que for necessário até sentir-se relaxado, como se estivesse sendo embalado por ondas produzidas pela respiração. Pense que está calmo e tranquilo.

(c) Visualize a imagem da chama na sua mente. Permaneça focado em seus movimentos intermináveis. Isso ocupa a totalidade da sua mente. É como se você estivesse hipnotizado pela dança e cores da chama. Quando um pensamento tomar conta de sua mente, deixe-o ser consumido pelo fogo. Aproxime um pouco mais o rosto da chama e sinta seu calor, sempre de forma relaxada. Após algum tempo comece a mover sues músculos e membros lentamente e alongue-se devagar, antes de se levantar.

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Comentários
Ora, de onde diabos a autora retirou estas “sugestões de exercícios simples”? De alguma prática de yoga ou tai chi chuan? Da Magia prática de Franz Bardon? De algum exercício iniciante de alguma ordem magística?
Na realidade, não importa de onde ela retirou tais conhecimentos, nem mesmo a ironia de vê-los publicados pela Scientific American. O que importa é que eles funcionam. Tanto para céticos quanto para espiritualistas...

Crédito da imagem (gif animado): Anônimo/Google Image Search

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16.5.13

Nunca desliga

Imaginem que Maria estava quase caindo no sono em sua rede a beira do rio, com uma revista no colo. Então de repente uma mosca pousa em seu braço, ela o sacode quase instintivamente, e continua praticamente adormecida. Mas a mosca não se dá por vencida, e fica zunindo em seus ouvidos, como é próprio de todas as moscas que evoluíram para nos atormentar... Maria pega a revista e espanta a mosca, chateada. Quem sabe agora possa voltar a dormir.

O que será que ocorreu em seu cérebro depois que “despertou” com o zunido da mosca? E como estava ele momentos antes, enquanto Maria caia no sono? Por muito tempo, os neurocientistas consideraram a hipótese de que grande parte da atividade cerebral durante o repouso se equiparava a um estado “semi-inativo”, sonolento.

Conforme tal hipótese, a atividade no cérebro em repouso representaria nada mais que um ruído ocasional, semelhante ao padrão de “chuviscos” na tela de TV enquanto o sinal está fora do ar. Então, quando a mosca zuniu e incomodou Maria, seu cérebro “despertou” para se concentrar na tarefa consciente de exterminá-la... Entretanto, estudos recentes com tecnologias de neuroimagem revelaram algo muito diverso, e estranho: mesmo quando estamos em repouso, sem fazer absolutamente nada, o cérebro continua em plena atividade!

Sim, hoje conseguimos observar o interior do cérebro e medir boa parte de sua atividade química e elétrica em tempo real. Tudo começou com o psiquiatra alemão Hans Berger, criador do eletroencefalograma (EEG), que grava a atividade elétrica no cérebro por meio de um conjunto de linhas ondulatórias sobre um gráfico.

Em ensaios seminais sobre suas descobertas com as primeiras pesquisas utilizando o EEG em 1929, Berger deduziu, a partir das incessantes oscilações elétricas detectadas pelo aparelho, que “temos de supor que o sistema nervoso central está sempre – e não somente durante o estado de vigília – num estado de considerável atividade.” Mas suas ideias foram amplamente ignoradas, até tempos recentes, bem recentes... A tecnologia para se examinar o cérebro se aprimorou: em 1970, veio à tomografia por emissão de pósitrons (PET, Positron-Emission-Tomography), que mede o metabolismo da glicose, fluxo sanguíneo e absorção de oxigênio para a extensão da atividade neuronal; já em 1992 veio à captação de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI, functional Magnetic Ressonance Imaging), que mede a oxigenação do cérebro com o mesmo propósito.

Essas tecnologias são mais do que capazes de analisar a atividade cerebral, focada ou não, mas a maioria dos estudos iniciais levou a impressão errônea de que, na maior parte, as áreas do cérebro permanecem “tranquilas” até que sejam requisitadas a desempenhar alguma tarefa específica. Ao longo dos anos, no entanto, alguns pesquisadores [1] começaram a estudar a atividade cerebral de colaboradores simplesmente em estado de descanso, deixando a mente livre para divagar. Eles descobriram que a energia gasta pelo cérebro não varia mais do que 5% entre o estado de vigília e/ou atividade consciente e o estado de relaxamento completo, quando supostamente não fazemos absolutamente nada a não ser pensar, divagar...

A conclusão surpreendente a que chegaram é a de que boa parte da atividade geral – de 60% a 80% de toda a energia gasta pelo cérebro – ocorre em circuitos não relacionados a nenhuma evento externo. Com a devida licença dos colegas astrônomos, os pesquisadores deram a essa atividade intrínseca o nome de “energia escura do cérebro” – referência à energia não visível (não interage com fótons), mas que representa a maior parte da massa do universo.

