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31.8.13

A canção da lua e do sol

Nunca acreditei muito num Céu futuro.
Creio mais no Céu que a gente mesmo faz
em meio a este mundo escuro
onde a vida é nada mais que lampejo fugaz.

Dizem que Deus criou o homem e a mulher,
um sol e senhor do dia;
outra lua e dona da noite.
Talvez os homens tenham cegado
ante tamanha luz ao seu lado,
pois foi a mulher quem viu primeiro a noitinha
a luz das estrelas na linha sem fim.

Foi um cientista quem o disse,
“Todos somos poeira estelar”.
Não é somente através da ciência
que chegamos a tal conclusão,
é preciso também saber amar...

Amar! Amar!
Além mar, além horizonte,
além planetinha a girar,
todas as estrelas são sóis
com luas e mundos e deuses
bailando junto a poeira sideral.
Há afinal na Antiguidade
esta conclusão magistral
de que não fomos criados
nem homens nem mulheres,
mas que antes o somos
(todos nós o somos)
da raça dos deuses!

Deuses! “Vós sois deuses
e dia farão tudo o que tenho feito
e ainda muito mais!”

Esqueçam desse velho deus decrépito.
O ancião patriarca
de barba muito, muito branca,
a exigir devoção,
a barganhar favores,
a determinar que há um gênero forte,
superior e muito macho,
e outro que lhe deve submissão.
Esqueçam dele, abandonem-no
em seu trono de escuridão.

Meus irmãos e irmãs,
caros viajantes das estrelas,
não foi este o deus quem os criou.
Há um outro, menos perfeito,
e por isso mesmo bem mais interessante,
que de fato, moldou ao homem e a mulher,
não apenas para que procriassem,
mas para que se amassem!

E assim se amando, cantassem em uníssono
esta tal canção que une lua e sol
e nos carrega sempre adiante...

Além mar, além horizonte,
além planetinha a girar,
até a ponta da teia
eterna e infinita
que tece o Céu:
um passo,
um gesto,
um manifesto,
um canto,
um pensamento,
um momento por vez...

Até que raie o dia definitivo,
o dia que também é noite,
e se faça Céu enfim
onde antes era tudo assim
tão, tão escuro.


por raph em 31 de Agosto de 2013

***

Crédito da imagem: Helena Nelson Reed

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30.8.13

Há arte na guerra?

Tudo começou quando descobrimos como plantar e estocar grãos. Foi então que deixamos de ser caçadores-coletores para começarmos a nos tornar “donos de terras”. Então, outros caçadores perceberam que era menos arriscado saquear a comida estocada de aldeias pacíficas do que caçar animais ferozes. E, finalmente, houve outros guerreiros caçadores, talvez mais espertos, que se ofereceram para proteger as tribos em troca de um pagamento em grãos. Isto foi a origem dos exércitos e, de lá para cá, todas as guerras foram iniciadas por motivos muito parecidos.

Embora os governantes e generais tenham tentado convencer aos demais dos motivos de suas guerras se valendo das lendas e propagandas mais elaboradas, a verdade crua é que continuamos fazendo guerra por interesse em recursos, territórios e riquezas.

Se há eras atrás nos satisfazíamos com um saque de grãos, com o tempo as riquezas minerais, particularmente o ouro, passaram a ser o foco principal das guerras. Hoje em dia guerreamos por petróleo, o ouro negro, pelo menos até que ainda reste um barril que seja por ser extraído dos confins da terra. Isto por si só explica porque o primeiro mundo não se interessa em fazer “guerras preventivas” na África, onde temos ditadores tão ou mais sanguinários quanto no Oriente Médio. Mas no mundo árabe, como sabemos, há ainda bastante ouro negro. Enquanto houver petróleo, ainda haverá guerras por lá – quem sabe ainda tenhamos mais um século de conflitos...

Depois, o que será? Lítio? Diamantes? Uma volta ao ouro? Tanto faz, os caçadores se tornaram sedentários, mas parece que ainda há uma parcela da alma humana que insiste em permanecer coletora.

Abordando a guerra por esse aspecto, fica difícil imaginar onde Sun Tzu, lendário estrategista militar da China antiga, viu alguma “arte” nesta atividade. O grande paradoxo do seu célebre tratado, A Arte da Guerra, é exatamente o de expor os horrores da guerra enquanto aconselha a melhor forma de realizá-la.

A grande questão oculta nele, emprestada do taoísmo, é o reconhecimento de que a guerra é terrível, mas também inevitável, e o seu aconselhamento se dá precisamente numa abordagem de “suavização do horror”. Ora, se a guerra é inevitável, cabe ao bom governante e estrategista tratá-la com muita seriedade, e só enviar seus soldados para as batalhas que possam efetivamente ser vencidas.

Em realidade, o que Sun Tzu nos ensina é que quase todas as batalhas já estão ganhas ou perdidas antes mesmo de haverem se iniciado. É precisamente o conhecimento das inúmeras variáveis envolvidas na guerra que faz os vencedores e os perdedores.

Mas a excelência suprema ainda se encontrava em conhecer tão bem o inimigo ao ponto de conseguir vencê-lo sem que nenhuma batalha fosse necessária: seja pela diplomacia, seja pela propaganda, seja pelo suborno ou até por vias mais obscuras. Evitar o derramamento de sangue seria sempre uma estratégia superior, uma legítima arte.

