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28.5.09

Pedras no caminho

"Crer para compreender e compreender para crer" - pode-se dizer que esse era mesmo o lema de Sto. Agostinho. Há muitos que irão discordar, dizer ser algo impossível, mas fato é que a fé racional, ou fé raciocinada, é não somente algo possível e plausível, como o grande objetivo de todo sábio - a harmonia do caminho entre aquilo que já compreendemos e aquilo que nos falta compreender, entre o que já sabemos e nos falta saber, entre nossa doce convicção e o amargo desconhecido.

Dirão os que discordam, enfurecidos em si próprios: "mas e qual homem conseguiu tal objetivo?" - Nenhum! Nenhum conseguiu e talvez nenhum consiga, pelo menos no estágio em que é conhecido por "homem". Mas da mesma forma a bactéria não se tornou peixe, e depois réptil, e depois mamífero, e depois homem, da noite para o dia. O caminho! É isso o que importa... Importa chegar para depois partir, e partir com o horizonte em nossa mente. Importa amar a possibilidade de caminhar sempre à frente, até o infinito, ao invés de resmungar e dizer "que todos os que pensam em tais mistérios são tolos". Ora, os maiores tolos são exatamente aqueles que creem que mistérios não existem, que são falsos de antemão. Como se o seu próprio pensamento fosse o mero agitar aleatório de partículas no cérebro, como se as leis naturais tenham permanecido simétricas e precisas por bilhões de anos apenas porque "é assim que as coisas são".

Entretanto, é preciso controlar a imaginação, e não permitir que gere por si mesma as imagens mentais, que explique o mundo sem interagir com o mundo. Não é somente meditando no topo da colina que o sábio se fez sábio, mas sim conhecendo a si próprio, a seus próprios pensamentos, para que ao lidar com o mundo não fosse contaminado pelo dogma alheio. O dogma é como um rio represado: enquanto não arrebentarmos a represa ele pode permanecer estático, satisfeito em sua própria ignorância, acomodado na mais falsa das suposições - a de que já descobriu todas as verdades do mundo... Ora, e o dogma existe tanto para o crente quanto para o descrente. A paralisia do pensamento não é exclusividade daqueles que creem sem raciocinar, pois há também aqueles que descreem sem raciocinar - e igualmente, ambos estão paralisados.

Mas o sábio atira a pedra e ela rompe as represas: não é o sábio quem muda o ignorante, mas o ignorante que muda a si próprio, entusiasmado pela doce leveza da sabedoria quando essa lhe aparece sem os diversos véus e as diversas máscaras em que as doutrinas dogmáticas lhe desfarçaram! E mesmo o próprio sábio percebe o perigo de cair nas viagens intermináveis da imaginação que gera a si mesma, alheia ao mundo; ou da negação a priori do pseudo-cético que, por medo do que lhe é desconhecido, prefere negar a tudo que lhe incomode as idéias. Por isso também o sábio segue a natureza: quando está aprendendo a nadar, permanece no raso da praia, e ainda não se arrisca no oceano profundo; e quando está aprendendo a voar, primeiro plana com a brisa, e somente depois arrisca vôos mais altos e cansativos.

Pois é assim que se constrói o conhecimento humano. Muito diferente do que os adeptos da negação defendem, não é somente a ciência que explica o mundo. De fato, a ciência antiga não era muito diferente da religião: que o digam Hermes, Sócrates, Pitágoras, ou mesmo o Pórtico de Atenas, a biblioteca de Alexandria ou a meca da ciência islâmica - Al-Andalus! Mas hoje tudo isso foi destruído pelos homens ignorantes que, seja no lado da crença ou do ceticismo, sempre pretenderam ser os únicos detentores da verdade. É porisso que uns queimaram mártires e papiros, e outros mais elegantes, se comprazeram em relegar ao ostracismo histórico todo dito cientista que se opunha a um materialismo dogmático. Mas não nos delonguemos na ignorância humana: fato é que a ciência nunca pretendeu explicar sozinha o mundo, nunca pretendeu sair do estudo do Mecanismo da natureza para o estudo de seu Sentido. Porisso mesmo temos ainda duas lentes que precisam ser usadas em conjunto para regular o grau de visão da natureza: ciência e religião. Uma descreverá o Mecanismo. A outra descreverá o Sentido.

Ou será que somos todos como pedras no caminho de um deus ausente, que se comporta como uma entidade que ignora a sua própria criação, e mesmo sem querer chuta-nos enquanto se move de um lado para o outro, em algum lugar, sabe-se lá pensando no que! Então a terra surgiu por aglomeração de pedras-partículas, e a vida surgiu na terra porque uma pedra-asteróide aqui adentrou... E toda a evolução da vida foi decorrente de um descuido aleatório do grande deus ausente, o chutador de pedras.

Mas o que é o aleatório? Onde na natureza esse mecanismo se encontra? Onde, dentre simetrias espaciais e temporais, dentre mecanismos sutis e elegantes, encontra-se uma única pedra que se moveu sem ter tido causa? E se teve causa, ela não poderia ser aleatória... Ou seria absolutamente tudo aleatório, mesmo nossos pensamentos e vontade? Se assim for, de nada adianta nos delongarmos nessa ou em qualquer outra discussão. Mas, se as leis, as delicadas geometrias da natureza, seguirem alguma verdade misteriosa que se encontra atrás do próximo horizonte, então é para lá que o sábio deve seguir!

Nossos ancestrais descobriram a muito custo que certas pedras, ao se chocarem, apenas tiravam lascas umas das outras. Mas havia outras que produziam faíscas! E assim se fez o fogo... Nós somos as pedras, e o que está em cima é como o que está embaixo: não percamos nosso tempo em tirar lascas um dos outros, em denegrir um a "verdade" do outro. Mas construamos juntos uma mesma fogueira divina, e talvez flutuando em sua fumaça possamos um dia ser levados pelas brisas, atravéz do oceano, ao reino da verdade e do conhecimento de todos os belos mecanismos da natureza. Levantai uma pedra, e lá estará o reino de Deus.

***

Crédito da foto: Shadi Samawi

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27.5.09

Visão

Uma noite, meu Deus, que noite aquela!
Por entre as galas, no fervor da dança,
Vi passar, qual num sonho vaporoso,
O rosto virginal duma criança.

Sorri-me - era o sonho de minh'alma
Esse riso infantil que o lábio tinha:
- Talvez que essa alma dos amores puros
Pudesse um dia conversar co'a minha!

Eu olhei, ela olhou... doce mistério!
Minh'alma despertou-se à luz da vida,
E as vozes duma lira e dum piano
Juntas se uniram na canção querida.

Depois eu indolente descuidei-me
Da planta nova dos gentis amores,
E a criança, correndo pela vida,
Foi colher nos jardins mais lindas flores.

Não voltou; - talvez ela adormecesse
Junto à fonte, deitada na verdura,
E - sonhando - a criança se recorde
Do moço que ela viu e que a procura!

Corri pelas campinas noite e dia
Atrás do berço d'ouro dessa fada;
Rasguei-me nos espinhos do caminho...
Cansei-me a procurar e não vi nada!

Agora como um louco eu fito as turbas
Sempre a ver se descubro a face linda...
- Os outros a sorrir passam cantando,
Só eu a suspirar procuro ainda!...

Onde foste, visão dos meus amores!
Minh'alma sem te ver louca suspira!
- Nunca mais unirás, sombra encantada,
O som do teu piano à voz da lira?!...

Casemiro de Abreu - 1858

***

Ao poeta Casemiro de Abreu

A você que se foi jovem, que viveu sempre jovem, e que amou como quem vislumbra ao mundo pela primeira encarnação, digo-te o que decerto já sabes: nesse imenso oceano de vida, não há espaço para se lamentar; Ah que se abrir os olhos, ver o mar, correr para o mar e o sentir... Sua mãe era quem tinha razão!

***

Crédito da foto: Ju!

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26.5.09

O ceticismo do cientista

Texto de Marcelo Gleiser, físico e divulgador de ciência, autor de "A dança do universo" - publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Volta e meia, leitores me questionam sobre o que lhes parece ser o exagerado – ou pouco razoável – ceticismo do cientista.

As abordagens variam. Algumas vezes, acham inconsistente um cientista se dizer ateu quando não pode responder a certas questões básicas, como, por exemplo, a origem do Universo ou da vida. Dizem eles: “Vocês falam do Big Bang, o evento que iniciou tudo. Mas de onde veio a energia que provocou esse evento? Como falar de algo material surgindo do nada, sem a ação de um ser imaterial, isto é, divino?” Outras críticas dizem respeito à descrença em fenômenos paranormais, sobrenaturais, OVNIs e seres extraterrestres, espiritismo etc.

Segundo estatísticas recentes feitas pela Fundação Gallup nos Estados Unidos, em torno de 50% dos americanos acreditam em percepção extra-sensorial. Mais de 40% acreditam em possessões demoníacas e casas mal-assombradas, e em torno de 30% crêem em clarividência, fantasmas e astrologia. Não conheço estatísticas semelhantes para o Brasil, mas imagino que os números devam ser no mínimo comparáveis.