Ficou claro, a partir desse trabalho, que o processo consciente é responsável por apenas uma parte, ainda que crítica, da atividade total de todos os sistemas do cérebro. Como Berger mostrou em primeiro lugar, e muitos outros confirmaram desde então, a sinalização cerebral consiste em um amplo espectro de frequências, que vão dos potenciais corticais lentos (SCPs, Slow Cortical Potentials) de baixa frequência até a atividade acima de 100 ciclos por segundo. Um dos grandes desafios da ciência é entender como os sinais de diferentes frequências interagem.

A orquestra sinfônica proporciona uma metáfora adequada, com sua integrada “tapeçaria” de sons provenientes de múltiplos instrumentos que tocam no mesmo ritmo. Os SCPs equivalem à batuta do regente. Só que, em vez de manter o tempo para um conjunto de instrumentos musicais, esses sinais coordenam o acesso que cada sistema cerebral exige para o vasto depósito de memórias e outras informações necessárias para se sobreviver num mundo complexo e em permanente mudança. Os SCPs garantem que as computações corretas ocorram de maneira coordenada, exatamente no momento adequado.

Mas o cérebro é muito mais complexo que uma orquestra sinfônica. Ele oscila continuamente entre a necessidade de equilibrar respostas planejadas com demandas imediatas. Os grandes expoentes da psicologia, como William James, Sigmund Freud e Carl Jung, sempre compreenderam o enorme e misterioso papel do inconsciente sobre o consciente. Que o cérebro pode até ser uma máquina de envio e reenvio de informações, um computador molecular de vasta complexidade, mas ainda assim há que se pensar no que quer que – esteja onde estiver no cérebro – interpreta as informações recebidas e elabora respostas morais e sentimentais...

Pesquisadores já sabem há algum tempo que do imenso fluxo de informações que trafegam pelo cérebro a todo instante, apenas um mísero “filete” se encaminha para os centros de processamento neurológicos. Embora 6 milhões de bits sejam transmitidos através do nervo ótico, por exemplo, somente 10 mil bits (0,16%) chegam até a área de processamento virtual do cérebro; e, destes, apenas algumas centenas participam da formulação de percepção consciente – o que é escasso demais para que possam gerar, por si mesmos, uma percepção significativa do ambiente a volta.

Tal descoberta sugere que o cérebro provavelmente faz constantes predições sobre o ambiente externo, valendo-se de insignificantes impulsos sensoriais que chegam a ele do mundo exterior. O que isto quer dizer, na prática, é que a maior parte do que vemos do mundo é imaginada e antecipada por padrões cerebrais que independem, na realidade, do que nos chega do exterior.

Ultimamente, neurocientistas tem registrado em estudos que há mesmo certas áreas do cérebro que estão em maior atividade no repouso, e que reduzem sua atividade quando precisamos realizar uma tarefa motora ou intelectual, como afugentar uma mosca ou ler um texto em voz alta. Tais áreas estão envolvidas com a lembrança dos eventos pessoais, com aspectos que tendem a determinar o nosso estado emocional e com a capacidade empática de “imaginarmos o que os outros estão pensando”.

Tudo isso nos sugere que em nosso inconsciente, e talvez em nossa essência mais íntima, somos como uma trupe teatral que escreve os roteiros e reencena para si mesma, constantemente, histórias repletas de significância emocional. A emoção, ao que parece, nunca desliga. E o mundo, o nosso mundo, nada mais é do que a peça que nos dispomos a encenar para nós mesmos. Os filetes de informação que chegam de fora podem mesmo ser quase irrelevantes perto da gigantesca quantidade de informação que moldamos dentro de nós mesmos.

Os sábios antigos, de diversas partes do mundo, pareciam já saber disso. Saber, isto é, que para conhecer o mundo, devemos antes conhecer a nós mesmos. E que, para alcançar o Céu, devemos antes olhar para dentro – se não erguermos nosso próprio Céu dentro de nós mesmos, não o encontraremos em lugar algum...


É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha, sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo – desde a nascença e a consciência –, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui... (Livro do Desassossego - Fernando Pessoa)

***

[1] Boa parte das informações científicas deste artigo foram retiradas do artigo “A energia escura do cérebro”, capa da Scientific American de Abril de 2010 (ano 8, #95), escrito por Marcus E. Raichle – professor de radiologia e neurologia –, que é um dos principais pesquisadores no assunto aqui abordado.

Crédito das imagens: [topo] John Warburton-Lee/JAI/Corbis; [ao longo] Michael Pole/Corbis

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13.5.13

Tao Te Ching a caminho...

O próximo projeto para as Edições Textos para Reflexão é consideravelmente mais ambicioso que os demais: Tao Te Ching – O Livro do Caminho Perfeito.

Trata-se do livro essencial do taoísmo e de um dos maiores livros sagrados da humanidade. Diz a lenda que foi escrito (entre 350 e 250 a.C.) pelo próprio Lao Tse, um misterioso sábio chinês, a pedido de um guarda de fronteira, enquanto ele aguardava para ser liberado a ultrapassá-la... Quem sabe, uma das maiores contribuições da burocracia para a sabedoria humana!