Era isto que também nos advertia o Tao Te Ching...

Caso um rei peça conselhos a um mestre do Tao,
que o seu conselho não seja
“exibir a glória do reino pela força de suas armas”.
Tal ação certamente encontraria uma reação.
Toda força excessiva logo encontra outra força contrária.

Sempre que um exército permanece muito tempo estacionado,
o campo desaparece, e surgem os espinhos.
Onde quer que se encontrem grandiosos exércitos,
a colheita será pobre.

O general virtuoso realiza o ataque decisivo, e retrai.
Vence uma batalha, e poderia vencer ainda outras,
mas este seria um risco.
Ele não deseja alardear sua habilidade de estrategista,
nem saquear e destruir todos os reinados em seu caminho.
Ele entra na guerra por necessidade,
jamais para exibir a força de sua armada,
e nem mesmo pelo desejo da conquista.

Quando os homens recorrem à força excessiva,
quando são violentos,
eles logo envelhecem.
Pois a violência se opõe ao Tao,
e tudo o que se opõe ao Tao morre prematuramente.

Esta é a “advertência contra a violência”.


Tao Te Ching, verso 30 (tradução de Rafael Arrais)

***

Este texto será parte do Prefácio do próximo lançamento das Edições Textos para Reflexão: A Arte da Guerra, de Sun Tzu.

***

Crédito da imagem: Ayon (esta será a capa do nosso livro)

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Um gesto verde

O Gesto Verde é uma iniciativa ecológica da Bonial International Group, que por sua vez parece ser um serviço interessante que ajuda a encaminhar ofertas de comerciantes aos consumidores locais de cada região.

Segundo o que eles dizem, se um blog fizer um pequeno post sobre a iniciativa de "neutralizar o meu CO² produzido" e inserir na coluna lateral o selo da campanha, eles irão plantar uma árvore para auxiliar a neutralizar o CO² que um blog produz todo ano.

Você pode estar se perguntando quanto CO² um blog produz exatamente, e realmente existe um estudo sobre o tema, realizado por um ambientalista e físico da Harvard University. Segundo o Dr. Alexander Wissner-Gross, um internauta produz, em média, cerca de 0,02 gramas de CO² por exibição de página. Considerando que um blog geralmente recebe em torno de 15.000 visitas por mês, isso resulta em 3,6 kg de CO² emitidos por ano. Este total é gerado principalmente pelo grande consumo de energia, devido à refrigeração necessária para o funcionamento de computadores e servidores.

Portanto, me pareceu um gesto genuíno. Só espero que plantem mesmo a minha árvore (*)

Gesto Verde

***

(*) Eles entraram em contato novamente me informando que assim que 500 blogs aderirem a campanha, eles irão plantar 500 árvores e nos enviar maiores informações sobre o processo e o local do plantio.

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29.8.13

Sama

Trecho do Projeto Rumi:

Nós viemos girando do nada,
espalhando as estrelas como pó.
As estrelas então se puseram em círculo
e nós dançamos com elas ao centro.

Como a pedra do moinho, gira a roda do céu
em torno de Deus.
Acaso segure um raio de tal toda
terá sua mão decepada!

Girando e girando
tal roda dissolve todo e qualquer apego.
Acaso não estivesse apaixonada
ela mesma gritaria, “Basta!
Até quando hei de seguir nesse giro?”

Cada átomo gira desnorteado,
mendigos circulam entre as mesas,
cães rondam um pedaço de carne,
o amante gira em torno
de seu próprio coração.

Envergonhado perante tanta beleza,
giro ao redor de minha vergonha.

***

Vem! Ouça a música do sama [1].
Venha se unir ao som dos tambores!
Aqui nós celebramos. Aqui todos nós anunciamos:
“Eu sou a Verdade!”

Estamos em êxtase.
Embriagados de um vinho que não se colhe na videira.
O que quer que pensem de nós
em nada lembrará o que somos.

Giramos e giramos, extasiados.
Esta é a noite do sama.
Há luz agora. “Luz! Luz!”

Eis o amor verdadeiro
que diz para a mente: “Adeus”.
Este é o dia do adeus.
“Adeus! Adeus!”

Todo coração que arde nesta noite
é amigo da música.

Ardendo, ansioso por seus lábios,
meu coração transborda por minha boca.

***

Silêncio!
Você é feito de pensamento, afeto e paixão;
e o que resta é nada além de carne e ossos...

Por que nos falam de templos de oração
e de atos piedosos?
Nós somos o caçador e a caça,
outono e primavera,
noite e dia,
o Visível e o Invisível.

Nós somos o tesouro do espírito.
Nós somos a alma do mundo,
liberta do peso que enverga ao corpo.

Não somos prisioneiros nem do tempo nem do espaço
nem mesmo desta terra em que pisamos.

No amor fomos gerados.
No amor nascemos.