Sem a menor dúvida, a luta do cético é ingrata; ele estará sempre em minoria. Existem muito mais colunas sobre astrologia do que sobre astronomia ou ciência nos jornais e revistas do Brasil e do mundo. Mas, sem ceticismo, a sociedade estaria fadada a ser controlada por indivíduos oportunistas que se alimentam dessa necessidade muito humana de acreditar.

Ela existe para todos não há dúvidas. Mesmo o cético deve acreditar no poder da razão para desvendar os muitos mistérios que existem. A paixão que o alimenta é a mesma do crente, mas direcionada em sentido oposto.

Devido a esse ceticismo, muitas vezes os cientistas (incluindo este que lhes escreve) são acusados de insensibilidade. De jeito nenhum. Eu tenho grande respeito pelos que acreditam. O que me é difícil aceitar é a exploração que existe em torno dessa necessidade, a exploração da fé.

Na Índia, por exemplo, recentemente apareceram milhares de “homens-deuses”, que se dizem meio deuses, meio gente. No México, funcionários do governo freqüentam seminários sobre como usar o poder dos anjos. O Peru está cheio de psíquicos, enquanto na França são aromaterapeutas. Testes em laboratório visando verificar poderes extra-sensoriais invariavelmente falham.

O famoso paranormal israelense Uri Geller, que dobrou garfos na frente de milhões nos anos 70, foi desmascarado como fraudulento. O meu orientador de doutorado na Inglaterra, impressionado com Geller e outros médiuns, montou um laboratório para testar seus poderes. Ele o fez com ótimas intenções, para explorar a origem desses poderes de modo a divulgá-las para o resto da humanidade. Mas falharam todos.

Voltando à questão do Big Bang. A religião não deve existir para tapar os buracos da nossa ignorância. Isso a desmoraliza. É verdade, não podemos ainda explicar de forma satisfatória a origem do Universo. Existem inúmeras hipóteses, mas nenhuma muito convincente.

Mesmo se tivéssemos uma explicação científica, sobraria uma outra questão: o que determinou o conjunto das leis físicas que regem este Universo? Por que não um outro? Existe aqui uma confusão sobre qual é a missão da ciência. Ela não se propõe a responder a todas as questões que afligem o ser humano.

A ciência, ou melhor, a descrição científica da natureza, é uma linguagem criada pelos homens (e mulheres) para interpretar o cosmo em que vivemos. Ela não é absoluta, mas está sempre em transição, gradativamente aprimorada pela validação empírica obtida através de observações. A ciência é um processo de descoberta, cuja língua é universal e, ao menos em princípio, profundamente democrática: qualquer pessoa, com qualquer crença religiosa ou afiliação política, de diferentes classes sociais e culturas pode participar desse debate. (Claro, na prática a situação é mais complexa.)

Ela não terá jamais todas as respostas, pois nem sabemos todas as perguntas. O cético prefere viver com a dúvida do que aceitar respostas que não podem ser comprovadas, que são aceitas apenas pela fé. Para ele, o não-saber não gera insegurança, mas sim mais apetite pelo saber. Essa talvez seja a lição mais importante da ciência, nos ensinar a viver com a dúvida, a idolatrá-la. Pois, sem ela, o conhecimento não avança.

Fonte: ateus.net (mas vale lembrar: nem todo cético é ateu, o ceticismo é uma ferramenta do pensar e não uma ideologia)

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21.5.09

Lembrando de nós mesmos

Texto de Jean-joël Duhot no "Sócrates ou o despertar da consciência" (Edições Loyola)

Os professores afirmam ser capazes de ensinar tudo, e assim de fabricar o homem completo. Sócrates nada ensina, não forma nem transforma ninguém. E contudo pode-se sair transformado de sua frequentação, e só ele é o mestre verdadeiro. Os outros vendem fórmulas que não passam de simulacros de realidade, evoluem no não-ser. Sócrates é o catalisador pelo qual vai poder revelar-se a marca divina escondida em nós. Não há meio de fazer tornar alguém um outro, se já não o for em si mesmo, de sorte que há alunos para os quais reconhece que nada pode fazer.

Daonde vem essa marca divina da qual Sócrates é o revelador? Encontramos as imagens da visão, da caverna, do vôo da alma, mas como essa busca é interior seu objeto está em nós mesmos. Longe de ser esquecimento de si, o êxtase socrático é sua descoberta. O divino não é uma figura da alteridade, mas da identidade. A busca obedece uma intimação: "Conhece-te a ti mesmo", que, é claro, nada tem a ver com a psicologia, seja geral ou individual. Conhecer-se, para Sócrates, é buscar o que se é realmente.

Somos nosso corpo? Mas como nesse caso teríamos uma identidade, já que ele muda constantemente? A idéia mesma de um Si exclui que a essência do ser humano resida na matéria que o compõe. Além disso, como um ser vivo poderia definir-se por algo não-vivo? Somos antes de tudo seres vivos, de modo que é pela vida que é preciso definir-nos. Ora, a vida diz-se psychè, o que faz que não seja outra coisa que a alma. A essência do vivente está por conseguinte em sua alma. E inversamente, como mostra o Fédon, a identidade da alma e da vida permite estabelecer a imortalidade da alma: a vida não pode morrer porque então não seria mais ela mesma. Essa incompatibilidade da vida e da morte vale também para a alma pelo fato de que não é outra coisa que a vida, como indica sua identidade nominal.

Sócrates é pois um revelador graças ao qual o discípulo vai empreender descobrir-se, isto é, ter acesso ao conhecimento de sua alma, que conserva ocultas dentro dela algumas lembranças do divino. É aqui que se articula a reminiscência: a alma, a psychè, já habitou no além, mas voltando para a terra tudo esqueceu [1]. O conhecimento verdadeiro consiste por conseguinte na tentativa de reencontrar essas lembranças perdidas. O problema teórico é de fato muito simples. Trata-se de encontrar uma resposta à questão de saber como a alma pode ter acesso ao divino - apesar de sua imortalidade - que conteria em si mesmo, por natureza, o saber divino; é que ela já o encontrou. Conhecer-se a si mesma consiste assim em reencontrar fragmentos de visões perdidas por ocasião da encarnação [2].

A reminiscência permite dar conta dos eixos essenciais que já destacamos. Explica que a alma possa ter acesso a uma visão do divino, e que o faça ao interrogar-se sobre si mesma. Nisso o método socrático é extremamente paradoxal. Essa método, a dialética ascensional, utiliza, por definição, a palavra, mas o que se trata de atingir é um saber indizível; e essa busca no mais profundo de si requer a presença ativa de um outro, que no entanto nada transmite. A palavra é o instrumento da descoberta do indizível, o outro é necessário para a descoberta de si, e o divino encontra-se no questionamento sobre esse Si. Não é no silêncio nem na solidão que se empreende a subida para o divino, que é de fato uma descida para dentro de Si, que não pode ser feita sem um outro [3].

***

[1] Porisso diz-se, com razão, que a teoria da reencarnação é muito mais antiga do que a da ressurreição, e talvez tenha surgido em um mesmo momento que a crença na vida após a morte. Ao associar a vida ao oposto da morte, Sócrates demonstra com lógica implacável que o que é vivo não pode morrer, e certamente já estava vivo antes de nascer. Por alguma razão o cristianismo primitivo deixou definitivamente para trás a crença na reencarnação à partir do século IV (aproximadamente), apesar de dever uma forte influência a fiolosofia socrática e estóica, talvez por influência do mesmo materialismo que sempre esteve presente no judaismo.

[2] Aqui também temos claramente o conceito de que a alma vive em algum lugar entre suas encarnações, tanto que adquire memórias que podem ser acessadas durante a encarnação atual. Dessa forma já temos pelo menos desde Sócrates (25 séculos atrás) a definição de que a reencarnação não é um ato instantâneo, como querem acreditar certos céticos que creditam toda teoria reencarnacionista antiga a uma associação direta com a mentempsicose.

[3] Assim como um olho não pode "ver a si mesmo", a alma também, se quer conhecer a si mesma, deve olhar uma outra alma, e nessa alma, a parte onde reside a excelência própria da alma. É observando o mundo e os seres que encontraremos os parâmetros para nosso próprio conhecimento (sophia) interno.

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Crédito da foto: Wikipedia ("A morte de Sócrates", Jacques-Louis David)

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Dawkins moderado

Nos últimos anos temos visto opiniões consideravelmente radicais de Richard Dawkins, célebre autor de "O Gene Egoísta" (sim, ele é um excelente biólogo) - Como afirmar que o Agnosticismo e até mesmo o Panteísmo "são praticamente o mesmo" que o Ateísmo; Ou "militar" pelo Ateísmo quase como se ele fosse em si uma religião, ou necessariamente trouxesse a "salvação racional" aos seus adeptos... etc.

Mas o video abaixo demonstra como todo homem com relativa sabedoria deve ser considerado em suas idéias. De certa forma, trata-se de uma lição altamente religiosa, até mesmo porque é também uma lição moral incontestável:

Parte final da entrevista de Dawkins com William Crawley.