Estarei, claro, traduzindo do inglês, e não diretamente do original. Entretanto, estarei muito bem “assessorado”. Usarei como base a tradução clássica de James Legge, mas contanto com as interpretações de Aleister Crowley e Murillo Nunes de Azevedo. Vejam mais detalhes abaixo, no que será um trecho do início do livro:

***

Nota sobre a tradução

Na língua chinesa escrita de estilo antigo, cada palavra, em geral, era escrita usando um único caractere (monossilábico); era um estilo muito mais conciso e literário do que a língua falada. Como o Tao Te Ching foi escrito no estilo antigo, o texto é extremamente conciso e não é de interpretação fácil mesmo para um chinês. O significado de cada monossílabo, no meio de uma série continua de caracteres sem pontuação, não surge espontaneamente; as frases têm uma estrutura mais difícil de detectar. As palavras que rimam sugerem as frases que estão presentes, mas nem sempre elas estão lá e nem sempre a estrutura fica perfeitamente clara. Sabe-se também que na época de Lao Tse não havia uma escrita unificada, porque a China não estava ainda politicamente unificada, e que o significado e pronúncia de muitos caracteres se foi alterando com o tempo.

Neste cenário, seria deveras complexo e pretensioso traduzir tal obra direto do original. Felizmente, no entanto, posso contar com a tradução clássica de James Legge para o inglês. Legge (1815 – 1897) foi um missionário escocês que viveu na China e dedicou boa parte da vida a estudar sua cultura. Além de ter sido o primeiro professor de chinês na Universidade de Oxford, é reconhecido por haver composto uma das traduções mais fiéis do Tao Te Ching para o inglês.

Mas não é tudo. Em minha tradução de Legge para o português conto com uma “assessoria” muito especial. A primeira é a interpretação do famoso e polêmico ocultista britânico, Aleister Crowley (1875 – 1947):

“Durante minhas andanças solitárias pelas montanhas de Yun Nan, a atmosfera espiritual da China me penetrou a consciência, graças a ausência de qualquer impertinência intelectual de meu órgão de conhecimento. O Tao Te Ching revelou sua simplicidade sublime a minha alma, pouco a pouco [...] A filosofia de Lao Tse se comunicou comigo, a despeito das tentativas persistentes de minha mente em tentar conformá-la com minhas noções pré-concebidas do que o seu texto deveria significar” (The Tao Teh King [Liber CLVII], trechos da Introdução).

O grande mago não pôde evitar a tentativa de reinterpretação do livro para a língua inglesa. No verão de 1918, realizou sua nova tradução com o auxílio de um amigo, chamado Amalantrah, que lia o significado de cada ideograma chinês, traduzindo-o ao inglês, enquanto Crowley os interpretava e anotava:

“Eu completei minha tradução em três dias, mas durante os últimos cinco anos tenho constantemente reconsiderado cada sentença. O manuscrito foi emprestado a numerosos amigos e intelectuais que comentaram meu trabalho, e aspirantes do Tao que apreciaram sua adequação ao espírito do ensinamento do Mestre. Aqueles que se desapontaram com a tradução de Legge estavam entusiasmados com a minha” (Idem).

A segunda “assessoria” de que desponho é a espetacular tradução do Tao de Ching, também à partir de Legge e outras versões inglesas para o português, de Murillo Nunes de Azevedo (1920 – 2007), engenheiro, escritor e filósofo brasileiro. Membro da Sociedade Teosófica desde 1950, professor em diversas universidades brasileiras durante 30 anos, monge budista, Murillo traduziu e escreveu ele mesmo uma vasta obra sobre diversas tradições espirituais e religiosas, do Tantra ao Taoísmo, do Budismo da Terra Pura ao pensamento teosófico de Helena Blavatsky. Segundo suas próprias palavras, Murillo “procura a visão global de uma realidade que teima em não ser captada pelos seres humanos mais preocupados com os problemas das suas vidas pessoais e seus pequenos mundos de 'faz-de-conta'” (Wikipedia).

De posse da tradução de Legge e das interpretações de Crowley e Murillo, penso que posso chegar a uma espécie de “tradução no caminho do meio”, nem tanto a Terra, nem tanto ao Ar. Meu sucesso ou insucesso, no entanto, será julgado pelos leitores...

***

Para dar uma ideia de como ocorre meu processo de tradução, trarei abaixo, na sequência, quatro versões para o quarto poema do Tao Te Ching (meu predileto): iniciando com Legge e Crowley (em inglês), depois trazendo a tradução de Murillo e, finalmente, a minha.

IV

The Tao is (like) the emptiness of a vessel; and in our employment of it we must be on our guard against all fullness.
How deep and unfathomable it is, as if it were the Honoured Ancestor of all things!