Comentário

Enquanto estamos aqui, nesta pedra a girar em torno do Sol, que por sua vez gira em torno do centro gravitacional da Via Láctea, que por sua vez gira atraída pelos grandes aglomerados de galáxias locais, não há sequer um momento em que estamos parados, nem mesmo um momento em que nossos átomos estejam parados.
Nesta roda cósmica tudo se move em direção a algum lugar. Tudo se encontra catapultado rumo ao horizonte... O que há depois disso tudo? O que existia antes? Por que diabos o mundo não cansa de dançar?
Você pode abordar esta questão cientificamente, e procurar analisar a posição e a velocidade de cada pequena partícula do Cosmos; e então, quem sabe, tal qual o Demônio de Laplace, saber perfeitamente para onde tudo se move, e com que velocidade se move. Saber de cada pequena coisa que ocorreu e ocorrerá!
Mas, ainda que você consiga tais informações a duras penas, ainda que se torne onisciente das coisas materiais, ainda assim não saberá de nada do que ocorre neste momento, nesta dança.

O sama é a dança da alma.
A alma não tem nem posição nem velocidade, nem tampouco está preocupada com o que ocorreu ou está para ocorrer.
A alma está no que ocorre neste momento; ela está dando o próximo passo desta dança...

Você pode sentir seus movimentos?

***

[1] O sama é a dança cósmica dos dervixes rodopiantes, criada por Rumi e praticada pela ordem sufi Mevlevi.

» Ouça o poema acima sendo recitado por Leticia Sabatella (a partir de 1:50; ela usa outra tradução)

Crédito da imagem: achada em facebook.com/mevlana

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23.8.13

O que é um buda?

Este curto e belíssimo vídeo nos foi enviado por um anônimo nos comentários de um post recente do blog...

Ele me remeteu a um conto que escrevi tempos atrás, do qual trago um trecho abaixo:

"Temos brincado e rolado juntos pelos montes de nossa pequena caixa de areia, e por vezes a temos tentado apanhar com as mãos – mas tal areia do deserto é como o tempo a escorrer entre os dedos, e não é possível guardar quase nada de todo esse turbilhão. Tudo o que guardamos são as brincadeiras, tudo que nos resta é continuar a brincar..."


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20.8.13

Lançamento: A Voz do Silêncio

Em mais um lançamento das Edições Textos para Reflexão, trazemos uma das obras-primas de Helena Blavatsky, A Voz do Silêncio.

Blavatsky escreveu esta obra de memória nos últimos anos de uma vida quase mitológica, totalmente dedicada a divulgação da luz da antiga sabedoria do Oriente. Esta edição traz um grande livro de uma grande autora, traduzido para nosso idioma por um dos homens que mais o dominaram ao longo de sua história, ninguém menos que Fernando Pessoa: 

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***

Abaixo, segue um trecho da introdução do livro:

Carta de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro

Lisboa, 6 de Dezembro de 1915

Meu querido Sá-Carneiro:

Como lhe escrevo esta carta, antes de tudo, por ter a necessidade psíquica absoluta de lhe escrever, Você desculpará que eu deixe para o fim a resposta à sua carta e postal hoje recebidos, e entre imediatamente naquilo que ficará o assunto desta carta.
Estou outra vez presa de todas as crises imagináveis, mas agora o assalto é total. Numa coincidência trágica, desabaram sobre mim crises de várias ordens. Estou psiquicamente cercado.
Renasceu a minha crise intelectual, aquela de que lhe falei mas agora renasceu mais complicada, porque, à parte ter renascido nas condições antigas, novos fatores vieram emaranhá-la de todo. Estou por isso num desvairamento e numa angústia intelectuais que você mal imagina. Não estou senhor da lucidez suficiente para lhe contar as coisas. Mas, como tenho necessidade de lhes contar, irei explicando conforme posso.
A primeira parte da crise intelectual, já você sabe o que é; a que apareceu agora deriva da circunstância de eu ter tomado conhecimento com as doutrinas teosóficas. O modo como as conheci foi, como você sabe, banalíssimo. Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito.
Coisa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre “Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz”. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me [?]. Não me julgue você a caminho da loucura; creio que não estou. Isto é uma crise grave de um espírito felizmente capaz de ter crises desta.
Ora, se você meditar que a Teosofia é um sistema ultracristão – no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus – e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, você terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise.
Se, depois, reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu Panteão todos os deuses, você terá o segundo elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (você compreende?) essenciais, atrai-me por se parecer tanto com um “paganismo transcendental” (é este o nome que eu dou ao modo de pensar a que havia chegado), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito. E o horror e a atração do abismo realizados no além-alma.
Um pavor metafísico, meu querido Sá-Carneiro!

Fonte:
“Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas”. Fernando Pessoa (Introduções, organização e notas de António Quadros). Publicações Europa-América, 1986.

***

Comentário
Ocorre um caso curioso no caso desta tradução de “A Voz do Silêncio”, onde o tradutor acaba se tornando mais famoso no meio literário, ao menos na “pátria da língua portuguesa”, do que a própria autora.
No entanto, embora nem todos o saibam, Fernando Pessoa traduziu diversos autores ligados a Teosofia: além da própria Helena Blavatsky, notadamente duas outras autoras – Annie Besant e Mabel Collins – e o autor C. W. Leadbeater. Em todos os casos traduções do inglês (idioma dominado por Pessoa) para o português (idem).


» Conheça outros livros das Edições Textos para Reflexão


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Uma certa beleza

Dizem que o homem teme a morte, porém morre todo dia, e renasce toda manhã.