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16.5.09

Pensamento

Então aqui estou novamente.
Erguido do pó, ao pó voltarei;
Não há nada que se perca
Nesse turbilhão de poeira estelar.
Mesmo ainda que muito brevemente,
Podemos sentir o infinito
A bailar com os fótons pelo ar.

E do pó se fazem sóis
E astros a rodopiar pelo cosmos:
O que está acima também está abaixo.
Pois tudo que somos é o pensamento
Que constrói nossa capacidade de ser
Algo mais que poeira a cair do firmamento.

Então aqui estou novamente.
Isso é tudo que eu sei.
Não sei de algum plano divino,
Não sei equacionar a geometria da natureza,
Nem o que diabos iniciou seu movimento.
Sei apenas que nesse momento
Tenho a vontade e tenho o tempo
Para buscar lá dentro, com ardor,
O que quer que seja o amor.

O que quer que seja a vida.
O que quer que seja toda essa leveza
Incerta, que sopra como o vento,
E não sabemos por onde passou;
Pois quase não a percebemos:
Apenas o pensamento vê o mundo
Em toda sua beleza.

raph’09

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Crédito da foto: Mr. Bond

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15.5.09

Sócrates nas Nuvens

Texto de Jean-joël Duhot no "Sócrates ou o despertar da consciência" (Edições Loyola)

Vejamos como se faz o encontro de Estrepsíades com o mestre (Sócrates como caricatura [1] em As nuvens de Aristófanes, o texto mais antigo a seu respeito). Um discípulo introduziu no "pensadeiro" (novamente, caricatura de uma "escola" socrática [2], na peça de Aristófanes) um novo aluno: Sócrates está no ar, num barquinho suspenso:

Ando nos ares e olho o sol. Nunca, com efeito, teria deslindado exatamente as coisas celestes se não tivesse elevado meu espírito e confundido meu pensamento sutil com o ar semelhante. Se tivesse ficado na terra para observar de baixo as regiões superiores, nunca teria descoberto nada; não, porque a terra forçosamente atrai para ela a seiva do pensamento. É exatamente o que acontece com o agrião. [As nuvens, 225-243]

Por trás da paródia, pode-se compreender, parece que Sócrates se arranca da terra e pratica uma ascensão do espírito que lhe permite o acesso às realidades superiores. Esse acesso supõe uma iniciação comparada à dos Mistérios [As nuvens, 258, 303] [3]. E, depois de ter ouvido as Nuvens, a alma de Estrepsíades [As nuvens, 319] começa a alçar seu vôo. Contudo, o conhecimento supõe aptidões, trabalho e uma verdadeira ascese: precisa-se de memória, de concentração e de resistência, de saber aguentar de pé as caminhadas, o frio e a fome [As nuvens, 412-416]. Quando chega o momento da iniciação, Estrepsíades, trêmulo, evoca a consulta do oráculo de Trofônios [As nuvens, 50]. Depois de uma lição de mestre de escola, em que Estrepsíades exibe claramente seus limites intelectuais, Sócrates o convida a passar para uma sessão de meditação, alongando-se sobre um catre, coberto de percevejos para a circunstância. O coro traz ao novo discípulo alguns conselhos:

Medita agora e examina a fundo, gira teu pensamento em todas as direções, recolhido sobre ti mesmo. Depressa, se cais em um impasse, salta para outra idéia de teu espírito; e que o sono doce ao coração esteja ausente de teus olhos. [As nuvens, 700-705]

Conselhos que parecem bastante técnicos, notadamente sobre o risco de pegar no sono, ao qual Sócrates está atento um pouco mais adiante [As nuvens, 732], quando vem perguntar a Estrepsíades sobre o resultado de sua meditação. A isso acrescenta uma indicação sugestiva: é preciso relaxar o espírito para que ele alce o vôo [As nuvens, 762].

A encenação e o conteúdo de paródia dos diálogos não devem iludir-nos: eliminando tudo que tem a ver com a intenção cômica, parecem desenhar-se certas características. Sócrates concebe o ensinamento como uma iniciação aos Mistérios, o conhecimento adquire-se no termo de um trabalho e de uma verdadeira ascese, que necessitam e qualidades naturais: além disso, é necessário praticar a meditação. Tudo isso permite destacar-se da terra, o que abre o caminho para o conhecimento.

Assim, abstraindo do tom e do conteúdo da paródia, Aristófanes confirma amplamente os aspectos de Sócrates que Platão evocava com a metáfora do xamanismo (em Cármides). A iniciação dos Mistérios resultava em uma visão, a epoptia, que aparece frequentemente no Sócrates de Platão, de modo que também nesse ponto Aristófanes traz uma preciosa caução ao testemunho de Platão.

Parece, pois, que o êxtase esteja no coração do pensamento de Sócrates. É nesse vôo da alma que ele pode contemplar a realidade, libertado da terra, e tenta, por uma combinação de disciplina intelectual, de ascese e de meditação, provocá-la em seus discípulos [4].

***

[1] O autor, Duhot, postula exatamente que a caricatura não é completa, e que por detrás dela se revela o Sócrates "iniciado" que Platão procurou ocultar.

[2] Mais adiante o autor postula sobre a possibilidade de ter existido, e conclui que era apenas uma alusão a escola pitagórica, além de um lugar ficctício necessário ao roteiro da peça em si.

[3] Trata-se dos Mistérios de Elêusis: os sacerdotes de Elêusis ensinaram sempre a grande doutrina esotérica que lhes veio do Egito. Esses sacerdotes, porém, no decorrer do tempo, revestiram essa doutrina com o encanto de uma mitologia plástica, repleta de beleza.

[4] Dirigindo-se a Sócrates, o Alcibíades de O Banquete compara-o ao sátiro Mársias:

Mas, tu dirás, não és tocador de aulos (instrumento musical parecido com oboé). Sim, e bem mais extraordinário do que Mársias. Ele de fato servia-se de um instrumento para encantar os seres humanos com a ajuda do poder de seu sopro, e é o que se faz hoje em dia quando se tocam suas músicas no aulos. E as músicas de Mársias, se interpretadas por um bom tocador de aulos, são as únicas capazes de nos pôr em um estado de possessão, e porque são músicas divinas, capazes de fazer ver quais são os que têm necessidade dos deuses e de iniciações. Mas tu te distingues de Mársias em um só ponto: Não tens necessidade de instrumentos, e é proferindo simples palavras que produzes o mesmo efeito (...) Cada vez que a ti se ouve, ou se escuta uma pessoa que está transmitindo tuas falas (...) ficamos perturbados e possessos. (...) Quando lhe escuto meu coração bate muito mais forte do que o de Coribantes e suas palavras me tiram lágrimas. [O Banquete, 215 b-e]

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Crédito da foto: Wikipedia (tríade eleusiana)

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13.5.09

Alguém constrói a Deus na penumbra

Falando de Espinosa, encontrei (e traduzi) este lindo poema em sua homenagem, do grandioso mestre das palavras - Jorge Luis Borges:

Benedito Espinosa

Bruma de Ouro, o Ocidente ilumina
A janela. O assíduo manuscrito
Aguarda, já carregado de infinito.
Alguém constrói a Deus na penumbra.
Um homem engendra a Deus. É um judeu
De olhos tristes e pele pálida;
O tempo o leva como leva o rio
Uma folha que desce pelas águas.
Não importa. O feiticeiro insiste em esculpir
A Deus com geometria delicada;
De sua enfermidade, de seu nada,
Segue erigindo a Deus com a palavra.
O amor mais pródigo lhe foi outorgado,
O amor que não espera ser amado.

Jorge Luis Borges (tradução de Rafael Arrais)


Baruch Spinoza

Bruma de Oro, el Occidente alumbra
La ventana. El asiduo manuscrito
Aguarda, ya cargado de infinito.
Alguien construye a Dios em la penumbra.
Um homem engendra a Dios. Es un judio
De tristes ojos y de piel cetrina;
Lo lleva el tiempo como lleva el rio
Una hoja en el agua que declina.
No importa. El hechichero insiste y labra
A Dios con geometria delicada;
Desde su enfermedad, desde su nada,
Sigue erigiendo a Dios com la palabra.
El más pródigo amor le fue ortogado,
El amor que no espera ser amado.

Jorge Luis Borges

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Crédito da foto: roel1943

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O dilema de Espinosa

O homem que duvidava de tudo, apóstolo da razão, excomungado pelo Judaísmo... Ainda assim, não pode negar a Deus. "Deus é a Natureza e a Natureza é Deus, uma substância não pode ser produzida por outra substância" - bem-vindos ao Panteísmo.

