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28.2.12

Da mitologia a psicologia, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Joseph Campbell em "O herói de mil faces” (Ed. Cultrix/Pensamento) – pgs. 255 a 257. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. As notas ao final são minhas.

A apreensão da fonte desse substrato do ser, indiferenciado e, não obstante, particularizado nos quatro cantos do mundo, é frustrada pelos próprios órgãos por meio das quais deve ser realizada. As formas de sensibilidade e as categorias do pensamento humano, elas mesmas manifestações dessa força, limitam a mente num grau tão considerável, que normalmente é impossível, não apenas ver, como também conceber, além do colorido, fluido, infinitamente variado e deslumbrante espetáculo fenomênico. A função do ritual e do mito consiste em possibilitar e, por conseguinte, em facilitar, o salto – por analogia [1].

Formas e conceitos que a mente e seus sentidos podem compreender são apresentados e organizados de um modo capaz de sugerir uma verdade ou uma abertura que se encontram mais além. Tendo sido criadas as condições para a meditação, o indivíduo é deixado consigo mesmo, sozinho. O mito não é senão o penúltimo nível; o nível último é a abertura – o vazio, ou ser, que se acha além das categorias –, na qual a mente deve mergulhar sozinha e ser dissolvida [2]. Portanto, Deus e os deuses são apenas meios convenientes [3] – eles mesmos compartilham da natureza do mundo de nomes e formas, embora sejam eloquentes referências do inefável a que, em última análise, levam. São meros símbolos destinados a despertar e pôr a mente em movimento, bem como chamá-la a ir ao seu encontro.

Esse reconhecimento da natureza secundária da personalidade de toda divindade cultuada é característico da maioria das tradições do mundo. No cristianismo, no islamismo e no judaísmo, todavia, ensina-se que a personalidade da divindade é final – o que torna completamente difícil, para os membros dessas crenças, a compreensão do modo pelo qual é possível ir além das limitações de suas próprias divindades antropomorfas. O resultado tem sido, de um lado, um obscurecimento geral dos símbolos e, de outro, um fanatismo, voltado para os deuses, sem precedentes na história da religião [4].

O céu, o inferno, a era mitológica, o Olimpo, bem como as outras moradas dos deuses, são interpretados, pela psicanálise, como símbolos do inconsciente. [...] Como diz Jesus: “Porque eis que o reino de Deus está dentro de vós” [5]. Com efeito, o sentido de que se reveste a imagem bíblica da Queda é precisamente a passagem da supraconsciência para o estado de inconsciência. A constrição da consciência, à qual devemos o fato de não vermos a fonte da força universal mas, tão somente, as formas fenomênicas que ela reflete [6], transforma a supraconsciência em inconsciência e, no mesmo instante, precisamente ao fazê-lo, cria o mundo. A redenção consiste em retornar a supraconsciência e, por intermédio desse retorno, a dissolução do mundo.

Aí temos o grande tema, bem como a fórmula, do ciclo cosmogônico, a imagem mítica do processo de manifestação do mundo e do subsequente retorno à condição imanifesta [7]. Do mesmo modo, o nascimento, e vida e a morte do indivíduo podem ser considerados como uma descida à inconsciência, seguida de um retorno [8]. O herói é aquele que, embora ainda se encontre vivo, conhece e representa os apelos da supraconsciência – que é, ao longo da criação, mais ou menos inconsciente. A aventura do herói marca o momento em que este, embora ainda esteja vivo, descobriu e abriu o caminho da luz, para além dos sombrios limites de nossa morte em vida [9].

Assim é que os símbolos cósmicos são apresentados num espírito de sublime paradoxo, que põe o pensamento em polvorosa. O reino de Deus está dentro de nós e, não obstante, também está fora de nós; Deus, todavia, não é senão um meio conveniente de despertar a bela adormecida, a alma. A vida é o seu sono; a morte, o despertar [10]. O herói, aquele que desperta a própria alma, não é mais do que o meio conveniente de sua própria dissolução. Deus, aquele que desperta a alma, é, nesse sentido, sua própria morte imediata.

Provavelmente o símbolo mais eloquente possível deste mistério seja o do deus crucificado, o deus oferecido “ele mesmo a si mesmo”. Entendido numa das direções, o sentido é a passagem do herói fenomênico para a supraconsciência: o corpo, com os cinco sentidos – semelhante ao do Príncipe Cinco Armas grudado a Cabelo Pegajoso –, fica pendendo da cruz do conhecimento da vida e da morte. [...] Mas é igualmente verdadeiro que Deus desceu voluntariamente e colocou sobre si mesmo a carga de sua agonia fenomênica. Deus assume a vida do homem, que liberta o Deus que se acha em seu interior no ponto médio do cruzamento das hastes da mesma “coincidência de opostos”, a mesma porta do sol pela qual Deus desce e o homem sobe – Deus e o homem se alimentam mutuamente [11].

O estudioso moderno certamente pode examinar esses símbolos como lhe aprouver, quer como sintoma da ignorância do outro, ou como algo que lhe assinala a própria ignorância; quer em termos de uma redução da metafísica à psicologia, ou em sentido inverso. A forma tradicional consistia em meditar sobre os símbolos em ambos os sentidos. De qualquer maneira, os símbolos são metáforas reveladoras do destino do homem, bem como de sua esperança, fé e obscuro mistério.

***

[1] Muitos compreendem os mitos de forma superficial, como se todos os que utilizam os mitos acreditassem literalmente que seres de pele azulada com enormes cabeçorras de elefante realmente andam pelos montes da Índia. Para estes o salto seria um “salto de fé”. Mas, para os que conhecem os mitos, e os sabem utilizar, tal salto é nada mais que um salto de compreensão ou, talvez, se poderia igualmente dizer: um salto da imaginação, da intuição e da consciência.