E sua própria vida é algo em constante mutação, tanto celular quanto neuronal quanto espiritual: não somos os mesmos de 15 anos atrás, quase nenhuma célula é a mesma.

Então talvez temamos deixar de existir, mas muitas de nossas preferências e características deixaram de existir, sem realmente terem se aniquilado por completo. Não brincamos mais as brincadeiras de criança, mas temos ainda, quem sabe, uma vaga ideia de como elas eram...

Enfim, as personalidades mudam e morrem e renascem, mas as potencialidades caminham sempre a frente, quem sabe junto a seta do tempo: todo o inanimado se desorganizando, todo o animado se iluminando.

Mas mesmo a existência precede a essência, realmente, pois que antes de todas as substâncias e todas as almas, havia apenas uma única substância incriada e tão eterna quanto tudo o mais...

Há uma certa beleza em se pensar assim.

***

Crédito da imagem: fiddle oak

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16.8.13

Vote no conto "O Mensageiro" para o Prêmio Clube de Autores de Literatura Contemporânea

Pessoal, estou concorrendo com o conto "O Mensageiro" (parte do livro "Os Evangelhos de Tomé e Maria") ao Prêmio Clube de Autores de Literatura Contemporânea. Quem puder ajudar com o voto, basta cadastrar um e-mail válido para a confirmação:

Muito obrigado a todos que votaram, alcançamos o objetivo de ficar entre os 10 primeiros! Agora tudo vai depender da avaliação dos jurados, torçam por mim :)

Obrigado a todos que torceram, mas não conseguimos o prêmio pela avaliação dos jurados (tampouco sabemos quem ou quantos eram). A ganhadora foi Carla Cintia Conteiro com a obra O Ponto Aumentado.

***

Quem não têm o livro, pode ler o conto na íntegra aqui mesmo no blog:

» Parte 1: O Mensageiro dos Céus (no livro mudei o título para "O Buscador")

» Parte 2: O Rabi

» Parte 3: O Pescador de Almas

» Parte 4: O Ungido

» Parte 5: O Traçador de Círculos

» Parte 6: O Zelote

» Parte 7: O Filho da Vida

» Parte 8: O Recitador

» Parte Final: O Amante


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15.8.13

Interesses impessoais

Texto de Bertrand Russell em "A conquista de felicidade” (Ed. Saraiva/Nova Fronteira) – trechos das págs. 166 a 170. Tradução de Luiz Guerra. O comentário ao final é meu.


Os interesses impessoais, além de sua importância como fator de relaxamento, têm outras vantagens. Para começar, ajudam a manter o senso de proporção. É fácil deixarmo-nos absorver por nossos próprios projetos, nosso círculo de amizades, nosso tipo de trabalho, até o ponto de esquecermos que tudo isso constitui uma parte mínima da atividade humana total – e também pensarmos que a maior parte do mundo em nada afeta o que fizemos.

O leitor pode perguntar: por que devo me lembrar disso? Tenho várias respostas. Em primeiro lugar, é bom ter uma imagem do mundo tão completa quanto nos permitam nossas atividades necessárias. Nenhum de nós vai ficar muito tempo neste mundo, e cada qual, durante os poucos anos de sua vida, precisa aprender o máximo que puder sobre este estranho planeta e sua posição no universo. Não aproveitar as oportunidades de conhecimento, por mais imperfeitas que sejam, é como ir ao teatro e não prestar atenção na peça.

O mundo está cheio de fatos trágicos ou cômicos, heroicos, extravagantes ou surpreendentes, e aqueles que não encontram interesse no espetáculo estão renunciando a um dos privilégios que a vida nos oferece.

Por outro lado, o senso de proporção torna-se muito útil, e às vezes bastante consolador. Todos somos propensos à excitação exagerada, à preocupação exagerada, à impressão exagerada da importância do pequeno pedacinho de terra em que vivemos, e do pequeno espaço de tempo compreendido entre nosso nascimento e nossa morte.

Toda essa excitação e essa supervalorização de nossa própria importância nada têm de bom. É certo que nos fazem trabalhar mais, mas não nos farão trabalhar melhor. É preferível pouco trabalho com bom resultado a muito trabalho com mau resultado, embora não seja esse o pensamento dos partidários da vida superativa.

Os que se preocupam muito com seu trabalho se acham em constante perigo de cair no fanatismo, que consiste basicamente em recordar uma ou duas coisas desejáveis, esquecendo-se de todas as demais, e supor que qualquer dano incidental que causemos, tratando de conseguir essas coisas, não tem importância.

Não existe melhor precaução contra esse temperamento fanático que uma concepção ampla da vida humana e de sua posição no universo. Pode parecer que estamos invocando uma concepção demasiadamente grande para a ocasião, mas, fora desta aplicação particular, é algo que tem um grande valor por si só.

Um dos defeitos da moderna educação superior é que ela se transformou num puro treinamento para adquirir certas habilidades e cada vez se preocupa menos em ampliar a mente e o coração por meio do exame imparcial do mundo.