We should blunt our sharp points, and unravel the complications of things; we should attemper our brightness, and bring ourselves into agreement with the obscurity of others.
How pure and still the Tao is, as if it would ever so continue!

I do not know whose son it is. It might appear to have been before God.

***

THE SPRING WITHOUT SOURCE

The Tao resembles the emptiness of Space; to employ it, we must avoid creating ganglia. Oh Tao, how vast art Thou, the Abyss of Abysses, thou Holy and Secret Father of all Fatherhoods of Things!

Let us make our sharpness blunt; let us loosen our complexes; let us tone down our brightness to the general obscurity. Oh Tao, how still art thou, how pure, continuous One beyond Heaven!

This Tao hath no Father; it is beyond all other conceptions, higher than the highest.

***

A FONTE DE TUDO

O Caminho é vazio e inesgotável,
profundo como um abismo.
É como se fosse o ancestral das dez mil criaturas.
Suavizai o corte
Desfazei os nós
Diminuí o brilho.
Deixai que as rodas percorram os velhos sulcos.
Devemos considerar nosso brilho
a fim de que nos harmonizemos com a escuridão dos outros.
Como é puro e tranquilo o Caminho!
Não sei de quem possa ser filho
pois parece ser anterior ao Soberano do Céu.

***

A FONTE SEM ORIGEM

O Caminho é como o vazio de um vaso.
Ao utilizá-lo, devemos nos guardar de todo excesso.
Oh, e como é vasto, profundo como um abismo!
É como se fosse o Ancestral de todas as coisas.

Deixemos que as rodas percorram
os velhos sulcos da estrada.
Devemos cegar nossas adagas,
desfazer os nós
e diminuir o brilho
para que nos harmonizemos com a escuridão alheia.

Oh, como é puro e tranquilo o Caminho,
pode ser que continue para além do Céu!
Não sei de quem possa ser filho,
pode ser anterior ao próprio Imperador de Jade.


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9.5.13

Lançamento: Toda poesia de Alberto Caeiro

As Edições Textos para Reflexão voltam a publicar Fernando Pessoa, ou melhor, Mestre Caeiro. Em Toda poesia de Alberto Caeiro temos ao todo 3 livros – O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos –, além de diversos textos adicionais.

Um livro digital já disponível para o Amazon Kindle e o Kobo:

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***

Abaixo, segue um trecho da introdução do livro:

“A fonte da vida temporal é a eternidade. A eternidade se derrama a si mesma no mundo. É a ideia mítica, básica, do deus que se torna múltiplo em nós. Na índia, o deus que repousa em mim é chamado o habitante do corpo. Identificar-se com esse aspecto divino, imortal, de você mesmo é identificar-se com a divindade.

Ora, a eternidade está além de todas as categorias de pensamento. Este é um ponto fundamental em todas as grandes religiões do Oriente. Nosso desejo é pensar a respeito de Deus. Deus é um pensamento. Deus é um nome. Deus é uma ideia. Mas sua referência é a algo que transcende a todo pensamento. O supremo mistério de ser está além de todas as categorias de pensamento. Como disse Immanuel Kant, o filósofo alemão: a coisa em si é não coisa. Transcende a coisidade e vai além de tudo o que poderia ser pensado.

As melhores coisas não podem ser ditas porque transcendem o pensamento. As coisas um pouco piores são mal compreendidas, porque são os pensamentos que supostamente se referem àquilo a respeito de que não se pode pensar. Logo abaixo dessas, vêm as coisas das quais falamos. E o mito é aquele campo de referência àquilo que é absolutamente transcendente”.

O poder do mito (trecho), Joseph Campbell

Mestre Caeiro foi além da linguagem, e exatamente por isso, descascou a casca da metafísica, e demonstrou como toda poesia é sensação, sentimento e intuição, os frutos por detrás das cascas das palavras.

Segundo Pessoa, “a obra de Alberto Caeiro representa uma reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer”.

Neopagão por excelência, mito de si mesmo, Mestre Caeiro, o único heterônimo de Pessoa que era reconhecido pelos outros heterônimos como mestre, nos traduz em seus poemas tudo aquilo que não pode ser traduzido... Isto tampouco é um paradoxo: é que se trata de uma linguagem para ser percebida pela alma, e não pelo cérebro.

De fato, “há metafísica suficiente em não pensar em nada”, ou seja, em simplesmente existir, e contemplar tudo isto que está a nossa volta. Toda a Eternidade apaixonada pela produção do tempo. Toda a Transcendência a velejar pelo horizonte. Toda a Natureza a bailar com a brisa que escora pelos ombros...

Seria inútil prosseguir nessa descrição do indescritível. Portanto, antes de lhes deixar na companhia de Caeiro, trago uma poesia ainda mais antiga e inefável, vinda da Pérsia (séc. XIII):

Além das ideias de certo e errado,
há um campo. Eu lhe encontrarei lá.