[2] Há uma longa discussão acerca de se a mente é aniquilada, ou apenas o “eu”, a personalidade desta vida. Quando místicos dizem “eu já não vivo, mas Deus vive em mim”, obviamente ainda preservam resquícios de sua antiga personalidade, porém, de agora em diante, vivem segundo os desígnios do Cosmos (ver, por exemplo, a parte final da Ética de Espinosa, para uma abordagem filosófica deste mesmo conceito). Como reencarnacionista, eu obviamente creio que apenas as personalidades se vão (como não somos, de fato, os mesmos de 15 anos atrás), enquanto que as potencialidades, as essências, caminham sempre à frente.

[3] Há que se separar aqui o conceito de “Deus” do conceito da “existência”, ou do antigo problema: “porque existe algo, e não nada?”.

[4] No livro, este parágrafo em realidade era uma nota ao final do parágrafo anterior. Devido à importância da nota, decidi trazê-la para cá.

[5] Lucas 17:21. O que não é tão frequentemente lembrado no Novo Testamento, por outro lado, é repetido inúmeras vezes no Evangelho de Tomé e outros textos gnósticos.

[6] Voltando a Espinosa: vemos as infinitas irradiações e divisões da Substância, mas não vemos a Substância em si – ou, pelo menos, não com os olhos.

[7] Somos irradiados de Deus, de uma ancestral condição de supraconsciência, e somos obrigados a viver no mundo manifesto, com uma consciência nublada de nossa origem que, não obstante, ainda paira nos arcabouços do inconsciente. O caminho de retorno, de religação ao Cosmos de onde viemos um dia, nada mais é do que a origem (inclusive etimológica) do conceito de religião, religare, religação, reconexão: Eis o ciclo cosmogônico presente em toda mitologia.

[8] Considerando a imensidade de vidas por que passamos, devemos igualmente considerar que este ciclo de nascimento, vida e morte, não é único e, portanto, serão ainda muitos mundos deixados para trás, e muitos mundos ainda por se manifestar.

[9] A única certeza que temos todos é a de que a morte não existe: o máximo que pode existir é vida após a vida. E, em não existindo uma continuidade, a morte também é nada. No entanto, há muitos de nós que vivem como se estivessem mortos, sem o pleno domínio de sua vontade, imaginação, intuição, liberdade, etc. A esta “morte” poderíamos chamar estagnação – e a Natureza detesta estagnação, daí que a dor é o melhor remédio para aqueles que temem simplesmente amar.

[10] A essa altura você já deve ter percebido que esta “morte” significa um renascimento em vida, um despertar da consciência, da bela adormecida, da alma. Vide nota acima.

[11] “Nós somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo”, já intuiu alguém pleno de espiritualidade.

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Crédito da foto: Roy McMahon/Corbis

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27.2.12

Pessoa Play

» Parte da série: Play a myth

Se o mito existe fora do tempo, há alguns raros artistas que souberam falar diretamente ao reino da alma. Suas obras influenciaram e sensibilizaram tantos de nós que, mesmo após o fim, tornaram-se mitos de si mesmos, habitando nosso imaginário. Que viver na memória daqueles que nos amam é viver como um ser imortal. E, se algumas velas foram apagadas pelo tempo, não há nada capaz de extinguir a lembrança perene de sua luminosidade...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Google Image Search

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26.2.12

Da mitologia a psicologia, parte 1

Texto de Joseph Campbell em "O herói de mil faces” (Ed. Cultrix/Pensamento) – pgs. 251 a 255. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. As notas ao final são minhas.

O intelectual moderno não encontra dificuldades em admitir que o simbolismo da mitologia se reveste de um significado psicológico. [...] Com a descoberta de que os padrões e a lógica do conto de fadas e do mito correspondem aos do sonho, feita pelos grandes psicanalistas [1], as quimeras há muito desacreditadas do homem arcaico voltaram, de modo dramático, ao plano principal da consciência moderna [2].

Nos termos dessa concepção, há razões para crer que, através dos contos maravilhosos – cuja pretensão é descrever a vida dos heróis lendários, os poderes das divindades da natureza, os espíritos dos mortos e os ancestrais totêmicos do grupo –, é dada uma expressão simbólica dos desejos, temores e tensões inconscientes que se acham subjacentes aos padrões conscientes do comportamento humano. Em outras palavras, a mitologia é psicologia confundida com biografia, história e cosmologia [3]. O psicólogo moderno tem condições de retraduzi-la em suas denotações próprias e, desse modo, recuperar para o mundo contemporâneo um rico e eloquente documento das camadas mais profundas do caráter humano.

[...] Devemos notar que os mitos não são passíveis de uma comparação exata com os sonhos. As figuras dos mitos dos sonhos têm as mesmas fontes de origem – os poções inconscientes da fantasia –, assim como a mesma gramática; contudo, os mitos não são produtos espontâneos do sono. Pelo contrário, seus padrões são conscientemente controlados. E sua função conhecida consiste em servir como poderosa linguagem pictorial para fins de comunicação da sabedoria tradicional. Isso já se aplica, inclusive, às chamadas mitologias folclóricas primitivas. O xamã suscetível ao transe e o sacerdote-antílope iniciado não carecem de sofisticação em seu conhecimento do mundo, nem são inábeis na utilização dos princípios da comunicação por meio a analogia [4]. As metáforas pelas quais vivem e por meio das quais operam foram objeto de longa meditação, de pesquisas e de discussão ao longo de séculos – ou mesmo milênios [5]; além disso, serviram a sociedades inteiras como as principais bases do pensamento e da vida.

Os padrões culturais foram moldados a elas. Os jovens foram educados, e os anciãos se tornaram sábios, por intermédio do estudo, da experiência e da compreensão de suas efetivas formas iniciatórias [6]. Pois essas metáforas na realidade tocam e põem em jogo as energias vitais de toda a psique humana. [...] Onde os símbolos herdados receberam o toque de um Lao-tsé, de um Buda, de um Zoroastro, de um Cristo ou de um Maomé – empregados, por um mestre consumado do espírito, como veículo da mais profunda instrução moral e metafísica –, estamos, evidentemente, na presença de uma imensa consciência, e não diante das trevas.