Abaixo temos a parte 3 de 6 do documentário entitulado "Espinosa - O Apóstolo da Razão". O início é particularmente interessante pois traz uma alegoria do dilema de Espinosa com sua própria racionalidade:

Leitura recomendada: Ética de Espinosa, ed. Autêntica (não é fácil achar esse livro em mega-stores, melhor comprar pela própria editora mesmo)

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Atenas, Esparta e o humanismo

Texto de Jean-joël Duhot no "Sócrates ou o despertar da consciência" (Edições Loyola)

Ao contrário de Atenas, Esparta não concebeu o projeto de construir um vasto império [1]. As molas da potência militar das duas cidades são diferentes. Atenas tem necessidade de dinheiro para construir frotas e pagar os marinheiros, os pobres apreciam esse soldo e os benefícios da guerra, e esse dinheiro exige o imperialismo que é a sua fonte. O dinheiro e o material encontram-se no coração desse encadeamento. Diante disso, Esparta conta essencialmente com os homens: forma guerreiros e apóia-se em seu valor. O dinheiro de um lado, e do outro o valor do homem. O Sócrates do Górgias critica assim o que está no centro do sistema, o Pireu e os Longos Muros que o ligam à cidade, conjunto que abre a cidade sobre o mar e seu império, ao mesmo tempo que a fecha para o acesso terrestre: não é sobre as fortificações materiais que deve repousar a potência verdadeira, mas sobre o homem. Além disso, enquanto a riqueza de Atenas é fundada também sobre o comércio marítimo, por sua vez possibilitado pelo domínio do mar e das costas, Esparta ignora a moeda, recusa o luxo e o comércio inútil e vive em autarquia.

Paradoxo no limite do inacreditável: é graças a uma reflexão sobre Esparta que se afirma a preeminência do homem. O modelo espartano ensina que os valores materiais são engodos, e que o ínico valor verdadeiro está no homem. A cidade é uma verdadeira escola, que se encarrega da criança muito cedo. O paradoxo está em que para os espartanos o homem é essencialmente o guerreiro, enquanto para Platão e, sem dúvida, para Sócrates o modelo espartano é transposto: a república ideal está centrada na formação do homem, concebido não mais como guerreiro, mas como filósofo (veremos aliás que Sócrates soube ser ambos) [2]. Essa cidade, que nos repugna por seu desprezo pelo homem, máquina desumanizante que choca nosso princípios, ocupa assim um lugar insuspeitável nas fontes do humanismo.

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[1] Mais adiante o autor irá afirmar que "Democracia, imperialismo e riqueza estão estritamente ligados em Atenas" - vale lembrar que a democracia ateniense é muito distinta da democracia atual; Ainda citando o autor: "É preciso dar-se conta que o sistema é tão perigoso que nenhuma democracia moderna se inspira nele: não são os cidadãos que tomam as decisões políticas, mas seus eleitos, que podem estudar os dossiês de maneira aprofundada. Transposta para época moderna, a democracia ateniense seria um governo por sondagens de opinião aquecida por uma imprensa arrebatada".

[2] Apesar de Sócrates ter sido militar, tenho sérias dúvidas acerca das ideologias políticas expostas em A Repúlica serem de fato originárias do próprio Sócrates, e não de Platão. Não me parece que Sócrates tinha qualquer vocação ou compromisso para com a política em si, tanto que usualmente demonstra até certo desprezo pelos políticos de sua época.

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Crédito da foto: Wikipedia (hoplita)

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12.5.09

Racismo é ignorância

O Projeto Genoma Humano comprovou o que quase todos os estudiosos já sabiam: só existe na Terra uma única espécie humana, chamada homo sapiens. O que chamávamos de "raça" se resume a cor da pele.

Em comparação com a pele de outros primatas, a pele humana possui menor pelagem. A cor do pêlo e da pele é determinada pela presença de pigmentos, chamados melaninas. A maioria dos autores acredita que o escurecimento da pele foi uma adaptação que evoluiu como uma defesa contra a radiação solar ultravioleta (UV); a melanina é uma substância eficaz contra esta radiação. A cor da pele, em humanos atuais, pode variar desde o castanho escuro até ao rosa pálido. A distribuição geográfica da cor da pele correlaciona com os níveis ambientais de raios UV. A cor do pêlo e da pele humana é controlada, em parte, pelo gene MC1R. Por exemplo, o cabelo ruivo e pele pálida de alguns europeus é o resultado de mutações no gene MC1R. A pele humana tem a capacidade de escurecer (bronzeamento) em resposta à exposição a raios UV. A variação na capacidade de bronzeamento também é parcialmente controlado pelo gene MC1R. (parágrafo retirado da Wikipedia)

Portanto, se nossas crianças continuarem sendo educadas na ignorância, não poderemos reclamar dos resultados desse tipo de teste:

Me parece que as pessoas muitas vezes, ao demonstrar certo racismo, não se importam de serem alertadas para o fato: levam na brincadeira. Tudo bem que a maioria felizmente não chega aos exageros de nosso passado sombrio, mas enquanto levarem "na brincadeira", a ignorância se perpetuará... Talvez seja melhor não chama-las mais de racistas, mas de IGNORANTES. Assim talvez prestem maior atenção a própria ignorância, e procurem melhorar.

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11.5.09

2001: Kubrick e o monolito

Em 1968 o filme do diretor Stanley Kubrick - "2001: Uma Odisséia no Espaço" - revolucionou o gênero de ficção científica no cinema. A fita custou 12 milhões de dólares e foi rodada na Inglaterra a partir do primeiro “script” de Kubrick e Arthur C. Clarke. O ponto de partida do filme foi o conto “The Sentinel”, de Clarke, que mais tarde passou a ocupar apenas trecho da história (a viagem a Júpiter e o combate de Hal com os astronautas). Na produção trabalharam 106 técnicos, inclusive da NASA, IBM e General Electric.

Muito se especulou na época acerca do significado do estranho monolito que aparece diversas vezes no filme:

Veja o que Kurbick tem a dizer sobre o significado do filme:

“Tentei criar um experiência visual que ultrapassasse a comunicação verbal e penetrasse diretamente no subconsciente , com um conteúdo emocional e filosófico. Quis que o filme fosse uma experiência intensamente objetiva que atingisse o espectador, a um nível profundo de sensibilidade como faz a música”. Disse ainda: “O conceito de Deus está no centro de 2001 – mas não qualquer imagem antropomórfica de Deus. Não creio em nenhuma religião monoteísta da Terra mas acredito que se pode construir uma definição científica de Deus.”

“Quando pensamos nos gigantescos avanços tecnológicos que o homem efetuou em poucos milênios – menos de um microssegundo na cronologia do Universo – não podemos imaginar a evolução que essas formas de vida muito mais antigas alcançaram. Elas podem ter progredido de espécies biológicas que são frágeis conchas para a inteligência, a imortais entidades e então, após inúmeras eras, podem ter emergido da crisálida de matéria, transformadas em seres de pura energia e espírito. Suas potencialidades seriam ilimitadas e sua inteligência inatingível pelos humanos. Tudo isso tem relação com o conceito de Deus em 2001. Porque esses seres hão de ser deuses para bilhões de raças menos avançadas no universo”.

“Há uma considerável diferença de opinião entre cientistas e filósofos. Alguns sustentam que o encontro com uma civilização altamente adiantada produziria um choque cultural traumático no homem, por arrancá-lo de seu etnocentrismo e destruir a ilusão de que ele é o centro do Universo. No sentido mais profundo, creio na potencialidade do homem e na sua capacidade de progresso. Não sou de forma alguma hostil às máquinas. Não há dúvida, porém, que estamos entrando numa “mecanarquia”.” Olhando o futuro distante suponho não ser inconcebível uma subcultura de robôs-computadores capaz de resolver um dia, que podem prescindir do homem.

“Confirmando a idéia de ‘experiência visual’ de 2001, o filme tem 139 minutos e menos do que 40 minutos de diálogos. Parafraseando Mac Luhan, Kubrick quis que ‘a mensagem fosse o veículo’ (The message is the medium). Assim ninguém explica uma sinfonia de Beethoven. Isso criaria uma barreira artificial entre a concepção e a criação.” Continua Kubrick: “Vocês são livres para especular sobre o significado filosófico e cultural do filme. Não quero estabelecer um mapa verbal que todos sejam obrigados a seguir. A intenção é provocar no espectador uma reação que precisa – e não deve – ser explicada.”

FONTE: Rubens Ewald Filho e entrevista de Kubrick à "Playboy".

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10 razões para ser cristão

Os debates acerca do cristianismo geralmente são um tanto inúteis, pois se resumem a ataques contundentes baseados nos equívocos da igreja, e defesas ardorosas fundamentadas no apego da fé de cada cristão. Em um dos debates no orkut (na comunidade Fé e Razão), um amigo iniciou um tópico chamado "10 motivos para ser cristão?"... Antes que o debate "pegasse fogo", respondi com o que compreendo como as "10 razões para ser cristão", inteiramente baseadas em minhas interpretações do Novo Testamento e de alguns "apócrifos", como o Evangelho de Tomé.

Razão
Observe que preferi usar o termo "razão" ao invés de "motivo" [1]. Acostumamos a interpretar esse termo como uma analogia a racionalidade e inteligência do ser humano, porém em sua origem, no logos grego, ele significava algo a mais (retirado da Wikipedia): "significava inicialmente a palavra escrita ou falada - o Verbo. Mas a partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e da Beleza". Essa interpretação do logos como "uma razão conectada ao Cosmos" atinge seu ápice na filosofia estóica, que infelizmente foi apropriada e deturpada pela igreja cristã.