Quando a alma se deita naquela grama,
o mundo está preenchido demais para que falemos dele.
Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um”
não fazem mais nenhum sentido.

Jalal ud-Din Rumi (poeta sufi)


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8.5.13

O diagnóstico da normalidade

Para saber o que é loucura, a gente tem que entender o que é ser normal. E isso ninguém conseguiu definir até hoje. Mas, uma coisa é certa, um pouco de maluquice faz parte da normalidade e ser normal demais é o mesmo que ser muito louco. (Psicologia UERJ)


Este cartaz (com o texto acima, a imagem que ilustra este post) deveria ser lido para todo iniciante nos mistérios da loucura e da normalidade. A grande verdade é que não há um "método científico" para de diagnosticar a loucura, e muito menos a normalidade... O que há, isto sim, é uma convenção, um acordo social, para o que seja "normal" e o que seja "louco".

Ainda assim, todo ser que vive numa sociedade precisa de certa autonomia, de certa capacidade para conseguir subsistir sem a necessidade de um auxílio permanente de outro alguém. Talvez seja isto o "louco": aquele que não consegue mais viver na sociedade por si só, e que precisa de acompanhamento psicológico (ou, em casos graves, de afastamento total da sociedade).

Mas tudo isto faz parte de uma longa discussão que data desde antes da própria invenção do termo "psicologia". Nesta brilhante palestra para o programa Café Filosófico da TV Cultura, o psicanalista e psiquiatra Benilton Bezerra nos traz um exposição bastante ampla da História da psicopatologia.

O nome em si (psicopatologia) pode assustar, mas seu significado é algo que nos interessa (ou deveria interessar) a todos. A palavra "Psico-pato-logia" é composta de três palavras gregas: psychê, que produziu "psique" ou "alma"; pathos, que resultou em "excesso" ou "sofrimento"; e logos, que resultou em "lógica" ou "conhecimento". Psicopatologia seria, então, um conhecimento sobre o sofrimento da alma. E isto nos interessa a todos, pois é impossível viver sem sofrer. Nos interessa, portanto, conhecer os motivos de nosso sofrimento, e até onde eles podem ser amenizados ou "controlados". Isto também é um autoconhecimento e, dessa forma, filosofia.

Mas o que nos interessa acima de tudo é evitar que este tal "diagnóstico da normalidade" (o que, na realidade, nunca será 100% eficaz) não se reduza a um procedimento "científico", que trate aos seres humanos como "máquinas comportamentais". É este, sobretudo, o alerta da Benilton - uma alerta para que nossa mente não siga, ao menos diretamente ou irrefletidamente, aos ditames do mercado farmacêutico. Se pelo menos as crianças pararem de ser diagnosticadas a torto e a direito com "distúrbios de comportamento", somente por serem crianças e gostarem, digamos, de "bagunçar o coreto", já será um bom avanço. Não na opinião do mercado farmacêutico, obviamente, pois o que lhes interessa é somente vender seu próximo "lançamento" [1]...

***

[1] Não quero aqui, obviamente, dizer que os acometidos de distúrbios mentais devam deixar de se medicar. É claro que muitos remédios são de grande auxílio, contanto que o paciente esteja efetivamente com um distúrbio. Vocês entenderão melhor o contexto do que estou querendo dizer se virem toda a palestra acima (particularmente a segunda metade). Também já escrevi sobre este assunto aqui: Intoxicados.

Crédito da imagem: Psicologia UERJ

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7.5.13

O mundo assombrado pelas teorias

Este texto me foi enviado por um amigo de longa data e que também se interessa por filosofia. Seu nome é Silvio Soares Santos (não "aquele" Silvio Santos...):


Parece-me muito claro que como método de conhecimento rigoroso e objetivo, o conhecimento oriundo do modelo científico, propõe-se a fundamentar empiricamente os fenômenos naturais que constituem o mundo. Fundamentar empiricamente, não significa explicar os porquês sobre um evento fenomênico, mas apenas organizar estruturalmente o ‘como’ eles ocorrem.

Hume (1711 – 1776)[1] na obra Ensaio sobre o entendimento humano já afirmara que a ciência parte da observação e baseia-se na ideia de causa e efeito sobre os eventos constantes na natureza. Hume afirma que o sujeito do conhecimento apenas apreende os fatos concretos da realidade, sendo estes revelados pela experiência sensível. O procedimento utilizado como fundamento sensível é então a experiência. Porém, como não se podem fazer todas as experimentações e também porque a mente humana é que relaciona um evento com outro evento, o conhecimento científico tem como sustento apenas o hábito das repetições, analisadas por nossa lógica. A lógica é puramente mental e cognoscente, portanto, não representa com garantia a realidade factual e material.
Ou seja, a natureza não é obrigada a seguir nossas leis, nem ser cúmplice de nossas demonstrações. Acabamos assim, em uma espécie de crença instrumentalizada, objetiva, técnica e lógica, muito propensa a irracionalidade por diversas instâncias.