Por conseguinte, para perceber o pleno valor de que se revestem as figuras mitológicas que chegaram até nós, faz-se necessário compreender que elas não são, tão somente, sintomas do inconsciente (como o são efetivamente todos os pensamentos e atos humanos), mas também declarações controladas e intencionais de determinados princípios de cunho espiritual, que permaneceram constantes ao longo do curso da história humana, como a forma e a estrutura nevrálgica da própria psique humana.

Em termos sucintos: a doutrina universal ensina que todas as estruturas visíveis do mundo – todas as coisas e seres – são o efeito de uma força ubíqua de que emergem, força essa que os sustenta e preenche no decorrer do período de sua manifestação e para qual eles devem retornar quando de sua dissolução última. Trata-se da força que a ciência conhece como energia [7], os melanésios como mana, os índios sioux como wakonda, os hindus como shakti e os cristãos como o poder de Deus. Sua manifestação na psique é denominada, na psicanálise, libido. E sua manifestação no cosmo constitui a estrutura e o fluxo do próprio universo.

» A seguir, a fórmula do ciclo cosmogônico...

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[1] Campbell cita alguns: Sigmund Freud, Carl G. Jung, Wilhelm Stekel, Otto Rank e Karl Abraham.

[2] Primeiro o racionalismo relegou toda mitologia arcaica há mera superstição, porém, ao se deparar com os mistérios da mente humana, foi obrigado a elaborar teorias acerca não somente da origem dos mitos na pré-história, como da razão de eles permanecerem “vivos” até os dias atuais. Enquanto o próprio Campbell, com sua teoria do Monomito, teoriza que toda a mitologia humana se concentra em ideias universais da psique, Jung fala em um Inconsciente Coletivo, e mesmo Dawkins elaborou o conceito dos Memes. Nenhuma dessas teorias é “comprovada”, mas alguns dos materialistas eliminativos, a despeito de sequer acreditarem na existência de uma mente humana, curiosamente adotaram os Memes como uma “teoria quente”.

[3] Os heróis lendários de outrora hoje nada mais são do que os super-heróis e “jovens bruxos” da mitologia moderna, que embora movimente muito dinheiro na indústria do entretenimento mundial, nada mais são do que mitos “diluídos”, para que a sociedade “racionalista” os possa “apreciar” sem pensar muito acerca da própria existência – ou, talvez fosse possível resumir: sem pensar quase nada, sem refletir.

[4] Por serem incapazes de compreender metáforas, alguns ditos “racionalistas” prontamente classificaram as pinturas rupestres como “arte primitiva, sem grande significado”. Mas, como alguns antropólogos modernos têm descoberto, em realidade as pinturas nas cavernas eram plenas de significados que, a despeito de terem permanecido ocultos para nós por praticamente um século (desde a descoberta das cavernas), não significa, obviamente, que eram incompreensíveis para nossos ancestrais. Sobre o assunto, recomendo o monumental Sobrenatural, de Graham Hancock (Nova Era).

[5] Existem registros de pinturas rupestres com pelo menos 32 mil anos de idade (vide nota acima).

[6] Hoje em dia é muito simples armazenar e divulgar informações, mas na pré-história nossos sábios ancestrais eram obrigados a confiar apenas na memória, na tradição oral e em alguns parcos registros pictóricos em cavernas guardadas aos iniciados. Não porque se tratasse de uma “elite” que queria guardar o conhecimento para si, mas exatamente o oposto: por se tratar de seres que tanto valorizavam o conhecimento, que os “inseriam” na mitologia, pois que sabiam que apenas a mitologia iria sobreviver àqueles tempos inóspitos (inclusive antes da invenção da escrita).

[7] No princípio era tudo energia, se existe um conceito em que tanto a cosmologia moderna quanto a religião concordam é que tudo o que há surgiu nalgum tempo muito longínquo de uma singularidade misteriosa – de fato, fez-se a luz!

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Crédito da imagem: PoodlesRock/Corbis (Hércules enfrenta o monstro enviado pelo Rei Minos, mitologia grega)

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24.2.12

O morro foi feito de samba

Dê uma chance ao samba, não o deixe morrer... Ele é antigo, vindo de outras terras, outros continentes, responsável por todos os morros e todas as festas dos morros:

Sambô - Não deixe o samba morrer

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» Não gosta de samba? Não tem problema, o importante é não deixar morrer.


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23.2.12

Sagan Play

» Parte da série: Play a myth

Se o mito existe fora do tempo, há alguns raros artistas que souberam falar diretamente ao reino da alma. Suas obras influenciaram e sensibilizaram tantos de nós que, mesmo após o fim, tornaram-se mitos de si mesmos, habitando nosso imaginário. Que viver na memória daqueles que nos amam é viver como um ser imortal. E, se algumas velas foram apagadas pelo tempo, não há nada capaz de extinguir a lembrança perene de sua luminosidade...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Google Image Search

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Poligenecentrismo

Trecho do Projeto Ouroboros (a partir deste ponto irei revelar o nome de um terceiro personagem, até então apenas "P.", agora Petrius). Também gostaria de deixar claro que, apesar de tantos meses sem um post desta série, o livro continua a ser elaborado... Ele está hoje mais deste lado do que do outro.

(Otávio) Desde que o DNA foi descoberto, seu conceito tem sido expandido – na maior parte das vezes, muito além dos seus próprios limites – para explicar praticamente qualquer característica das espécies, e mais particularmente do homo sapiens, o ser humano, que é onde pretendo focar nossa análise agora...
Diga-me, Petrius, o DNA pode servir para definir, por exemplo, a cor dos olhos?