Falando em igreja, é preciso novamente analisar a origem das palavras, e dissociar os termos "igreja" e "religião":

Igreja
Do gregro ekklesia, foi a palavra escolhida pelos autores da Septuaginta (a tradução grega da Bíblia Hebraica) para traduzir o termo hebraico q(e)hal Yahveh, usado entre os judeus para designar a assembleia geral do "povo do deserto", reunida ao apelo de Moisés. Pode-se também interpretá-la de forma genérica como "a comunidade dos escolhidos por Deus". Esse termo pode ter outras interpretações parecidas, mas dificilmente alguma delas irá abarcar todos os povos da Terra. A igreja é essencialmente a igreja de alguns, e não de todos (no sentido em que não se aplica a todos, mas apenas a quem se converte a ela e aceita seus preceitos e dogmas).

Religião
Do latim re-ligare, significa literalmente "religação", mas é comumente interepretada como "religação aos deuses ou ao Cosmos". Também é associada ao termo em latim religio, usado na Vulgata, que pode ser interpretado como "reverência ao Deus dos deuses", embora aqui o termo já esteja intimamente ligado a uma crença específica. Obviamente o termo original pode ter inúmeras interpretações; Nem todas serão tão parecidas, mas certamente nenhuma delas pretenderá estabelecer o religare como uma crença em específico: aqui todos podem participar do mesmo religare, cada um a sua maneira e sem o intermédio de hierarquias eclesiásticas. Seria então um caminho espiritual, por assim dizer.

Se analisarmos, por exemplo, o Evangelho de Tomé, encontraremos lá um Cristo Sábio, não necessariamente crucificado, não necessdariamente avatar divino, não necessariamente fundador de uma igreja e não necessariamente salvador da humanidade. É principalmente através desse tipo de análise religiosa, e não eclesiástica (ou baseada em alguma teologia dogmática), que cheguei as dez razões:

1- Amar a si mesmo, sem egolatria, mas compreendendo sua própria fagulha divina (logos).

2- Amar ao próximo como ama a si mesmo.

3- Amar a toda a Criação acima de todas as coisas, pois que somos apenas parte dela (amar ao Cosmos ou a Deus).

4- Compreender que nada ocorre ao acaso e que tudo é dado a cada um segundo suas próprias obras.

5- Compreender que na Criação existem muitas moradas e que percebemos apenas uma pequeníssima parte delas.

6- Compreender que somos deuses em formação e que tudo que Cristo fez, faremos também, e muito mais.

7- Compreender que ainda sabemos muito pouco mesmo das coisas terrenas, e quase nada das coisas celestes, e que porisso mesmo a mensagem do Cristo ainda esteve longe de ser completa há 2 mil anos.

8- Compreender que o Consolador prometido pelo Cristo é a Verdade derramada por todas as criaturas da Terra, sem necessidade de um profeta em especial.

9- Compreender que essa vida é apenas parte de um Vida Maior, a qual o Cristo não poderia explicar há 2 mil anos, mas que talvez hoje possamos compreender melhor através da Verdade do Consolador.

10- Seguir o caminho do Cristo, o caminho do meio, de religação a Deus, e nos tornarmos, como ele, unificados com Deus.


Para aqueles que creem em um Livro Infalível, tais conclusões podem ser absurdas. Da mesma forma, para aqueles que apenas se preocupam em atacar as contradições da fé alheia, sem se preocupar em reconhecer seus méritos, toda religião será veneno por antemão, e tais conclusões nada significarão.

Mas felizmente ainda existem os moderados. Aqueles que não creem em dogmas, e que não precisam atacar a crença ou descrença alheia como forma de reafirmação da sua própria crença ou descrença... Esses talvez reconheçam nessas dez razões um "lampejo" do que o cristianismo poderia ter sido, se não fosse apropriado pelo Reino do Padre. Ora, na verdade ainda há tempo para fazer o real cristianismo reflorecer na Terra, dependerá apenas de nós, de todos nós, pois que só entraremos no Reino de Deus de mãos dadas.

***

[1] Na verdade o logos é pessoal (único), no contexto da frase "10 motivos para ser cristão" não faz muito sentido a analogia. Porém achei importante mencionar o significado de logos como parte da fundamentação lógica deste tópico.

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Crédito da imagem: Wikipedia ("símbolo do peixe", recorrente no início de iconografia cristã)

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8.5.09

Tudo Vem de Você

Mais uma canção plena de espiritualidade. Cabe somente o comentário pertinente: "Ninguém mudará o mundo se não mudar a si mesmo" (baseado em frase de Tolstói).

Tudo Vem de Você
por Joji Hirota e Sinead O’Connor
Título original: Everything Comes from You
Album: Big Blue Ball

Introdução:
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco Azul
Seis Indigo
Sete Violeta
Oito Vermelho
Nove Laranja
Dez Amarelo
Onze Verde
Doze Azul

Verso:
Eu sou sua filha
Sua mãe é minha mãe
E minha voz é elevada
Concedendo-lhe agradecimento e louvor
Eu apelo a você Pai
A parar a guerra
A parar o terror
A parar a guerra

Coral:
Tudo vem de você
Tudo também vai até você
Tudo vem de você
Tudo também vai até você

Tudo vem de você
Tudo também vai até você
Tudo vem de você
Tudo também vai até você

[Repetição da Introdução, Coral e Verso]

Concedendo-lhe agradecimento e louvor
Concedendo-lhe agradecimento e louvor
Concedendo-lhe agradecimento e louvor

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Tradução por Rafael Arrais à partir da transcrição em inglês

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Reações a João de Deus

Quando soube de João de Deus pela primeira vez confesso que não fiquei muito entusiasmado. Meu interesse não era exatamente nas suas práticas de cirurgias espirituais, mas sim na "fama" que adquiriu fora do país: conheci-o antes através da Discovery Channel do que qualquer veículo nacional de mídia... E não para por aí: BBC, National Geographic, ABC e diversos outros canais estrangeiros já produziram diversas reportagens e documentários sobre ele. Não se trata de um "apelo à multidão", pois certamente não creio que apenas por que centenas de pessoas o visitam todos os dias ele seria um grande médium, ou mesmo que suas cirurgias espirituais realmente favorecessem a cura das enfermidades dos pacientes; Mas me parecia um caso curioso que um médium brasileiro houvesse alcançado certa "fama" antes fora do páis do que dentro, considerando-se que o espiritismo é muito mais difundido aqui do que lá fora. Além disso, obviamente o fato de João de Deus tratar de forma inteiramente gratuita me fez continuar a estuda-lo de forma séria.

Então soube que o médium se considera católico (às vezes, "incorporado" ele se diz espírita, mas na maioria das vezes se diz católico) e que admitia abertamente que as cirurgias físicas, invasivas, não faziam qualquer diferença no tratamento em si, que era totalmente fluido - tratava somente da "matéria espiritual" e não envolvia cortes (apenas em casos de catarata, as "raspagens de olho" fazem parte do tratamento em si, segundo o próprio médium). Ou seja: as cirurguas físicas serviam apenas para "aumentar a fé" dos pacientes, fazendo-os crer que o tratamento espiritual, invisível aos olhos, poderia funcionar (cabe lembrar que segundo o espiritismo cirurgias físicas e "incorporações" totais são amplamente descaconselhadas e não fazem parte dos estudos originais da doutrina, com Kardec).

Ah essa altura eu estava quase convencido que se tratava de charlatanismo: me parecia uma idéia idiota arriscar a saúde das pessoas apenas para que elas "possam ter maior fé no tratamento"... Inclusive considerando que João de Deus nunca cursou medicina, operava com aparelhagem tosca (ex: faca de cozinha), sem assepsia e sem anestesia! No entanto, pesquisando um pouco mais descobri que na verdade apenas uma pequena parte de seus pacientes faziam tais cirurgias, e as faziam porque pediam, não porque o médium recomendava que fizessem. Ou seja: os que não "conseguiam crer o suficiente" no tratamento espiritual, pediam por uma espécie da "placebo físico" para aumentar sua fé no tratamento. Além disso, em décadas desse tipo de operação, nunca houve caso de infecção ou piora grave de condições de saúde dos pacientes, ainda que isso desafiasse a ciência convencional.

Menos mal, pelo menos aos meus olhos o médium deixou de ser uma espécie de "açougueiro irresponsável" e passou a ser, talvez, um "pequeno charlatão" que visava apenas aumentar a fé das pessoas no tratamento espiritual (independente de ser efeito placebo ou não, fato é que o resultado de um tratamento em que temos fé tem maiores chances de ser positivo)... Mas, novamente, eu ainda não dispunha de informação suficiente - pesquisei sobre evidências das cirurgias físicas serem ou não fraudes. Para mim surpresa, encontrei um estudo da Associação Médica Brasileira atestando que as cirurgias eram reais! Apesar de inteiramente inconclusivo acerca da eficácia do tratamento em si, a AMB provou que as cirurgias não eram fraudes.