Obviamente que ninguém é maluco de dizer que o mundo prático não é funcional. Porém, nos parece funcional, por que a nossa lógica o cria assim. Relacionamos causas a seus efeitos, teorizamos leis após hipotetizarmos possíveis explicações. Aí nesse ponto, consideramos irrelevantes, os termos arbitrários inventados pelo cientista, como ‘a ideia de força’ aplicada no movimento.

Quanto às generalizações e as teorias dedutivas que partem de observações indutivas, estas também oferecem como problemas alguns pontos.
Primeiramente, a deficiência da observação, que além ser relativa pela não garantia de observarmos da mesma forma o mesmo evento e da contribuição da mente na complementação das percepções sobre as leituras das sensações, temos a problemática do instrumental, que pode interferir e influenciar os resultados.

Em segundo lugar, aparece a interferência direta do observador e a relação arbitrária dos eventos entre si. Nada garante que a cor vermelha que vejo seja o mesmo vermelho que você vê, caro leitor-observador. Nada garante que a queda de um lápis, segue as mesmas leis da queda de uma pedra lá na montanha. E a ‘coisa’ fica ainda mais complicada quando generalizamos uma mesma lei para todos os eventos, inclusive aqueles que ainda não ocorreram.

Em suma, o hábito é a única forma de se sustentar leis. Como reflexão, podemos tomar exemplos de teorias que pareciam corresponder conclusivamente aos eventos que ocorriam e foram abandonadas ou modificadas. Também podemos trazer para a crítica, os eventos anômalos que a Ciência não consegue explicar com sua teoria aplicada.

Aqui, me ausento de reflexões mais apuradas, sobre, por exemplo, o interesse econômico e político aos quais a Ciência pode estar sujeita, e mesmo as implicações éticas sobre o procedimento científico, pois não vem ao caso, de acordo com o que foi proposto nessa atividade discursiva.
Penso que o modelo tradicional ou convencional de Ciência, deva ser revisto, pois, o mundo moderno técnico-científico, não é o melhor dos mundos possíveis.

***

[1] HUME, D. Ensaio sobre o entendimento humano. Tradução de Maria Eloisa P. Tavares. Traduzido do texto disponível em inglês em gutenberg.org/files/36120/36120-h/36120-h.htm#OF_THE_DIGNITY_OR_MEANNESS_OF_HUMAN_NATURE


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6.5.13

Ainda é cedo

Noutro dia fui ver Somos tão jovens, filme que conta a trajetória musical inicial de Renato Russo e retrata com certa competência o estado espiritual de sua juventude em Brasília. O filme propositadamente se encerra antes de ter de falar das fases mais tristes de sua vida, e portanto deveria ser apenas mais um fim de tarde agradável no cinema... E era, até o finalzinho do filme, quando Renato canta Ainda é cedo. Apesar de ser uma cena de certo teor emocional, não parecia justificar o fato de eu haver chorado em pequenas cascatas ao longo de boa parte da música. Havia algo a mais que eu não havia identificado ainda... Algo que parecia estar mais profundo dentro de mim.

Eu gosto muito de fingir que este blog é impessoal – e tenho certeza que há muitos que acreditam. Mas, na prática, nunca foi, é apenas fingimento mesmo.

Não sei se estavam por aqui em 2006, quando ele começou, mas alguns de vocês devem saber que eu comecei este blog em homenagem a uma amiga. O nome dela é Flávia Lopes, e ela é poetisa.

Se hoje mesmo eu ainda conto nos dedos os poetas que conheço pessoalmente, antes de haver o blog e a própria massificação do acesso a internet no país, eu conhecia somente ela. E quem é poeta sabe: você pode ter pais, familiares, amigos próximos, mas somente outro poeta poderá entender de certos assuntos existenciais. Somente um poeta pode servir a uma certa carência de todo poeta, que é poder se comunicar com os outros sem as palavras, essas cascas de sentimento...

Eu me comunicava com ela sem as palavras. À noite, no telhado do seu prédio na Tijuca (no Rio de Janeiro; ela morava numa cobertura de um prédio antigo de onde dava para passear no telhado), contemplávamos tanto as estrelas quanto os gatos e transeuntes das calçadas – tudo nos interessava, mas nada precisava realmente ser dito.

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo [1]

***

Flávia era grande fã de Renato Russo e sua trupe, eu só fui virar fã de verdade anos depois de sua morte. Então é isto que o tempo me fez: começar este blog, e virar fã da Legião Urbana; e ambos são fruto direto do tempo que já não há: o tempo de visitar minha amiga, seja a noite ou de dia.

Dizem que inventamos essas histórias de vida após a morte para suportar a dor da perda de alguém querido, mas me custa identificar onde exatamente isto nos ajuda, se não podemos realmente visitar quem lá está, e retornar, exatamente como eu fazia quando passava pela Tijuca. A Tijuca onde minha amiga mora está hoje inacessível para mim...