(Petrius) Sem dúvida. De fato, foi uma das primeiras capacidades comprovadas em experimentação – se não me engano, nos olhos de uma mosca... Mas certamente isso pode ser estendido ao ser humano.

(Otávio) Ótimo.
E você concordaria se afirmasse que é o DNA que define a pigmentação de nossa pele, tornando ridícula a crença antiga de que existiam raças distintas de homens?

(Petrius) Mas é claro: o genoma do ser humano é praticamente idêntico para toda a espécie, e a variabilidade genética entre um e outro ser humano é tão ínfima que, de acordo com a biologia, não justifica a existência de “sub-espécies humanas”...
Nesse sentido, hoje é perfeitamente válido afirmar que o racismo não é apenas um defeito moral, mas também uma ignorância das leis naturais.

(I.) Interrompe.
E, ainda que existissem, ainda seria absurda a antiga idéia de que certas raças tinham alma, e outras não...

(Otávio) Sorri.
Perfeito, meu amigo. E não esqueçamos que mulheres e animais também têm alma, pois a natureza não opera de modo seletivo, e a vida que anima a bactéria e o roedor é a mesma que eventualmente permitiu que um dia surgisse a espécie humana. Espécie, e não raça!
Mas, prossigamos meus amigos: Meu caro Petrius, você também concorda que o DNA pode ser decisivo na influência do desenvolvimento de cânceres e outras doenças de nascença?

(Petrius) Muitas doenças, incluindo o câncer, podem ter sua probabilidade de incidência aumentada pelo histórico genético da família, ou da hereditariedade genética. Vale ressaltar, no entanto, que em medicina trabalhamos com possibilidades: jamais um médico poderá afirmar, analisando o histórico genético de sua família, que você terá 100% de chance de desenvolver um câncer – seja na infância ou em qualquer outra fase da vida. Ou, pelo menos, até hoje não ouvi dizer de algo assim.
Já para algumas doenças, particularmente em heranças genéticas ligadas ao sexo, podemos realmente ter uma chance de incidência em 100%...

(Otávio) Pois bem, até aqui falamos somente de características físicas associadas à determinação dos genes.
Agora entrarei em terreno mais pantanoso. Meu amigo, você já ouviu falar no “gene da fé”?

(Petrius) Sorri.
Sim, sim, eu já li sobre isso. O vmat2 é um gene isolado por um polêmico geneticista norte-americano [1]. Ele supostamente estaria envolvido no transporte de uma classe de mensageiros químicos do cérebro conhecidos como monoaminas, do qual o mais famoso é a serotonina, a molécula do bem-estar. Algumas drogas como o ecstasy e o prozac também influenciam o humor alterando os níveis de serotonina no sistema nervoso. Aparentemente, para este cientista, a fé se resume a estados alterados de consciência que propiciam “bom humor”... Talvez não esteja de todo errado em relação à fé, mas certamente está errado em relação à função desse tal gene. Desnecessário dizer: não há nada comprovado quanto a isso!

(I.) Levanta a mão e articula em desaprovação.
Pois eu diria que está bastante equivocado em relação a ambos!

(Petrius) Sorri.
Tudo bem, não levantemos uma polêmica em torno das idéias de um cientista equivocado. Prossigamos...

(Otávio) Mas a questão é mais importante do que parece...
Ora, esse tal cientista faz parte do ramo de estudos da chamada genética comportamental. Além deste nome curioso para este campo em específico, temos ainda o campo da psicologia evolutiva, que se baseia na teoria de Darwin-Wallace para tentar elucidar as razões para uma série de comportamentos humanos que têm sido identificados conforme padrões específicos, ao longo do tempo.
Você diria, Petrius, que o DNA pode explicar o surgimento de características não físicas desde o nascimento – como a tendência a crer em Deus, a tendência para esta ou aquela inclinação sexual, ou até mesmo a aptidão para música ou matemática?

(Petrius) O DNA, sozinho, não.

(Otávio) Mas você concorda que há muitos desinformados, seguidores cegos das determinações da ciência moderna, que crêem piamente que o DNA opera como uma espécie de “caixa mágica”, ou algum deus, que determina todas as nossas características, físicas, mentais e até mesmo espirituais, numa espécie de determinismo genético que não deve em quase nada a crença no determinismo divino?

(Petrius) Sim, é claro que isso ocorre. Infelizmente nem todos têm a vontade de estudar ciências, ou pelo menos ler divulgação científica. E, ainda pior, muitos de nossos cientistas mais célebres pouco fazem para tentar remediar o problema. Se surge, por exemplo, um cientista genuíno – e não nego que seja, mas cientistas podem estar errados, e muitas vezes estão – afirmando ter encontrado um “gene da fé” ou um “gene da homossexualidade”, ou ainda uma espécie de “tendência a atos de estupro fomentada pela herança genética da espécie” [2], certamente ele ganha um grande espaço na mídia, rapidamente. Mas as experiências que comprovam a falsidade dessas teorias não são anunciadas da mesma forma, e muitas vezes são anunciadas tarde demais.
Mas, se parte da culpa é dos cientistas equivocados, a maior parcela recaí sem dúvida em nosso sistema social: na mídia que confia quase cegamente em qualquer baboseira que surge de uma “fonte científica oficial”, e na própria sociedade que aceita novas determinações científicas, algumas as mais absurdas, de forma passiva, se abstendo de pesquisar por si mesmos e, em última instância, de pensar.
Eu diria, para terminar, que estamos vivendo na era do genecentrismo, ou melhor, do poligenecentrismo, visto que cada ano que passa surge uma nova pesquisa para adicionar um novo gene ao nosso “panteão de deuses genéticos”. Eu admito que gostei da sua analogia, isso nada mais é do que um novo politeísmo, onde deslocamos os deuses naturais, a determinar nossas vidas desde o berço, para esses tais genes “quase divinos”. Vale ressaltar, no entanto, que até o momento a ciência não encontrou um gene que determine quaisquer características não físicas – não encontrou, mas pode ser que um dia encontre, embora eu certamente não me abstenha de duvidar profundamente disso...