À partir da posse dessas informações, e considerando que não nutro pessoalmente nenhuma admiração especial ou repulsa para com João de Deus, me pareceu que utilizar esse estudo da AMB em discussões no orkut seria uma excelente maneira de verificar uma amostragem de moderados, em oposição aos radicais, como céticos que negam qualquer prática espiritualista de antemão, ou evangélicos que as relegam a "obra de Satanás"... O fato do médium se dizer católico era ainda um detalhe relevante para observar a reação dos católicos a tais informações.

Não vou citar nomes porque não vem ao caso (cada pessoa analisada será chamada por uma letra: "A", "B", "C", etc.). Abaixo segue um breve resumo da reação de certas pessoas as práticas de João de Deus e ao estudo da AMB que comprovou que as cirurgias são reais:

A
Caso clássico de cético com repulsa a quelquer prática espiritualista, que considera tudo "repugnante" e "obviamente fraudulento" de antemão. Apesar de ter conhecimentos avançados em ciência e filosofia, portou-se grosseiramente, apelando sempre que possível a ataques pessoais a minha pessoa (lembrando que eu estava apenas passando às informações adiante e deixava claro que não concordava com as cirurgias invasivas). Até o final do debate, sustentou que a pesquisa da AMB era também uma fraude, e que a totalidade dos canais estrangeiros que realizaram documentários sobre João de Deus estavam sendo "subornados" por agências de turismo que planejavam trazer europeus e americanos ao Brasil (mais precisamente a uma remota cidade do interior de Goiás). Mesmo a BBC, notoriamente um canal que prima pela isenção de suas fontes, ficou no mesmo "bolo de suborno".

B
A princípio parecia um cético mais moderado, mas quando "ouviu falar" em espiritismo partiu para o ataque pessoal, me acusando de ser apenas "mais um crente espírita" (além do que disse acima para "A", aqui também deixei claro que não sou espírita, minha religião é meu pensamento). Apesar de eu ter dito inúmeras vezes que não defendia a prática de cirurgia invasiva, até o fim do debate ignorou solenemente essa informação, e parecia convencido que eu era "um ardoroso defensor de João de Deus", e que ele era "meu herói". Pesa a seu favor pelo menos a atitude moderada de reconhecer que o estudo da AMB era válido e que as cirurgias eram de fato reais.

C
Uma reação genuinamente cética: admitiu que o estudo da AMB era válido sem "espernear" nem apelar a qualquer tipo de ataque pessoal. No entanto, fez questão de ressaltar o que a própria AMB diz: que o estudo é inconclusivo acerca da eficácia do tratamento em si. Atribuiu todo tipo de cura por tratamento espiritual ao efeito placebo, porém não soube seguir adiante de forma sólida quando lhe indaguei sobre "o que era exatamente o efeito placebo?". Apesar de obviamente ser desfavorável as práticas do médium, portou-se de forma exemplar dentro de um ceticismo genuíno e responsável.

D
Católico extremamente cético (se é que isso possa fazer sentido a você), a princípio ironizou e fez chacota acerca das informações trazidas, como é de seu costume em relação a qualquer temática espírita... Porém, talvez por ter descoberto que o médium se dizia católico, procurou investigar mais (nessa época não tinha achado ainda o estudo da AMB). Mesmo antes da comprovação da AMB, admitiu que "era um caso misterioso" e que a princípio não se tratava de charlatanismo (inclusive porque o médium não cobra pelo tratamento). Alguns meses depois, após analisar o estudo da AMB, admitiu que as cirurgias são mesmo reais e que "alguma coisa desconhecida da ciência convencional" estava ocorrendo. Não apelou para ataques pessoais, mas deixou como sempre bem claro que "não acredita em espíritos desencarnados".

E
Evangélico "semi-radical", ignorou por completo as informações e videos postados e resumiu o assunto dizendo que "era apenas mais um charlatão espírita"... Interessante que não tenha aproveitado a deixa para atribuir suas práticas a influência de Satanás na Terra.

F
Espírita admirador de João de Deus, que inclusive já foi tratado por ele e costuma postar avisando de eventuais documentários na TV brasileira (como o SBT Repórter), a princípio não gostou do meu post "João de Deus: Charlatão?", afirmando que "estava muito cético" e que "não destacava o aspecto moral e o amor emanado pelo médium e seus seguidores"; Expliquei que se tratava de um post direcionado a todos, espíritas e não-espíritas, céticos e não-céticos, e então ele admitiu "que pode ajudar, mas que duvidava muito que algum cético iria admitir que João de Deus operava milagres"... Na verdade nem mesmo eu afirmo que o médium "opera milagres", o que quer que ocorra em suas operações, deve ter uma explicação física plausível, apenas ainda não compreendida devidademente pela ciência convencional.

G
Livre-pensador e admirador da Logosofia, manteve-se à parte dos debates e apenas me aconselhou a "procurar saber por mim mesmo se as práticas espirituais do médium são reais e consistentes", e não "confiar em documentários e pesquisas apenas, ainda que sejam genuinamente científicas". Trata-se sem dúvida de um conselho válido. Quero aqui deixar claro que nunca visitei João de Deus pessoalmente e que não o defendo nem o repudio, e que porisso mesmo me pareceram honestas e pertinentes as análises acima.

Conclusão
Os médicos que realizaram o estudo pela Associação Médica Brasileira provavelmente não são espíritas, mas somente seu interesse em estudar a chamada medicina alternativa com maior cuidado já aponta uma tendência clara na medicina atual, de se tornar pelo menos um pouco mais receptiva a terapias complementares como acupuntura, homeopatia, "tratamento espiritual", etc.

O fato de terem comprovado que as cirurgias são reais de forma alguma prova como eficaz ou ineficaz o tratamento espiritual oferecido por João de Deus. Porém, pelo fato de ele atender gratuitamente e as pessoas o procurarem por livre e espontânea vontade, devemos evitar ataques sem base a sua idoneidade. Vale destacar novamente o estudo da AMB: "Nem a crença entusiasmada ou a descrença renitente ajudarão os pacientes ou o desenvolvimento da medicina".

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Crédito da foto: Revista Época.

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7.5.09

Crear e criar

Retirado do livro: "Orientando para a auto-realização" de Huberto Rohden.

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.

A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.

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6.5.09

Canção da pirâmide

Uma música impregnada de espiritualidade (para quem tem ouvidos para ouvir):

Eu pulei no rio e o que eu vi?
Anjos de olhos negros nadando comigo
Uma lua cheia de estrelas e carros astrais
Todas as figuras que eu costumava ver
Todas os meus amores estavam lá comigo
Todo o meu passado e futuro
E todos nós fomos para o paraíso num pequeno barco

Não havia nada a temer e nada do que se duvidar

Eu pulei no rio (...)
Anjos de olhos negros nadando comigo
Uma lua cheia de estrelas e carros astrais
Todas as figuras que eu costumava ver
Todas os meus amores estavam lá comigo
Todo o meu passado e futuro
E todos nós fomos para o paraíso num pequeno barco

Não havia nada a temer e nada do que se duvidar

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Tradução da lyricstime.com (título da música em inglês: "Pyramid Song"; banda: Radiohead)

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Fé: pistia e fides

Trecho de um artigo do site Terra Espiritual baseado em interpretações do termo "fé".

"Fé tem duas origens, a primeira deriva do termo grego pistia, que quer dizer acreditar. Este é o significado mais usual, entretanto ainda incompleto, pois não basta crer, é necessário também compreender a razão pela qual se crê. Esta é a chamada fé raciocinada. Antes de ser uma contradição, como podem pensar alguns, o uso da razão solidifica a fé, pois ao analisarmos o objeto de nossa fé, compreendo-o e aceitando-o, estamos criando alicerces que tornarão nossa fé inquebrantável, fortalecendo-nos frente aos desafios mais árduos. Por outro lado, a fé sem a razão é frágil, está sujeita a ser desfeita e pode, frente ao menor abalo, desmoronar. Ou ainda pior, esta fé irracional pode nos conduzir ao fanatismo, a negação de tudo que seja contra o nosso ponto de vista. Com esta postura, nos arriscamos a cometer grandes desatinos, visto que, com nossos olhos fechado à razão, poderemos esta defendendo grandes mentiras, e negando grande e redentoras verdades.

A outra origem da palavra fé vem do latim, fides, que também possui o sentido de acreditar, mas agrega a este, o conceito de fidelidade, ou seja, é necessário que sejamos fieis ao objeto de nossa fé, falando em fé religiosa, estamos falando em Deus, portanto é preciso que sejamos fieis a Deus e isto só é possível seguindo os seus preceitos: 'Amar a Deus sobre todas as coisas e ao nosso próximo como a nós mesmos.' Tomando por base esta compreensão percebemos que não basta ficarmos recolhidos, rezando, estudando os textos sagrados ou contemplando os céus. Praticando uma fé passiva. Lembrando as palavras do apóstolo Tiago: 'Que proveito há, meus irmãos se alguém disser que tem fé e não tiver obras? Porventura essa fé pode salvá-lo? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.' (Tiago, 2:14 a 17)."