Se eu creio que ela ainda existe? Claro que sim, mas isto não me serve exatamente de conforto. Não é isto o que me conforta, se querem saber.

Não me conforta, pois não sei o que ela anda lendo, nem quais gatos ela cria hoje, nem mesmo que tipo de videogame ela anda jogando do outro lado do véu. Serão games mais modernos, ou aqueles clássicos que jogávamos na sua casa? Isto que eu não sei!

A questão não é, portanto, se ela ainda se lembrará do meu nome quando me encontrar noutro canto do Cosmos. A questão é que ela será muito diferente, e eu também, pois estamos sempre mudando, sempre morrendo e renascendo. E terá passado muito tempo, então quem seremos nós um para o outro?

Seremos ainda poetas? Talvez... O que me conforta é saber que pelo menos o time de futebol ela irá manter. Então, como nossa única briga foi por causa de futebol (e prometemos nunca mais brigar por causa disso), eu espero poder encontrar com ela para pode instigá-la e brigarmos outra vez (e quebrar a promessa): “E o seu time hein? Meia vida depois, ainda sempre vice!”.

De resto, o que sobra? Só a saudade, e palavras escritas em sangue...

Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela

Sei que ela terminou
O que eu não comecei
E o que ela descobriu
Eu aprendi também, eu sei

E eu dizia: - Ainda é cedo
cedo, cedo, cedo, cedo... [2]

***

Eu não me importo em ocultar que muito da minha poesia é escrito com sangue:

Já se perguntou, amiga, o que aqui fazemos?
Nesse telhado, de frente para o luar,
E os espaços infinitos entre as estrelas,
E os espaços finitos entre todos nós...
Já se perguntou, alguma vez,
O que será que estamos a observar?

(...) Será que existe o telhado?
Será que existe essa conversa?
Será que existem gatos a pular?
Ou, antes de tudo isso,
Existem amigos, e amizades,
Existem seres conscientes de si,
E consciências etéreas, esvoaçantes...
Indetectáveis senão pelo amor, e pela dor,
De observar ao mais belo luar
Sem ter minha amiga para conversar? [3]

Na poesia, mesmo as cascas de sentimento parecem conseguir trazer algum resquício metafísico do sentimento, da sensação, da intuição, do amor e da alma do mundo... Ou pelo menos foi tudo isto que aprendi com minha amiga.

No filme de Renato, a personagem que é sua melhor amiga, e para quem ele supostamente compõe Ainda é cedo, se trata na realidade de um amálgama das três melhores amigas da sua juventude. Além de tudo, ela ainda está lá, ela reaparece.

No meu caso, será um pouco mais complicado. Por isso chorei daquela maneira no cinema, hoje sei. E por isso continuarei chorando sempre que calhar de relembrar minha amiga, hoje também sei. Mas ainda que seja tão dolorido tudo isso, há um alento, uma consolação, que não tem absolutamente nada a ver com vida após a morte...

Tem a ver com esta vida, que necessita ser vivida intensamente, como se não houvesse o amanhã que na verdade não há. Conforme os estoicos diziam: é preciso viver atento ao chamado do Barqueiro. Isto que vivemos aqui é somente a aventura de um náufrago em meio ao Oceano. É preciso estar atento, pois o Barco ainda irá velejar para muitas outras ilhas, e cruzar com muitos outros faróis a iluminar a neblina espessa. E não somos somente nós a navegar: cada um está a seguir o seu caminho!

Se ainda sofro com a ferida aberta da saudade? Sofro, e choro, e sangro!

Mas é melhor amar e perder que nunca haver sequer amado. É melhor ter uma poetisa somente na memória do que não a ter em canto algum, por antes nunca a haver conhecido... E que privilégio, que privilégio foi a ter conhecido!

De resto, o que sobra? Apenas a selvageria e a compaixão...

Depois de ter-lhe revelado tanto,
O que eu tenho,
Para minha causa?
Para meus prantos?
O que eu toquei,
O que eu senti?
Entre suas muitas faces?
Escondidas dentre mil mentiras?

(...) Depois de procurar todo esse tempo,
O que eu chorei,
O que eu quebrei?
A não ser meu ser incomodado,
A não ser minhas marés de vaidade?
Envoltas por poemas e livros,
Dentre selvageria e compaixão. [4]

***

Outra coisa que passa pela minha mente de vez em quando é uma pergunta estúpida: “Se eu pudesse trocar todo este blog, e tudo o que consegui com ele, pela vida de minha amiga, eu trocaria?”.

Sim, é uma pergunta estúpida e os estoicos também já sabiam disso: há coisas que nos cabe decidir, e há outras, muitas outras, que estão além da nossa capacidade de escolha...

Esta pergunta não tem resposta, pois a Natureza é simplesmente como é, e o tempo, passado ou futuro ou eterno, é apenas este momento e o que fazemos dele...