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[1] Conforme a nota existente no livro: Trata-se de Dean Hamer. Ele também já afirmou ter encontrado o “gene da homossexualidade masculina”, mas outros cientistas falharam em replicar suas experiências, e ele foi exposto ao ridículo... Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias.

[2] Eva Jablonka e Marion J. Lamb fazem uma crítica muito mais contundente e embasada da “persona púbica” da genética comportamental no livro “Evolução em quatro dimensões”. Ver, por exemplo, um trecho transcrito neste blog: A pornografia científica.

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Crédito da imagem: Mike Agliolo/Corbis

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20.2.12

A Festa dos Loucos

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 51 a 56. A introdução e os comentários ao final são meus.

Introdução
Neste livro provocativo (e muito corajoso), Alain, que se declara ateu, defende que a sociedade secular tem muito o que aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Neste trecho em específico ele faz um elogio ao senso de comunidade presente nas religiões organizadas...

***

As religiões são sábias ao não esperar que lidemos sozinhos com todas as nossas emoções. Sabem como pode ser confuso e humilhante admitir desespero, luxúria, inveja ou egomania. Compreendem a dificuldade que temos para encontrar uma maneira de dizer à mãe, sem ajuda, que estamos furiosos com ela, ao filho que o invejamos ou ao futuro cônjuge que a ideia de casamento assusta tanto quanto alegra. As religiões, desse modo, nos dão dias especiais para que neles os sentimentos perniciosos possam ser processados. Elas nos dão versos para recitar e músicas para cantar enquanto nos transportam através das regiões traiçoeiras de nossas mentes.

Em essência, as religiões entendem que pertencer a uma comunidade é ao mesmo tempo bastante desejável e nada fácil. A esse respeito, são muito mais sofisticadas que os estudiosos seculares de teoria política que escrevem de forma lírica sobre a perda de um senso de comunidade enquanto se recusam a reconhecer os aspectos inteiramente obscuros da vida social [1]. As religiões nos ensinam a ser educados, a honrar uns aos outros e a ser fiéis e sóbrios, mas também sabem que, se não nos permitirem o contrário de vez em quando, quebrarão nosso espírito. Em seus momentos mais sofisticados, as religiões aceitam a dívida que bondade, fé e doçura têm com seus opostos.

O cristianismo medieval certamente compreendia essa dicotomia. Durante a maior parte do ano, pregava solenidade, ordem, moderação, camaradagem, sinceridade, amor a Deus e decoro sexual, e, então, na noite do ano-novo, abria as portas da psique coletiva e dava início ao festum fatuorum, a Festa dos Loucos. Durante quatro dias, o mundo ficava de cabeça para baixo: membros do clero jogavam dados em cima do altar, zurravam como burros em vez de dizer “amém”, faziam competições de bebedeira na nave, peidavam como acompanhamento à ave-maria e faziam sermões de galhofa, baseados em paródias do Evangelho (o Evangelho segundo o Traseiro da Galinha, o Evangelho segundo a Unha do Pé de Lucas). Após beber canecas de cerveja, eles seguravam os livros sagrados de ponta-cabeça, faziam orações para vegetais e urinavam em cima das torres dos sinos. “Casavam” burros, amarravam pênis gigantes de lã em suas batinas e tentavam fazer sexo com homens ou mulheres dispostos a tanto [2].

Mas nada disso era considerado apenas uma piada. Era sagrado, uma parodia sacra idealizada para garantir que durante todo o resto do ano as coisas permanecessem em ordem. Em 1445, a Faculdade de Teologia de Paris explicou aos bispos da França que a Festa dos Loucos era uma evento necessário no calendário cristão, “para que a insensatez, que é nossa segunda natureza, e inerente ao homem, possa se dissipar livremente pelo menos uma vez ao ano [3]. Barris de vinho de tempos em tempos estouram se não os abrimos para entrar um pouco de ar. Todos nós, homens, somos barris reunidos inadequadamente, e é por isso que permitimos à tolice em certos dias: para que, no fim, possamos regressar com maior fervor ao serviço de Deus”.

A moral que devemos tirar é que, se desejamos comunidades que funcionem bem, não podemos ser ingênuos quanto à nossa natureza. Precisamos aceitar a profundidade de nossos sentimentos destrutivos, antissociais. Não deveríamos exilar na periferia as festas e libertinagens para serem limpas pela polícia e condenadas por comentaristas. Deveríamos dar ao caos um lugar de destaque pelo menos uma vez por ano, designando ocasiões em que podemos ficar brevemente isentos das duas maiores pressões da vida adulta secular: ser racional e fiel. Deveríamos ter permissão para falar bobagens, amarrar pênis de lã em nossos casacos e cair na noite para festejar e copular aleatória e alegremente com estranhos e, então, retornar na manhã seguinte para nossos parceiros, que também teriam saído fazendo coisas semelhantes, ambos cientes de que não era nada pessoal, que foi a Festa dos Loucos que provocou as ações [4].

Aprendemos com a religião mais que os encantos da comunidade. Aprendemos também que uma boa comunidade aceita o que há em nós que, na verdade, não deseja a comunidade – ou, ao menos, não pode tolerá-la o tempo inteiro em suas formas ordenadas. Se temos nossas festas do amor, também devemos ter nossas festas dos loucos [5].

***

[1] O modernismo e o racionalismo nos prometeram uma nova sociedade humanista, profundamente culta, organizada e, sobretudo, racional. Mas esqueceram de guardar um lugar para a loucura e as experiências religiosas, pois acharam que, com o tempo, elas simplesmente seriam deixadas de lado por todos, esquecidas... O pós-modernismo nos trouxe duas polaridades: De um lado, os religiosos que, além de não terem abandonado as experiências religiosas, pelo contrário, se voltaram para elas com ainda mais afinco – vide o crescimento dos movimentos evangélicos carismáticos, e de seitas de Nova Era em geral; De outro lado, os não religiosos, que não apenas jamais abandonaram totalmente a loucura, como têm tido imensa dificuldade em viver como seres “perfeitamente racionais”, e o avanço da depressão e do culto ao sexo exacerbado são apenas os sintomas mais visíveis deste fato.