Vamos imaginar que estejamos empenhados em uma campanha política e que trabalhemos com todas as nossas forças pela vitória de nosso partido. Até aí, tudo bem. Mas ao longo da campanha pode perfeitamente acontecer que se apresente alguma oportunidade de vitória que implique o uso de métodos calculados para fomentar o ódio, a violência e a desconfiança. Por exemplo, podemos ter a ideia de que a melhor tática para ganhar uma disputa seja insultando uma nação estrangeira. Se nosso alcance mental só abrange o presente, ou se assimilamos a doutrina de que importa apenas o que chamamos de eficiência, adotaremos esses métodos tão equívocos. Pode ser que graças a eles consigamos atingir nossos propósitos imediatos, mas a longo prazo as consequências mostram-se desastrosas.

Em contrapartida, se nossa bagagem mental inclui as épocas passadas da humanidade, sua lenta e parcial saída do estado de barbárie e a brevidade de toda a sua história em comparação com os períodos astronômicos, se essas ideias modelaram nossos sentimentos habituais, nos daremos conta de que a batalha momentânea em que estamos empenhados não pode ser tão importante a ponto de nos arriscarmos a dar um passo atrás, retrocedendo às trevas de onde tão lentamente saímos.

Além disso, se somos derrotados em nosso objetivo imediato, nos servirá de sustento esse mesmo sentido do momentâneo que nos levou a rechaçar o uso de métodos degradantes. Mais além de nossas atividades imediatas, teremos objetivos a longo prazo – que pouco a pouco irão tomando forma –, nos quais uma pessoa não será um indivíduo isolado, mas sim parte do grande exército daqueles que têm guiado a humanidade para uma existência civilizada.

Quem haja adotado essa maneira de pensar nunca se verá abandonado por uma certa felicidade de fundo, seja qual for sua sorte pessoal. A vida se transformará em uma comunhão com os grandes de todas as épocas e a morte pessoal não será mais que um incidente sem importância.

Se me coubesse organizar a educação superior, [...] tentaria fazer com que os jovens adquirissem uma viva consciência do passado, que se tornassem plenamente conscientes de que o futuro da humanidade será, quase com toda a segurança, incomparavelmente mais longo que seu passado e que, também, adquirissem plena consciência de o quanto é pequeno o planeta sobre o qual vivemos, tanto quanto de que a vida neste planeta não passa de um incidente passageiro.

Juntamente a tais fatos, [...] apresentaria a esses jovens outro conjunto de fatos, esboçados para gravar em suas mentes a grandeza de que é capaz o indivíduo e convencê-los de que em toda a profundidade do espaço estrelar nada que tenha tanto valor é conhecido.

Há muito Spinoza escreveu sobre a servidão e a liberdade. Devido ao seu estilo e a sua linguagem, suas ideias são de difícil acesso, exceto para os estudantes de filosofia, mas o que pretendo dizer aqui distingue-se muito pouco do que ele disse.

Uma pessoa que tenha percebido o que seja a grandeza da alma, ainda que temporária e brevemente, já não poderá ser feliz, caso se deixe transformar em um ser mesquinho, egoísta, atormentado por males triviais, com medo do que lhe haja reservado o destino. A pessoa capaz de grandeza de alma abrirá de par em par as janelas de sua mente, deixando que penetrem livremente através delas os ventos de todas as partes do universo.

Ela se verá a si própria, verá a vida e verá o mundo com toda a verdade que nossas limitações humanas permitam; dando-se conta da brevidade e da insignificância da vida humana, e compreenderá, também, que nas mentes individuais se acha concentrado tudo o que de valor existe no universo conhecido.

Comprovará que o homem, cuja mente espelha o mundo, chega a ser, em certo sentido, tão grande quanto o mundo. E experimentará, inclusive, uma profunda alegria ao emancipar-se dos medos que assombram o escravo das circunstâncias – e, no fundo, continuará sendo feliz, malgrado todas as vicissitudes de sua vida exterior.

***

Comentário
Do alto de todo o seu ateísmo pleno de espiritualidade, Bertrand Russell consegue nos trazer uma mistura rara de conhecimento científico, político e espiritual. O que ele aconselha sobre levarmos sempre em consideração, na vida, o quanto somos pequenos em relação a totalidade do Cosmos e, o quanto somos, ainda assim, grandes em nosso amor pelo Cosmos e pelos seres que o habitam, é uma espécie de ensinamento que permeia tanto a filosofia epicurista e estoica quanto as belas “preposições geométricas” de Benedito Espinosa. Agindo assim, colocamos nosso interesse, nosso pensamento e, principalmente, nosso amor, além das fronteiras ilusórias de nosso eu – transbordamos o casulo e voamos, como borboletas, por toda a imensidão que nos abarca.

Perto da imensidão da natureza, nossas angústias e desejos soam como poeira e folhas espalhadas pelo vento no jardim. Quaisquer que sejam as diferenças entre as pessoas e seus desejos e angústias, elas não são nada perto das diferenças entre os seres humanos mais poderosos e os grandes desertos, as altas montanhas, geleiras e oceanos, a luz das estrelas. Existem fenômenos naturais tão grandes que tornam as variações entre duas pessoas quaisquer ridiculamente pequenas. Ao passar um tempo em amplos espaços, a consciência de nossa própria insignificância na hierarquia social pode se transformar na consciência reconfortante da insignificância de todos os seres humanos no Cosmos.