E eu sei meu amor, que disciplina é liberdade, e compaixão é fortaleza, e ter bondade é ter coragem, e também sei que lá em casa há um poço de águas tão límpidas e cristalinas. Mas, ainda assim, eu trocaria... Se pudesse, trocaria, e nem pensaria muito sobre o assunto.

Como ti, amiga, continuarei buscando. Continuarei buscando... Afinal, ainda é cedo...

Busco um canto
em que todas as crenças,
se consumam,
e todas as raças
se despatriotizem,
e todas as doenças
se extinguam,
e todos os  braços
se encontrem.

Busco um canto
em que a paz
se solidifique,
em que os sábios
não se corrompam,
e que as luzes
jamais apaguem.

Busco um canto
em que toda humanidade
em uníssono,
acompanhe,
e que a melodia,
atravesse séculos
de progressos e sangue,
e nos traga de volta
o dom da eternidade. [5]


Sou poeta e cronista - o lirismo é a amálgama destes dedos, confronta a vicissitude de meus passos. Conheci, desde a infância, o poder incutido na alma das palavras, como moldá-las, seduzindo cada frase, ora liberta e sem destino, repentina, ora trabalhada. Se me privassem de tal dom, necessidade ou vício, decerto enlouqueceria... (Flávia Lopes)  

***

[1] Tempo perdido (trecho), Legião Urbana.

[2] Ainda é cedo (trecho), Legião Urbana.

[3] A conversa (que não houve) (trecho), Rafael Arrais.

[4] Poema sem título (trecho), Flávia Lopes.

[5] Eternidade (trecho), Flávia Lopes.

Um conto por raph’13

***

Crédito das imagens: [topo] Divulgação (Somos tão jovens); [ao longo] Flávio (o último namorado dela, e também meu amigo).

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2.5.13

A escada mística

Stairway to Heaven (Escadaria para o Paraíso) é a mais famosa canção da banda inglesa Led Zeppelin. Composta pelo guitarrista Jimmy Page e pelo vocalista Robert Plant para o quarto álbum de estúdio da banda, Led Zeppelin IV. Recentemente a banda Heart a encenou na presença dos compositores, que não contiveram as lágimas ante tamanha beleza:

Há décadas esta música é tocada, e praticamente não há quem não seja "modificado" por ela, quando a ouve, ainda que não entenda uma palavra da letra (*). Eis que toda música que nasceu da alma é arte, e todas as artes são filhas da Arte, aquela que, há tempos, nossos antepassados chamavam de magia, e que Alan Morre bem definiu como "a ciência de se manipular símbolos no intuito de desencadear estados alterados de consciência"... Você já ouviu uma música que lhe tocou a alma, como esta? Então, você já sabe o que é magia.

E, se duvida do que estou falando, não deixe de ler esta descrição minuciosa do significado oculto desta música, no Portal TdC.

***

(*) Segue a tradução para o português, retirada de letras.mus.br:

Há uma dama certa de que tudo que brilha é ouro
E ela vai comprar a escadaria para o paraíso
Ao chegar lá ela saberá que se todas as lojas estiverem fechadas
Com uma palavra ela consegue o que veio buscar

E ela está comprando a escadaria para o paraíso

Há um aviso na parede, mas ela quer ter certeza
Porque você sabe, às vezes as palavras têm duplo sentido
Em uma árvore a beira do riacho há um rouxinol que canta
Às vezes todos os nossos pensamentos estão vazios

Oh, isso me faz pensar
Oh, isso me faz pensar

Há algo que sinto quando olho para o oeste
E meu espírito chora por liberdade
Em meus pensamentos eu vejo anéis de fumaça atravessando as árvores
E as vozes daqueles que observam

Oh, isso me faz pensar
Oh, isso me faz pensar

E é sussurrado que logo, se todos entoarmos a canção
Então o flautista nos levará à razão
E um novo dia nascerá para aqueles que chegaram lá
E a floresta irá ecoar com gargalhadas

Se ouvir barulho em seus arbustos, não se assuste
É só uma limpeza do inverno para a chegada da primavera
Sim, há dois caminhos que você pode seguir, mas na longa caminhada
Ainda há tempo de mudar o caminho que você segue

Oh, e isso me faz pensar

Sua cabeça lateja e não para nunca
Caso você não saiba, o flautista está te chamando para se juntar a ele
Querida senhora, você ouve o vento que sopra?
E você sabia que sua escadaria repousa no vento sussurrante?

E conforme seguimos por essa estrada
Com nossas sombras mais altas que nossas almas, lá caminha uma dama que todos conhecemos
Que tem um brilho branco e quer mostrar
Como tudo ainda vira ouro, e se você ouvir com muita atenção

A canção finalmente chegará até você
Quando todos são um e um é o todo, yeah
Para ser como uma pedra e não rolar
E ela esta comprando a escadaria para o paraíso

***

Crédito da imagem: LeoRiq

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