[2] Como muitos outros ritos do cristianismo, a Festa dos Loucos tem origens bem mais antigas. Em Roma, havia uma festa homônima, onde vários representantes do panteão mitológico romano eram homenageados e adorados, entre eles Júpiter (senhor do Universo e do dia), perpassando tal deferência por Saturno (deus da agricultura) e finalizando-se os festejos na adoração e culto a Baco. Muitas culturas ainda mais antigas, no entanto, tinham a sua versão para a Festa dos Loucos: Na Antiguidade, essa festa era uma prática religiosa relacionada à fertilidade do solo. Era uma espécie de culto agrário em que os foliões comemoravam a boa colheita, o retorno da primavera e a benevolência dos deuses. No contexto da cultura egípcia, os ritos "festivos" constituíam-se, também, de oferendas ao deus Osíris, devido ao recuo das águas do rio Nilo. Os gregos aproveitavam o momento para homenagear Dionísio, deus do vinho e da loucura, e também Momo, o deus da zombaria.

[3] Segundo o padre e filósofo Anselmo Borges, “o homem não é só sapiens. Ele é sapiens e demens (sapiente e demente). Por mais que a sociedade tente ‘normalizar’ comportamentos, haverá sempre explosões de alegria, excessos, desmesuras e loucuras”.

[4] Antes colocar “na conta” da Festa dos Loucos nossos momentos anuais de afloramento da loucura “guardada em caixas do inconsciente”, do que deixá-la lá, trancada, causando sabe lá quais danos psíquicos. Claro que, existem outras formas menos “festivas” de lidar com essa loucura, mas isso cabe aos poucos sábios e místicos que aprenderam a lidar com ela, e dificilmente aqueles que foram educados para ser “racionais 100% do tempo”. Antes deixar essa loucura aflorar em uma festa de alegria e paz, ainda que regada a uma boa dose de sexo desenfreado, do que deixá-la se transformar em amargura, angústia, violência, preconceito, moralismo exacerbado e, finalmente, em puritanismo (o grande medo de que, em algum lugar, alguém possa simplesmente estar vivendo a vida, feliz). Ou, em outras palavras: faça amor, não faça guerra – nem que seja apenas uma vez ao ano.

[5] É claro que, a essa altura você já deve ter percebido, a Festa dos Loucos nada mais é, nos dias atuais, que o Carnaval. Ela sobreviveu, portanto, as civilizações e sociedades, desde a Antiguidade, pois talvez seja mesmo algo intrínseco ao ser humano.
Ainda se discute o significado do termo “Carnaval”: Para alguns, seria carrum navale (carro naval). Nas Saturnais, em Roma, um carro em forma de navio abria caminho por entre a multidão, que usava máscaras e se divertia. Já antes, na Grécia, se realizavam as célebres procissões dionisíacas, nas quais a imagem de Dioniso era transportada em navios com rodas, simbolizando que o deus tinha chegado a Atenas pelo mar. O significado mais aceito, entretanto, é carne vale: "Viva a carne!", enquanto "adeus à carne", na medida em que, antes da entrada no período quaresmal de 40 dias com jejuns, abstinência e sacrifícios, se festeja exaltadamente. Daí que o Carnaval esteja mais ligado à tradição de países católicos e que continuem expressões como "Domingo Gordo" e "Mardi Gras" (Terça-Feira Gorda).
Viva, enfim, o Carnaval, da melhor maneira que conseguir, como uma festa sagrada da vida e da loucura passageira, para que, no restante do ano, consiga deixar sua loucura lá, “domesticada”, amigável, à espera da próxima Festa. Para que a loucura, nalgum dia, não assuma o controle: “Você me deixou escondida por muito tempo, agora é a minha vez, e não terá mais volta!”

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Crédito da foto: Scott Stulberg/Corbis

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Links Mayhem (42)

O Projeto Mayhem foi criado em Março de 2010 como centro de debates e discussões sobre temas Ocultistas e Herméticos. Agora, toda semana, os participantes do projeto divulgam os links mais interessantes para artigos nos blogs de outros participantes:

- Teoria da Conspiração - Maçonaria responde às críticas
- Textos para Reflexão - Educação secular (parte 2)
- Artigo 19 - Intoxicados
- O Alvorecer - Sou ateu! Tudo bem, mas e daí?
- Labirinto da Mente - O (Re)começo: perguntas especiais
- Diário do Adeptu - O verdadeiro médium umbandista
- Tudo sobre Magia e Ocultismo - 2012, uma boa oportunidade para os ocultistas iniciantes
- Idéia Biruta - De onde vem os Ocultistas?
- Autoconhecimento e Liberdade - A ascensão da Nova Era
- Sinfonia Cósmica - Que é verdade?
- Caminhos de Plenitude - Divino Pai
- Jornal O Bruxo - Cientistas encontram sinais da existência da partícula de Deus

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Veja também os colunistas no Portal Teoria da Conspiração:

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» Veja todos os posts sobre o Projeto Mayhem

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17.2.12

Gibran Play

» Parte da série: Play a myth

Se o mito existe fora do tempo, há alguns raros artistas que souberam falar diretamente ao reino da alma. Suas obras influenciaram e sensibilizaram tantos de nós que, mesmo após o fim, tornaram-se mitos de si mesmos, habitando nosso imaginário. Que viver na memória daqueles que nos amam é viver como um ser imortal. E, se algumas velas foram apagadas pelo tempo, não há nada capaz de extinguir a lembrança perene de sua luminosidade...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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(clique na imagem para abrir em tamanho maior)