Podemos superar o sentimento de que somos insignificantes não nos tornando mais importantes ou desejando fama, poder ou status, mas reconhecendo a insignificância relativa de todos. Nossa preocupação com quem é alguns milímetros mais alto do que nós pode dar lugar a uma reverência a coisas infinitamente maiores que nós, uma força que podemos ser levados a chamar de natureza, vida, infinito, eternidade – ou simplesmente Deus.

Mas, sobretudo, quem mantém os pés no chão florido das amizades duradouras e a mente na imensidão estrelar do Cosmos, este não poderá jamais ser seduzido pelas efêmeras promessas dos chamados “bens materiais”. Pois que terá ao seu lado o amor ao saber, as reflexões diárias, a liberdade de pensamento, e a possibilidade permanente de se dirigir a janela do ser, escancaradamente aberta, e observar a paisagem – toda esta deliciosa impermanência que o cerca, sem jamais se apegar de fato a coisa alguma além do amor em si mesmo.

***

Crédito das imagens: Joel "Boy Wonder" Robinson

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11.8.13

O que virá adiante

O que é este zumbido,
sussurro gotejante,
algo estranho vindo
de antes do ouvido?
Uma sensação de vida,
vida verdejante
e líquida, a escorrer tal qual
córrego sinuoso,
sempre em busca
do que haverá mais adiante...

O que ele quer lhe confessar?
O que somos nós,
de onde viemos e onde tudo isso
vai desaguar?
Ora, se ventos sussurrantes
acaso pudessem sussurrar,
é isso que lhe diriam:
“Onde finda a poderosa ventania,
há um eco no horizonte,
e tal som é como a doce brisa
da primavera. Nada no mundo
pode realmente deixar de existir,
desde que haja nalgum dia
sido brisa ou ventania
no coração a amar e seguir”.

Os ventos trazem a chuva
que se oferece em êxtase para o barro.
Assim nascem de infindáveis sementes
os braços de madeira da Terra...
Você não vê o que eles desejam
com toda a ânsia da Vida por si mesma?
Querem abraçar o Céu!

O que iniciou toda essa história ancestral?
De sussurros e brisas e ventos
e córregos de amor líquido
descendo em cascatas sem igual?
Disso não sabemos...

O que sabemos é que tais questões
nascerem de mentes que surgiram de sementes.
Há toda uma mitologia que se canta em canções
de deuses, heróis, duendes e arcanjos.
Em cada mente ainda corre o líquido
que flui da Fonte aos borbotões
rumo ao Grande Oceano.

Mas agora chega de tantas indagações.
Já lhe dissemos muito, e em todo caso
a linguagem só faz represar
toda esta mitologia líquida
nos córregos eternos do ser.

Basta de pensar.
Faça silêncio,
e apenas se deixe desaguar
rumo a eternidade...

Meu amigo, meu amor, meu semelhante,
você mal faz ideia do que virá adiante!


raph’13

***

» Parte da série "Mito da criação"

Crédito da imagem: Google Image Search

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8.8.13

Um ser ondulante

Trecho do Projeto Rumi:

O amor não é condescendência,
nem livros ou qualquer marca em papel,
nem o que uma pessoa diz para a outra.

O amor é uma árvore
com seus galhos se elevando a eternidade,
suas raízes se aprofundando na eternidade
e nenhum tronco!

Você o viu?
A mente é cega para ele.
Seu desejo é incapaz de observá-lo.
A saudade que sente desse amor
vem do seu interior.

Quando se tornar o Amigo,
sua saudade será como o náufrago no oceano
agarrado a um pedaço de madeira...

Eventualmente, madeira, homem e oceano
se tornam um ser ondulante:
Shams de Tabriz, o segredo de Deus.

***

Mantido assim, para amamentação,
sem consciência, provando nuvens de leite,
nunca tão satisfeito.


Comentário

Enquanto transpirava paixão, perda e saudade em seus poemas, foi exatamente num sonho que Rumi conseguiu localizar Shams; conforme nos contou Aflâki, o seu principal biógrafo:

Uma noite, Rumi sonhou com Shams. Sentado numa pequena taverna em Damasco, ele jogava dados com um jovem francês, este também um buscador espiritual. Shams havia ganho todas as partidas e o perdedor, desesperado, estava a ponto de se lançar violentamente sobre ele. Rumi despertou subitamente da visão e pediu que seu filho, Sultan Walad, fosse até Damasco salvar Shams do perigo.
Walad viajou imediatamente e, ao chegar, de fato o encontrou na referida taverna sendo agredido e insultado pelo jovem. Walad se prostrou aos pés de Shams, depositou ouro e prata sobre suas sandálias e implorou, em nome do pai, que ele regressasse a Konya. Ao ouvir isso, o jovem francês compreendeu que havia insultado um grande mestre a também se prostrou a seus pés, envergonhado e implorando para que Shams o aceitasse como discípulo.
Shams o recusou dizendo: “Retorna à Europa; visita os buscadores de lá, seja o seu líder e recorde-se de nós em suas orações”. Então, Shams concordou em regressar a Konya e Sultan Walad o guiou, prosseguindo a pé por todo o caminho ao lado do cavalo em que Shams seguia montado.

