Evolução: até onde vai o acaso?
Texto de Chris Impey em "O universo vivo" (editora Larousse). Tradução de Henrique Monteiro. As notas ao final são minhas.
A recorrência de determinadas formas bem-sucedidas, juntamente com a efemeridade da maioria das espécies, levou a uma tensão entre duas idéias na teoria da evolução: a contingência e a convergência. O paleontólogo Stephen Jay Gould foi o defensor mais eloquente da idéia de que o acaso desempenhou papel decisivo na evolução [1]. Gould foi um personagem de grande importância e decisivo no campo da evolução – magistral como pesquisador e escritor popular, ainda que às vezes arrogante e refratário no seu modo de pensar.
Gould usava o Folhelho Bugess como seu exemplo central. O Folhelho Bugess é um modelo muito bem-preservado da profusão de formas de vida exóticas que apareceram nos oceanos da Terra pouco mais de 510 milhões de anos atrás. A maioria das linhagens não sobreviveu – Gould sustentava que não havia como prever quais desses organismos bem-adaptados subsistiria. Eventos caprichosos como impactos e meteoros tornaram a evolução altamente contingente. Segundo essa teoria, os micróbios podem ser comuns em planetas como a Terra ao longo do cosmos, mas os mamíferos e os répteis seriam improváveis, e os primatas e humanos com certeza muito raros.
Simon Conway Morris, um paleontólogo da Universidade de Cambridge, era um estudante de graduação quando tomou contato pela primeira vez com o achado valioso do Folhelho de Burgess. Sua interpretação dos mesmos fósseis [2] que Gould observara levou-o a uam conclusão muito diferente. Conway Morris não nega o papel desempenhado pela sorte, mas observa que as estratégias evolucionárias são limitadas pelas leis da física e não acontecem em um ambiente de possibilidades ilimitadas.
Peguemos como exemplo às asas e aos olhos. O vôo evoluiu separadamente entre insetos, mamíferos (o morcego) e répteis (notavelmente o pterossauro, um leviatã voador do Triássico). O desenho das asas é diferente em casa caso, mas a vantagem evolucionária de ganhar os céus é inegável. A visão foi descoberta, e às vezes reinventada, em criaturas tão diferentes quanto mamíferos, cefalópodes e insetos. Se você observar um polvo, o olho que verá é tão misterioso quanto o seu, mas ele tem uma ascendência completamente diferente. Todos esses são exemplos de convergência [3].
Conway Morris identificou um impressionante número de exemplos de convergência. Ele reconhece o elemento acaso da evolução, mas sustenta que a vida encontrou soluções semelhantes para o problema da sobrevivência inúmeras vezes seguidas. Por isso ele é otimista quanto à inevitabilidade de animais grandes e complexos e até mesmo da inteligência. Em sua pesquisa intitulada “Sintonizando as freqüências da vida”, ele escreve: “Onde quer que exista vida, haverá, no momento devido, uma mente. Se essa mente será sempre como a nossa é outra questão.”
O naturalista britânico D’Arcy Thompson chamou a atenção para a convergência cerca de um século atrás, mas alguns dos exemplos mais intrigantes ocorrem no nível molecular. Dois grupos de peixes sem nenhuma relação um com o outro usam o mesmo anticongelante natural para combater os efeitos da água fria. O truque é realizado por um proteína codificada por uma seqüência dos mesmos aminoácidos repetidos indefinidamente. No caso, o peixe Nototheniidae da Antártica surgiu de 7 a 15 milhões de anos atrás, ao passo que o bacalhau ártico apareceu do outro lado da Terra há 3 milhões de anos. Em outro exemplo, anticorpos idênticos foram encontrados em duas espécies altamente distintas, o cação-lixa e o camelo. Circuitos genéticos semelhantes foram localizados na bactéria E. coli e na levedura, mostrando que a convergência também ocorre em níveis superiores de organização molecular.
A convergência molecular endossa o fato de que a criação de elementos pesados nas estrelas proporciona uma base universal para a bioquímica, assim como o fato de que componentes básicos como aminoácidos são encontrados em uma vasta gama de ambientes cósmicos. Existe um número astronômico de proteínas possíveis, assim como de outras moléculas biologicamente úteis. Ainda assim, a vida escolheu um número modesto [4] – propagada ao nível de genes, essa especificidade contribui para limitar as funções e as formas das espécies.
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[1] O acaso é um nome fortuito que os cientistas encontraram para intitular "não fazemos idéia das causas reais". A idéia de acaso vai lentamente caindo por terra na medida em que as causas vão sendo identificadas e compreendidas, por exemplo, pela idéia de convergência (exposta logo a seguir no texto). Ainda que, conforme o próprio Impey admita um pouco anteriormente a este texto: "Na evolução, assim como na maioria dos outros ramos da ciência, não faz sentido perguntar por quê. Só faz sentido perguntar como". Ou seja: como cientista, você não pergunta porque um mecanismo que ainda não compreende inteiramente executa as suas funções de modo surpreendentemente coordenado. Primeiro procura entender como ele funciona. Os "porquês" ficam com a religião e a filosofia.
[2] Muitas vezes se pensa que na ciência não existem interpretações distintas para teorias bem fundamentadas, e obviamente não é o que ocorre. Na verdade um dos trunfos da ciência é a sua capacidade de abarcar interpretações distintas e por vezes opostas, sem que os cientistas se achem no direito de humilhar ou fazer pouco caso de seus opositores (bem, pelo menos os cientistas de verdade).
[3] Talvez a evolução da vida seja como uma corrida off-road: todos largam do mesmo ponto e seguem estradas distintas, mas para passar a outra fase da competição precisam encontrar o check-point; Até que em algum desses pontos de passagem surja, finalmente, uma mente. Nesse sentido, não é possível afirmar que a vida não siga algum plano. Muito embora daí a afirmar que este plano seja um design divino já requira alguma dose de crença.
[4] Quando um cientista como Impey usa o termo "a vida escolheu", é o caso típico de uso de linguagem metafórica. Será que todo cientista é um poeta? Ou será que as vezes a intuição acaba "burlando" a linha se segurança do ceticismo materialista? Talvez o Deus da ciência, a tal "vida que faz escolhas", seja o Deus do Acaso, um Deus desconhecido...
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Crédito da ilustração: Simon Conway Morris e Masanori Gukuhari (espécies exóticas do Folhelho Burgess).
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