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» Saiba mais sobre Gibran

» Veja posts sobre Gibran em nosso blog

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Gibran (não é um auto-retrato, mas o retrato de Almustafa, personagem principal de sua obra prima - O Profeta; porém, como a imagem lembra muito a ele próprio, e como Gibran já virou um mito, achei que esta seria a imagem mais indicada)

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Ponte para o infinito

Porque os homens viram o infinito
E tanto se espantaram
Foi que criaram o mito
A magia, o saber
A ciência, a filosofia
A poesia: uma religião
Para a imensidão

Criaram, enfim, uma terra cinzenta
Onde tudo existe assim: dividido
Separado em caixas
Para que a razão pudesse analisar
Cada pequeno pedaço finito
De um todo sem fim

Existe, portanto, esta terra de angústia
De vida cíclica a se renovar
De guerra e conflito constante
Do lento depurar
Da existência agonizante
Até que, de tanto passar pelo céu
O espírito finalmente chova
Em gotas límpidas e cálidas:
A tempestade do ser

Há, sim, uma terra de morte
E uma terra de vida
E a única ponte é o amor
Cada pequeno gesto de generosidade
Cada bom dia entusiasmado
Cada sorriso da alma
É um passo na longa ponte
Um passo
Que não será desperdiçado...

raph'12

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Crédito da foto: Jack Hollingsworth/Corbis

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16.2.12

O homem que sabe

Eduardo Marinho nasceu em família rica, serviu o exército e tentou cursar Belas Artes, mas devido a pressão da família resolveu tentar o Direito. Um dia, desistiu de fingir que seguia algum caminho, e decidiu viver o próprio caminho. Trancou a faculdade, virou artista de rua e amigo de mendigos, rodou o país e se tornou um grande antropólogo do mundo atual. Eduardo, sim, é o homem que sabe. Nesta palestra no TEDx DaLuz ele nos passa um pouco desta sabedoria adquirida:

» Veja também este vídeo onde ele expõe opiniões um pouco mais radicais

» Veja também o seu blog, Observar e Absorver, com trechos de livros publicados pela Navilouca


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15.2.12

Schiller e a dimensão estética

Texto de Viviane Mosé em "O homem que sabe” (Ed. Civilização Brasileira) – pgs. 147 a 150. As notas ao final são minhas.


Somente através da beleza da manhã é possível penetrar a terra do conhecimento (Schiller)


Para Anatol Rosenfeld [1], a concretização de muitas ideias kantianas apenas esboçadas coube a Schiller, especialmente no domínio da estética.

O homem, pensa Schiller, é determinado pelas forças da natureza e, na grande maioria das vezes, perde para ela. A única liberdade humana consiste em não se deixar escravizar, o que implica exercer o senso moral por meio da linguagem e do pensamento [2]. A capacidade humana de criar valores representa o domínio próprio do homem; eles são o modo humano de se contrapor à natureza, por isso não derivam da necessidade, mas da liberdade. É por “claro saber e livre decisão” que o homem troca o estatuto de independência, no estado natural, pelo do contrato, no estado moral. [3]

No entanto, esta contraposição entre a natureza de um lado e o homem de outro se compõe com um combate que pode aniquilar o homem, porque gera uma luta sem fim [4]. Somente o senso estático, ele diz, como um terceiro caráter, pode fazer a ponte entre estes dois domínios [5]; é ele que desfaz esta polaridade, porque aproxima o que a razão afasta. Se a razão teórica precisa decompor, separar, o senso estético se caracteriza por compor, aproximar. O senso estético existe para reunir o que a razão teve de separar.

Enquanto apenas luta contra a natureza, por meio do conhecimento que fragmenta o mundo tentando conhecê-lo ou dominá-lo, o homem perde, porque, em última instância, é sempre finito, mortal [6]. Mas ele pode, auxiliado pelo senso estético, não lutar contra o mundo, o que implica em não fragmentá-lo, mas se ver inserido nele e, fortalecido pelo sentimento de pertencimento, tornar-se capaz de lidar com as perdas. A faculdade do juízo, diz Kant, é a capacidade de pensar o particular contido no universal, por isso somente ela é capaz de desfazer a unidade fictícia e provisória do sujeito particular, reinserindo-o na totalidade que o sustenta e alimenta [7]. É a sua consciência individual, ou seja, é o saber de si como provisório que o faz sofrer. Quando o homem se sente inserido no todo, o sofrimento particular perde importância e ele, então, não sucumbe, e vence a natureza não pela força, mas pelo puro exercício da liberdade moral, que fortalece, amplia, alarga a alma.

A faculdade de julgar, ao se construir como uma livre combinação entre as faculdades, sem a necessidade de emitir um juízo sobre o objeto, mas sobre si mesma, termina por entrar em uma relação de harmonia com a natureza, dando esta sensação de pertencimento, de entendimento sem conceito, de participação [8]. A dimensão estética, o lugar por excelência do sentir, que elabora os afetos, é também aquilo que nos alimenta e fortalece [9]. Em vez de apenas buscar vencer objetivamente o mundo, o homem pode, ainda e fundamentalmente, fortalecer a si mesmo para ser capaz de lidar com o mundo. A elaboração do sentir, que acontece no juízo de gosto, resulta neste fortalecimento do homem, especialmente porque se dá no próprio homem, não está em relação de causalidade com nada exterior a ele, com nenhum objeto. O senso estético diz respeito a como nos sentimos em relação ao mundo, não diz respeito ao mundo, por isso se dá no domínio da liberdade e não da necessidade.