Se o relato é verdadeiro, é sem dúvida um mistério a identidade deste jovem francês que vagava por Damasco no remoto século XIII. Quem sabe se tratava de um sobrevivente dos cátaros [1], tão brutal-mente perseguidos pelos ditos cristãos na Europa? Quem sabe, um cavaleiro em busca de aventuras em terras lendárias – afinal, o código de amor cortês e o ideário da cavalaria espiritual foram adotados no Ocidente quando o mundo europeu entrou em contato com a tradição sufi.

Isto também nos remete a Francisco de Assis, o grande santo do cristianismo na época e, segundo muitos, o maior cristão que caminhou neste mundo após Jesus de Nazaré...
Conforme nos conta o blog “Saindo da Matrix” [2]:

A atmosfera e organização da Ordem franciscana é mais parecida com os dervixes (Ordem sufi) que qualquer outra coisa. Além dos contos sobre Francisco serem muito parecidos com os dos professores sufis, todos os tipos de pontos coincidem. Como os sufis, os fran-ciscanos não se preocupam com sua salvação pessoal (o que era considerado uma vaidade). Francisco iniciava suas pregações com a frase “Que a paz de Deus esteja com você”, que ele disse ter recebido de Deus, mas que era (obviamente) uma saudação árabe. Até a roupa, com seu capote coberto e mangas largas, é a mesma dos dervixes de Marrocos e da Espanha, por onde Francisco se aventurou em 1212, plena época das cruzadas, dedicando-se a tentar converter os sarracenos pela não-violência.
O próprio nome da Ordem, “Fraternidade dos Irmãos Menores”, pressupõe haver os Irmãos Maiores, e os únicos com esse nome na época eram os “Grandes Irmãos”, uma Ordem sufi fundada por Najmuddin Kubra, “o Grande”. As conexões impressionam. Uma das maiores características deste grande sufi era sua misteriosa influência sobre os animais. Desenhos o mostram cercado de pássaros; ele amansou um cachorro feroz apenas olhando para ele (exatamente como Francisco fez com um lobo). Todas essas histórias eram conhecidas no Ocidente 60 anos antes de Francisco nascer.
Por tudo isso, não é de se espantar que, em Damietta, no Egito, de alguma forma Francisco e seus companheiros tenham conseguido cruzar a linha de batalha onde os Cruzados lutavam com os Árabes e se encontrar pessoalmente com o sultão Malik el-Kamil (e ser bem recebido). Diz-se que Francisco desafiou os líderes religiosos muçulmanos a um teste de fé através do fogo, mas eles recusaram. Então Francisco propôs entrar no fogo primeiro e, se ele saísse de lá incólume, o sultão teria que reconhecer o Cristo como o verdadeiro Deus. O sultão não aceitou, mas ficou tão impressionado com a fé deste homem que permitiu aos franciscanos acesso livre aos locais sagrados para os cristãos, como a sagrada sepultura. Deu um salvo-conduto para que eles pudessem trafegar e até mesmo pregar em terras árabes, e ainda pediu para que ele o visitasse novamente.

Aquilo que as igrejas e os estados separaram, o misticismo reúne novamente: todas as almas navegam neste mesmo segredo.

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Obs.: A história da amizade entre Rumi e Shams será contada em detalhes na versão final do livro, este é somente um trecho dela (e, sim, no livro ela é contada aos poucos, acompanhando os poemas de certos capítulos).

[1] O catarismo (do grego katharós, “puro”) foi um movimento cristão, considerado herético pela Igreja Católica. Ele se manifestou  no sul da França e no norte da Itália do final do século XI até meados do séculos XIV. Suas ideias tinham fortes paralelos com o gnosticismo do início da era cristã. Os historiadores indicam sua formação a partir da expansão das crenças dos bogomilos (Reino dos Búlgaros) e dos paulicianos (Oriente Médio). Eles afirmavam ser “os verdadeiros cristãos”. Traziam em sua doutrina a assinatura da mensagem sincrética do iniciado persa Mani, que tinha espalhado pelo mundo antigo sua doutrina gnóstica.

[2] Blog pessoal de meu amigo Acid (Sidharta Campos). O trecho foi retirado do post intitulado “São Francisco de Assis” (29/05/2007).

Crédito da imagem: Pintura de Frank Cadogan Cowper.

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6.8.13

Um poderoso vendaval

Stormur, do islandês: um poderoso vendaval, capaz de modificar tudo o que se encontra em seu caminho...

Assim é também a capacidade criativa e artística desta banda islandesa, Sigur Rós, dona de uma música quase alienígena.

Neste novo projeto interativo, eles se valem da recém implementada característica do Instagram, uma famosa rede social de compartilhamento de fotos, que agora também permite o compartilhamento de vídeos curtos (15 segundos).

O Sigur Rós pediu que seus fãs ouvissem a música Stormur e, inspirados por ela, gravassem vídeos com seus celulares e os postassem no Instagram com a tag #stormur. Então está montado o vídeo interativo: cada vez que o vemos, estaremos vendo vídeos novos, enviados de todas as partes do mundo.

Existe a música contemporânea. E existe Sigur Rós:

(clique na imagem para ver stormur)


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4.8.13

Astrum

Texto de Paracelso em "Filosofar pelo fogo” (Ed. Madras) – trechos das págs. 181 e 182. Tradução de Idalina Lopes. O comentário ao final é meu.