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2012: Nova data marcada

Os céticos sempre reclamam que as revelações do fim dos tempos nunca estabelecem uma data marcada. Já outros defendem que o fato de várias civilizações no mundo terem apresentado narrações apocalípticas sugere que estas têm uma origem comum e ancestral (supostamente revelada ao homem por um ser dotado de inteligência superior, entre outras teorias) que foi sendo deturpada pela transmissão oral. Esta visão assume, por vezes, um carácter ecológico, ao propor que a mensagem do apocalipse se refere à capacidade que o homem civilizado tem para destruir o mundo.

A literatura apocalíptica tem uma importância considerável na história da tradição judaico-cristã-islâmica, ao veicular crenças como a ressurreição dos mortos, o dia do Juízo Final, o céu, o inferno e outras que são ali referidas de forma mais ou menos explícita. O Apocalipse de João, último livro da Bíblia, apresenta a previsão para o fim dos tempos, numa forma de escrita que ironicamente lembra em muito a mitologia pagã. A maior parte do livro é escrita em linguagem simbólica, e, por isso, dá margem a diversas interpretações pelos diversos segmentos cristãos.

Em 130 d.C. Justino, o Mártir acreditava que Deus estaria a atrasar o fim do mundo porque desejava que o Cristianismo se tornasse uma religião mundial. Por volta do Século III a maioria dos professos cristãos acreditava que o fim dos tempos ocorreria depois de suas mortes. Em 250 d.C. Cipriano, Bispo de Cartago, escreveu que os pecados dos cristãos eram um prelúdio e prova de que o fim dos tempos estava próximo. Alguns, recorrendo às Tradições Judaicas, fixaram o fim das eras na Sexta Idade do Mundo. Usando este sistema, o fim foi anunciado para 202 d.C. mas, quando esta data passou, foi fixada uma nova data. Na época de Clóvis I, considerado o fundador da França e que se converteu ao catolicismo após ser entronizado como rei em 481 d.C., alguns escritores católicos haviam apresentado a idéia de que o ano 500 d.C marcaria o fim do mundo. Depois de 500 d.C., a importância e a expectativa da vinda do fim do mundo ou das eras como parte dos fundamentos do Cristianismo foi marginalizada e gradualmente abandonada. Apesar disso, surgiu um temporário reavivamento dos temores relacionados com o fim dos tempos com a aproximação do milésimo ano do nascimento de Cristo. Muitos acreditavam na iminência do fim do mundo ao se aproximar o ano 1000... Pode-se perceber aqui um padrão. De fato, há relatos de comoção popular ante a iminência do fim dos tempos em praticamente todo final de século desde a época de Jesus. Mais recentemente, a última promessa que tivemos de um "grande desastre mundial" foi chamada de Bug do milênio, e apesar de ter sua base em argumentos lógicos, acabou não passando de mais uma previsão que não se cumpriu (o bug foi praticamente inofensivo).

Os céticos poderiam então pensar que estavam livres desse tipo de previsão por praticamente mais um século, mas não foi o que ocorreu. A última "moda" em apocalipse se chama "2012":

Em diversas culturas ancestrais o ano de 2012 é marcado nos calendários como o “apocalipse”, o “fim do mundo”, “o juízo final”, “o fim de um ciclo” e, nos mais otimistas, “o ano em que esta era terminará e outra, melhor, será iniciada”. Maias, Egípcios, Celtas, Hopis, Nostradamus e diversos profetas, Chineses e Budistas, WebBots, Cientistas e Religiosos das mais diferentes crenças afirmam que algo extraordinário ocorrerá em nosso planeta em 2012 (ou antes). Nunca antes uma data foi tão importante para muitas culturas, para muitas religiões, cientistas e governos.

Na cosmologia Maia, há 5 grandes ciclos, cada um com cerca de 5.125 anos. Quatro já passaram. " Os 4 ciclos anteriores terminaram em destruição. A profecia maia do juízo final refere-se ao último dia do 5º ciclo, ou seja, 21 de dezembro de 2012." diz Steven Alten. Portanto o 5 e atual ciclo também terminará em destruição. O que irá desencadeá-la? A resposta pode estar em um raro fenômeno cósmico que os maias previram a mais de 2.000 anos. "A profecia maia para 2012 baseia-se em um alinhamento astronômico. Em dezembro de 2012, o sol do solstício vai se alinhar com o centro de nossa galáxia. É um raro alinhamento cósmico. Acontece uma vez a cada 26.000 anos" diz John Major Jenkins, autor do livro Maya Cosmogenese 2012.

A cada 26.000 anos o sol se alinha com o centro da Via Láctea. Ao mesmo tempo ocorre outro raro fenômeno astrológico, uma mudança do eixo da terra em relação a esfera celeste. O fenômeno se chama Precessão. A data exata disto tudo é 21 de dezembro de 2012. "A Terra oscila lentamente sobre seu eixo mudando nossa orientação angular em relação a galáxia. Uma precessão completa leva 26.000 anos." diz John Major Jenkins.

O texto dos últimos três parágrafos (destacados em itálico) foi retirado do site porque2012.com, que tem uma extensiva quantidade de informações acerca do assunto. Veja a continuação do texto aqui.


Pois bem, então temos uma nova data marcada para o fim dos tempos... E dessa vez vem "respaldada" por diversas profecias e, mais especificamente, pelo que previu o calendário maia. Não quero aqui discutir a relevância de tais previsões, quero entrar em uma área mais profunda de análise: será que por "apocalipse" devemos entender realmente um "fim do mundo", ou mesmo uma mudança brusca e radical em nosso sistema de existência?

Muitos católicos rejeitam a idéia do "fim do mundo", sendo que para eles, a expressão apenas indica um estado de mudança das atuais condições do mundo para condições novas, tal como o mundo já teria sofrido outras metamorfoses no passado. Interpretam a passagem do Evangelho de João, no capítulo 14, versículo 12: "Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas, porque vou para junto do Pai." como um sinal de constante desenvolvimento e aperfeiçoamento infinito do homem.

Se os católicos moderados são perfeitamente capazes de compreender que a Bíblia, e especificamente o Apocalipse, são livros em sua maior parte escritos em linguagem simbólica, cheios de metáforas comuns a tantos tratados espirituais da humanidade, porque temos a necessidade de criar tanta comoção em torno de um fim do mundo literal, sempre que uma data em específico se aproxima? Seria porque alguns de nós estão cansados do mundo? Seria porque esperamos que "Deus desça e mude o mundo para nós"?

Dentro das teorias espiritualistas reencarnacionistas, temos a distinta idéia de que os seres espirituais vem e vão deste mundo, como gostas de chuva que caem e depois evaporam de volta aos céus. Segundo esse preceito, é necessário que os seres espirituais vivam inúmeras vidas, interpretem inúmeros papéis de si mesmos, para que apurem lentamente sua moral, seu amor e seu conhecimento. A palavra de ordem, nesse caso, se chama gradualmente: nada no universo ou na natureza opera de maneira brusca, radical, do dia para a noite. Assim como foram necessários milhões de anos para a formação da vida na Terra, não foi do dia para a noite que os seres se tornaram conscientes, e não será do dia para a noite que uma nova era de moral, amor e sabedoria se estabelecerá pela Terra.

Sob esse ponto de vista, de certa forma "2012", ou a chamada Nova Era, iniciaram-se a muito tempo, provavelmente na Revolução Francesa. Ou acaso achamos que os princípios universais, que a liberdade, a igualdade e a fraternidade (da frase de Russeau) estão desde aquela época instaurados no mundo? Claro que não... A evolução moral da humanidade opera lentamente, a passos de tartaruga talvez, mas sempre à frente. Analisando dessa forma abrangente, talvez não tenhamos a expectativa de um fim do mundo repentino e, quem sabe, mais "excitante"... Mas nossa análise moderada talvez se aproxime muito mais da realidade, do que afinal observamos na natureza e no avanço das sociedades.

Existiram decerto civilizações que "sumiram do mapa" de forma brusca. Mas não podemos dizer que isso foi obra do acaso ou da natureza: isso foi antes de tudo obra da ignorância do próprio homem, que sempre exterminou a si mesmo nesse mundo, em busca de riquezas ou de satisfazer teologias tolas... No entanto hoje estamos globalizados. Hoje somos forçados a ver o mundo de forma abrangente. Não podemos mais aceitar que o fim do mundo previsto para um povo será o fim dos tempos de todos nós. Assim como não podemos mais aceitar que Deus traga revelações apenas para um povo, e não para todos nós que aqui estamos. Deixemos a natureza seguir o seu curso. O nosso "fim do mundo" sempre decorreu de nossa ignorância da natureza e da teia que encadeia todos os acontecimentos, não apenas aqui, mas em todas as moradas do universo.

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O início do artigo contém textos retirados diretamente da Wikipedia.

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Crédito da foto: reinaldo_sjc

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4.5.09

Países ateus?

Ateísmo: originado do grego ἄθεος (atheos), era aplicado a qualquer pessoa que não acreditava em deuses, ou que participava de doutrinas em conflito com as religiões estabelecidas.