Mas a elaboração da faculdade de sentir também interfere no domínio teórico da razão, quer dizer, em nossa inteligência argumentativa, filosófica e científica. Nossa capacidade estética é uma das três dimensões essenciais da razão pura, que, para exercer o seu domínio, como razão teórica, prática ou estética, precisa da integração destas três faculdades: sensibilidade, imaginação, entendimento [10]. A cultura deve, por isso, cuidar para que a razão se institua pelo desdobramento integrado dos diferentes domínios que a compõe, o que exige uma mobilização integral das potencialidades do humano. Um caráter pleno é aquele no qual a saúde da cabeça, do pensamento, e a pureza da vontade, do corpo, formam um todo [11].

Esta totalidade dos diferentes domínios do humano, que Schiller percebe fragmentados e isolados em seu tempo, no entanto, estava harmoniosamente integrada na cultura grega arcaica:

“Naqueles dias do belo acordar das forças espirituais, os sentidos e o espírito não tinham, com rigor, domínios separados. [...] Por mais alto que a razão subisse, arrastava sempre consigo, amorosa, a matéria, e por finas e nítidas que fossem as suas distinções, nada ela mutilava. Embora decompusesse a natureza humana para projetá-la, aumentada em suas partes, no maravilhoso círculo dos deuses, não o fazia rasgando-a em pedaços, mas sim compondo-a de maneiras diversas, já que em deus algum faltava a humanidade inteira. Quão outra é a situação entre nós mais novos. [...] Eternamente acorrentado a uma pequena partícula do todo, o homem só pode formar-se enquanto partícula.” [12]

***

[1] Crítico e teórico de teatro germano-brasileiro que escreveu a introdução de Cartas sobre a educação estética da humanidade, de Friedrich Schiller. O texto de Mosé é centrado nesta obra específica do filósofo alemão.

[2] Por isso todo livre-pensador, religioso ou não, irá defender que só é verdadeiramente livre quem exercita seu próprio pensamento.

[3] O contrato da vida em sociedade pede que respeitemos a liberdade dos outros e, consequentemente, por vezes limitemos a nossa. Mas é de bom grado que o sábio limita a própria liberdade, pois no fundo sabe que dessa “limitação”, virá liberdade ainda maior – o amor.

[4] Darwin a chamou de “a guerra da fome e da morte”. Obviamente no estágio humano nossa questão com a natureza não é mais exatamente a sobrevivência através da caça e coleta, mas a busca pela vivência em um mundo infestado por ideias em conflito.

[5] A ponte entre um território de morte e um território de vida – o amor. Como podem ver este remédio-pensamento tem mesmo inúmeras utilidades.

[6] E, se fosse infinito e imortal, não haveria necessidade de lutar contra a natureza, em todo caso. O homem, como aliás todo ser vivo tendendo a consciência, é um ciclo de existências frágeis e finitas, mas que se renovam e renovam, tendendo a uma consciência cada vez mais apurada. Sem a morte não haveria vida cíclica, nem evolução alguma.

[7] O Chefe Seattle já dizia que o homem não tece a teia da vida: é apenas um fio dela. O que fizer a teia, fará a si próprio. Nesse jogo cíclico de personalidades que vem e vão, sábio é aquele que mira na potencialidade, no particular conectado ao universal, assim como todos estamos, em última instância, conectados pelos átomos a formar o Cosmos detectável.

[8] Julgar os outros considerando não o que um indivíduo fez ao outro, mas o que um grande conjunto de seres fazem e são levados a fazer, em suas relações uns com os outros, e com a Natureza à volta – e, finalmente, guardar o julgamento apenas para si. Que melhor receita para a sabedoria?

[9] Agora vocês já sabem: o amor alimenta, o amor fortalece.

[10] Poderíamos substituir “entendimento” por “tolerância”, para nos adequarmos melhor à linguagem atual.

[11] Poderíamos usar apenas esta última frase isolada, e diriam se tratar de um texto místico oriental, e não filosófico ocidental. A grande diferença entre as abordagens, entretanto, fica restrita ao campo da linguagem – em essência, falam sobre uma mesma coisa.

[12] Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade, carta VI. Reparem como Schiller não tem pudores em usar a palavra “espírito”, enquanto Mosé parece fugir da menção a todo custo. É o “preconceito velado da palavra”, ou algo assim, muito comum nos dias fragmentados de hoje.

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Crédito da foto: Wikipedia (monuemnto em Weimar com estátuas de Goethe e Schiller, os grandes poetas alemães, lado a lado - eles eram bons amigos em vida)

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14.2.12

Humor: Islã vs. Cristianismo

Esse é um quadro do programa jornalístico e satírico Daily Show exibido pelo canal norte americano Comedy Central. Trata-se de uma visão bem humorada acerca dos estereótipos de religiosos islâmicos e cristãos que a cultura popular "vende por aí", e dos motivos de sua "guerra santa". Apesar de que, como a maioria já sabe, na realidade todas as guerras serem travadas por riquezas e territórios, e não exatamente por motivos puramente religiosos, e apesar de Alá e Jeová não esgotarem ou resumirem o conceito de Deus, não há motivos para deixarmos de dar algumas risadas aqui:


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Links Mayhem (41)

O Projeto Mayhem foi criado em Março de 2010 como centro de debates e discussões sobre temas Ocultistas e Herméticos. Agora, toda semana, os participantes do projeto divulgam os links mais interessantes para artigos nos blogs de outros participantes:

- Teoria da Conspiração - Demonstração de Chi-Kung na Índia
- O Alvorecer - Empresa chinesa se recusa a contratar funcionários escorpianos e virginianos
- Labirinto da Mente - O (Re)começo: perguntas especiais
- Artigo 19 - Homossexualidade na pós-modernidade
- Diário do Adeptu - O verdadeiro médium umbandista
- Textos para Reflexão - Educação secular (parte 1)
- Tudo sobre Magia e Ocultismo - Finalizando 2011
- Idéia Biruta - De onde vem os Ocultistas?
- Autoconhecimento e Liberdade - Teoria da Magia (Parte 2)

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Veja também os colunistas no Portal Teoria da Conspiração:

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