Tratemos agora do terceiro fundamento sobre o qual repousa a arte médica, ou seja, a alquimia. Se o médico não lhe dedica o maior cuidado e dela não adquire uma profunda experiência, toda sua arte corre o risco de permanecer inútil. Pois a Natureza é tão sutil, tão penetrante em suas diversas produções, que dela só podemos extrair seus benefícios com o auxílio de uma grande arte.

De fato ela não revela nada que se mostre realizado por si mesmo, e cabe, portanto, ao homem finalizar seus desejos; essa realização leva o nome de alquimia.

Assim, o alquimista é semelhante ao padeiro que assa o pão, ao vinhateiro que faz o vinho, ao tecelão que confecciona um tecido. E consequentemente é alquimista qualquer um que leve ao termo desejado pela Natureza o que nela cresce para o proveito do homem.

Saibam que a respeito dessa arte deve ser feita aqui uma distinção notável: se alguém tomasse uma pele de carneiro e, deixando-a em estado bruto, a usasse como pelica ou casaco, seria o maior exemplo da grosseria e inabilidade em comparação com a arte do peleteiro e do fabricante de tecido. Tão grosseiro e inábil é aquele que, recebendo algum dom da Natureza, não o usa.

[...] Mas hoje todos os ofícios manuais escrutaram a Natureza e adquiriam a experiência de suas propriedades, de forma que eles sabem, em todas as operações que são as suas, seguir suas vias e extrair o que nela existe de mais elevado.

Ora, hoje isso não é mais posto em prática em medicina – onde, no entanto, isso seria o mais necessário – e, que, no estado em que ela se encontra hoje, é a mais grosseira e inábil das artes.

[...] Ora, a própria Natureza o avisa, por meio das coisas, ao que você deve se dedicar a fim de oferecer à sua medicina toda a sua eficácia. O que o verão efetua com as peras e com as uvas também deve ser introduzido e realizado na medicina. E, quando sua medicina seguir tais preceitos, você também estará em condição de obter bons resultados.

Por isso é necessário agora mais uma vez relembrar que sua medicina deve dar frutos como o verão o faz com os seus. Saiba que o verão age assim com a ajuda do Astrum, e não sem ele.

Quando o Astrum exerce no tempo desejado a sua influência, saiba mais uma vez que sua preparação médica deve lhe ser rigorosamente ordenada e submetida; pois é ele que realiza a obra de arte.

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Comentário
Françoise Bonardel, filósofa e professora da Universidade de Sorbonne, é a responsável por essa grandiosa antologia de textos alquímicos publicada pela Madras. Segundo ela, o Astrum (em alemão, Gestirn) é um termo usado sobretudo desde Paracelso para designar o princípio ígneo (do fogo) capaz de fazer crescer e multiplicar as sementes das coisas.

O Astrum pressupõe, no entanto, para ser operativo, que a semente de cada coisa tenha sido excitada pelo calor celeste; e, portanto, que o microcosmo (pequeno mundo; humano) tenha sido colocado em estrita correspondência com o macrocosmo (grande mundo; cósmico), principalmente graças ao “fogo secreto” da Arte...

***

Ora, não é de surpreender que a Academia seja hoje tão “reticente” em lembrar que os primeiros grandes cientistas da história ocidental (ignorando-se os da Grécia antiga e, sobretudo, os da ilha de Samos) eram quase todos alquimistas, astrólogos, ocultistas, magos ou, no mínimo, filósofos da Natureza.

De fato, termos como “alquimia”, “arte médica”, “fogo secreto” ou “grande arte” são muito mal compreendidos pela quase totalidade dos cientistas atuais. Para que pudessem descobrir o real significado de tais termos há 500 anos atrás, teriam antes de se livrar de mais de um século de preconceitos estabelecidos pela Academia atual em torno de qualquer ideia que possa lembrar, mesmo que vagamente, a espiritualidade. Neste aspecto, nem os filósofos modernos lhes seriam de muita ajuda – teriam mesmo é que se debruçar nos livros de ocultismo (esta antologia poderia ser já um bom começo).

Mas, ainda assim, a mera leitura de antigos Manuais de Natação não seria o suficiente para lhes ensinar sobre a Experiência do Mergulho... Que diabos seria essa tal “arte médica”, esta “alquimia” de que nos fala Paracelso?

Não tenho nenhuma pretensão de lhes explicar, mas antes de tentar lhes despertar na alma alguma luz que pode estar ali guardada por falta de uso: Ora, “cumprir o desejo da Natureza”, “frutificar as sementes através da medicina”, “transformar chumbo em ouro”, tudo isso são metáforas, mas metáforas muito poderosas – que querem se comunicar com a alma, e não com a mera “intelectualidade” ou com o mero “raciocínio mecanicista”, conforme a Academia tende a interpretar o termo “razão” nos dias atuais.

Para ser um Médico como Paracelso, não basta decorar patologias e títulos de doenças catalogadas, é preciso também ser um médico de si mesmo, um conhecedor dos Astros, um cirurgião do Amor. Dessa forma, irá praticar a Grande Arte não somente nos pacientes, mas em toda a Vizinhança ao mesmo tempo, e assim cumprir a Vontade que vem do Alto. Irá, enfim, tratar das causas, e não dos efeitos.

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Crédito da imagem: Wikipedia

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