Ultimamente temos nos deparado com uma série de pesquisas sobre os índices de ateísmo no mundo. Interessante que a grande parte delas vem recheadas de generalizações (apressadas ou não) que pretendem explicar o porque do crescimento do ateísmo. Ora, que o ateísmo viesse crescendo gradativamente é algo que foi previsto desde o modernismo, e talvez revisto no pós-modernismo; Mas não é realmente surpresa esse conceito que prevê que na medida que a população estude mais, que a ciência avance, cada vez mais pessoas virem as costas para explicações dogmáticas ante questões existencialistas como a origem do universo e a origem de homem na Terra.

É surpreendende, no entanto, que algumas dessas pesquisas apontem para índices avassaladores de ateísmo em certos países, na casa de 80% ou mais! E que atrelem, de forma quase gratuita, esse crescimento a uma noção quase mística de "inteligência" e "educação" presentes em tais países. Vejamos alguns exemplos que achei na web (tentem guardar a sequência de informações):

Países ateus são mais justos, confirmam pesquisas (Recanto das letras)
"(...) os países menos religiosos do mundo são os mais justos, mais éticos, possuem forte economia, baixa taxa de criminalidade, os mais altos índices de qualidade de vida, altos padrões de vida e igualdade social. Ao contrário, os países mais religiosos são aqueles com maior desigualdade, criminalidade, corrupção, injustiça e outras pragas sociais, como Brasil."

Proporção de ateus em alguns países (Neo-Ateus)
"Os Neo-Ateus são radicais em sua postura anti-religiosa e não só desacreditam divindades como reconhecem que o mundo seria melhor se ninguém acreditasse nelas."
Há um 'infográfico' que traz a informação que a Suiça tem 85% de ateus, sem menção a Suécia, Noruega ou Dinamarca - apesar da fonte nos rememeter ao estudo de Phil Zuckerman, que veremos à seguir.

Deus não existe! (Revista Enfoque - evangélica)
Ao longo da matéria temos uma tabela com "as 20 nações com os mais elevados índices de ateísmo", onde em primeiro lugar temos a Suécia com 85%, a Suiça sequer aparece, e diz-se que a fonte é o mesmo estudo do caso acima, de Phil Zuckerman. Notem que este artigo é de uma revista evangélica.

"Os ateus são mais inteligentes" (Revisa Época)
"O pesquisador britânico Richard Lynn dedicou mais de meio século à análise da inteligência humana. (...) Ao analisar mais de 500 estudos, Lynn disse estar convencido da relação entre Q.I. alto e ateísmo. 'Em cerca de 60% dos 137 países avaliados, os mais crentes são os de Q.I. menor', disse. Seu trabalho será publicado em outubro na revista científica Intelligence." - Notem que ele tirou sua conclusão baseado numa amostragem de 60% do total de países avaliados.

Atheism: Contemporary Rates and Patterns (artigo em inglês publicado em Cambridge)
Aqui sim, temos o texto original do artigo de Phil Zuckerman, ao que os outros artigos acima atribuíram os índices de ateísmo em certos países. Interessante notar que por "ateísmo" deve-se tomar todos aqueles que reponderam "não acreditar em um Deus" e também os agnósticos. Finalmente, na tabela com os "50 países com maior porcentagem de ateus" verificamos a "acuidade" dos índices: 1 - Suécia (entre 46% e 85%); 2 - Vietnam (81%); 3 - Dinamarca (entre 43% e 80%); 4 - Noruega (entre 31% e 72%); 5 - Japão (entre 64% e 65%); (...)

Agora vejamos o que os sites governamentais nos trazem:

Religião na Dinamarca (artigo em inglês do site oficial do governo dinamarquês)
Ao longo desse texto do próprio governo dinamarquês, verificamos que os cristãos correspondiam a cerca de 80% da população em 2012. Notem que cristãos costumam acreditar em um Deus.

Estarão os suecos perdendo sua religião? (artigo em inglês do site oficial do governo sueco)
Ao longo desse artigo que reconhece que a religiosidade na Suécia está em queda, temos a informação oficial de que: "praticamente 8 de cada 10 suecos são membros da Igreja da Suécia - 7 milhões"; "apenas 5 de cada 10 casamentos são realizados na Igreja da Suécia"; e finalmente que "9 de cada 10 enterros na Suécia seguem o cerimonial cristão". Notem que os percentuais são respectivamente de 80%, 50% e 90%.

Pesquisando e analisando tais informações de forma menos apressada comparada a forma em que foram alardeadas na internet, cheguei a algumas conclusões (talvez concordem comigo):

1- Sobre a relação da educação com o ateísmo
Como disse no início, me parece lógico que a medida que o nível de educação aumente em certos países, a tolerância a explicações dogmáticas para a existência humana caiam por terra. Isso não quer dizer no entanto que o ateísmo aumente na mesma medida que a negação ao dogmatismo. De fato, o que podemos notar no mundo todo é exatamente a procura por explicações alternativas às questões existencialistas; Daí o vertiginoso crescimento das chamadas "religiões de Nova Era", que muitas vezes sequer são religiões, no sentido em que compreendemos uma religião como uma igreja e suas hierarquias, mas antes novas filosofias ou doutrinas espiritualistas. Da mesma forma, nem todos os que abandonam o dogmatismo necessariamente abandonam a crença em Deus.

2- Sobre a relação do Q.I. com o ateísmo
Existem inúmeras discussões acerca do que significa exatamente a inteligência. Pode-se dizer que hoje muitos estudiosos atrelam o conceito de inteligência não somente ao raciocínio ou a memória, mas também a capacidade de controlar as emoções e usa-las de forma equilibrada e racional, o que ficou conhecido por "inteligência emocional". Dessa forma, um teste de Q.I. não servirá como medidor único da inteligência humana.
Pior ainda é usar uma amostragem de 60% do total de países avaliados para trazer qualquer conclusão acerca da relação de Q.I. elevado com ateísmo elevado. Simplesmente não faz o menor sentido enquanto pesquisa. Me parece um caso clássico de generalização apressada: "Minha avó tem dor de cabeça crônica. Meu vizinho também tem e descobriu que o motivo é um câncer. Logo, minha avó tem câncer."

3- Sobre a validade da pesquisa de Phil Zuckerman
Os dados dessa pesquisa me parecem um tanto imprecisos. Afirmar que entre 46% e 85% dos suecos são ateus é mais ou menos como afirmar, em uma pesquisa de boca de urna, que um candidato a eleição pode ou não ter a maioria dos votos. A margem de erro é simplesmente avassaladora. Não faz muito sentido enquanto pesquisa, simplesmente nem se pode tirar qualquer conclusão (apressada ou não) dela. Decerto faz sentido que o ateísmo no Vietnam seja altíssimo (e Zuckerman explica as razões em seu artigo), mas mesmo no caso do Japão (entre 64% e 65% de ateus - segundo a pesquisa) podemos constatar que os dados simplesmente não correspondem ao que dizem inúmeras outras fontes. Ah não ser que consideremos xintoístas e budistas como ateus (o que decerto não faria o menor sentido), podemos afirmar com convicção que sem sombra de dúvida o ateísmo no Japão é muito menor.

4- Sobre a contradição dos dados apresentados
Mesmo que os sites que usaram de forma errada os dados da pesquisa de Zuckerman fossem desconsiderados, ainda nos resta a clara contradição com dados oficiais dos sites dos governos da Dinamarca e da Suécia (apresentados acima). Ou seja, se 80% da população da Dinamarca era cristã em 2012 (nem estamos contando muçulmanos e outros religiosos), me parece improvável que mesmo o menor valor apresentado na pesquisa de Zuckerman (43% de ateus na Dinamarca - menor valor segundo a pesquisa) corresponda a realidade. Quanto ao maior valor, trata-se então de um delírio absolutamente não compatível com o pensamento cético.

5- Sobre a falácia do "apelo à multidão"
Trata-se de um raciocínio falacioso: "Você não acha que se uma religião cresce tanto em tão pouco tempo é porque Deus está com ela?"; Ora, e o que acha que esses "neo-ateus" [1] fazem ao associar o ateísmo a maior inteligência ou a maior educação de um certo país? Não poderíamos também encontrar aqui a mesma falácia: "Você não acha que se esses países tem alto nível de educação e maioria de ateus, é porque o ateísmo é a tendência natural da evolução da inteligência humana?"
Se esses "neo-ateus" pretendem "evangelizar" sua descrença apoiados em falácias tão comuns de evangelizadores religiosos ao longo da história, que pelo menos se declarem não-céticos e não-agnósticos, pois decerto o ceticismo passa muito longe desse tipo de raciocínio!

***

[1] Há muitos que creem que neo-ateus não existem. Vocês devem ter reparado que tenho usado o termo entre aspas, é que também concordo que o termo mais adequado é este outro, muito embora seja bem menos conhecido e/ou divulgado: Anti-teísmo.

Crédito da imagem: Daily Atheist (exemplo clássico de "evangelização ateísta", talvez com certa dose de humor)

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