continuando da parte 2...
A psicopatia é um distúrbio mental grave caracterizado por um desvio de caráter, ausência de sentimentos genuínos, frieza, insensibilidade aos sentimentos alheios, manipulação, egocentrismo, falta de remorso e culpa para atos cruéis e inflexibilidade com castigos e punições.
A consciência do mal
Estive defendendo que Satanás é um mito, que não existe um ser que centraliza toda fonte do mal, e que os tais “mestres da escuridão” nada mais são do que seres mimados, incapazes de lidar com a frustração de seus desejos incontroláveis. Enfim, que o mal é apenas a ausência do bem, e que não existe em si mesmo, assim como a escuridão não existe – é apenas a ausência da luz.
Mas falava sobretudo do mal dito “sobrenatural”, como uma força que tinha o poder de influenciar os seres e guiá-los contra a vontade as ações mais diabólicas, com o perdão da palavra (o mito já contaminou a linguagem, não posso fazer nada). Ora, se é verdade que esse mal não existe, o mal que tem origem na ignorância de cada ser é bastante real, e bastante comum. A história da humanidade, apesar de todos os acertos da filosofia, da religião e da ciência, é permeada em todos os lados pela ignorância – essa ignorância que ainda nos permeará por muitas eras...
Sim os seres são influenciados, na verdade, pelos próprios vícios. E obviamente que, numa vida em sociedade, o vício de um pode influenciar o vício do outro. Não foi à toa que mesmo os grandes sábios da Grécia antiga praticamente não levantaram a voz contra a escravidão, que Hipátia de Alexandria foi queimada junto com a grande biblioteca, que as pessoas iam ver homens serem devorados por feras no Coliseu de Roma, e aplaudiam!
Felizmente, no entanto, estamos nessa lenta, lentíssima evolução moral. Passo a passo estamos seguindo a frente, ainda que sem pressa alguma: hoje não se queimam mais bibliotecas nem hereges, negociar e manter escravos é crime, e vamos ao Estádio Olímpico de Roma apenas para ver futebol – na maioria das vezes sem sangue derramado... Afinal o que nos move no caminho do bem e da virtude? Ora, dizem os sábios que é precisamente a aversão à consciência do mal praticado.
Ao encararmos o mal, fruto de nossa própria ignorância, em nós mesmos, ficamos escandalizados e procuramos melhorar. Nesse lento bater das águas na rocha dura, pouco a pouco lapidamos nossa alma, e transformamos um deserto de granito em uma praia de calcário. Certo, uma vida é muito pouco para tamanha transformação, mas há muitos sábios que dizem que é exatamente por isso que precisamos retornar ao mundo tantas e tantas vezes: é que as potencialidades não se edificam de uma vida para outra, há que se utilizar muitas delas!
Mas o cético, ou aquele que se deprime com essas “fantasias de almas e vida eterna”, dirá que o cérebro nada mais é do que o mero agitar de partículas, e que o mal nada mais é do que uma deficiência, uma psicopatia, uma falha do mecanismo cerebral... Estranho, no entanto, que tanto psicopatas quanto autistas tenham dificuldades de perceber suas emoções, sendo que os últimos geralmente não fazem mal a uma mosca, e os primeiros podem se tornar assassinos seriais. Quanto mistério dentro dessas partículas obscuras em nossa cabeça!
Em “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, o neurologista Oliver Sacks nos traz uma história – um de seus inúmeros casos clínicos de pacientes com doenças mentais – que talvez nos ajude a iluminar esse paradoxo [1]:
“Donald matou sua namorada sob a influência do cloridrato de fenociclidina (PCP). Ele não lembrara do que fizera (...) e nem a hipnose nem o amital de sódio foram capazes de liberar essa lembrança. Concluiu-se, portanto, em seu julgamento, que não havia uma repressão de memória, mas uma amnésia orgânica – o tipo de blackout muito característico do PCP.
Os detalhes, revelados no inquérito, eram macabros, e não puderam ser expostos em audiência pública. Foram discutidos in câmera – ocultos do público e do próprio Donald. (...) Ele passou quatro anos em um hospital psiquiátrico para os criminalmente insanos – apesar de haver dúvidas quanto a ele ser criminoso ou insano. (...) “Não sou apto para viver em sociedade”, dizia, melancólico, quando questionado.
No quinto ano ele começou a sair em liberdade condicional, [e sofreu um acidente enquanto pedalava sua bicicleta, ao desviar de um carro em uma curva fechada] (...) Ele sofreu uma grave lesão na cabeça (...) e séria contusão em ambos os lobos frontais. Ficou em estado de coma, hemiplégico, por quase duas semanas, e então, inesperadamente, começou a se recuperar. Nesse estágio começaram os “pesadelos”.
O assassinato, o ato, antes perdido para a memória, agora se mostrava para ele em detalhes vívidos, quase alucinatórios [2]. Uma incontrolável reminiscência emergiu e o assoberbou (...) Seria isso um pesadelo, seria loucura ou haveria agora uma “hipermnésia” – a irrupção de lembranças genuínas, verídicas, aterradoramente intensificadas? (...) Ele agora conhecia o assassinato nos mínimos detalhes: todos os detalhes revelados pelo inquérito mas não no julgamento público – ou a ele.
[Com anos de tratamento] já não está mais obcecado [pelo assassinato]: foi atingindo um equilíbrio fisiológico e moral. Mas e quanto ao estado de memória, primeiro perdida e depois recuperada? Por que a amnésia – e o retorno explosivo? Por que o blackout total e depois os vívidos flashbacks? O que realmente aconteceu nesse drama estranho, meio neurológico? Todas essas questões permanecem um mistério até hoje.”
Os livros de Sacks nos dão vários exemplos de casos de pacientes com amnésia profunda que eventualmente conseguem se “realinhar” com a realidade e a época atual, seja de forma permanente – pelo sucesso do tratamento –, seja de forma temporária – por tratamentos alternativos, particularmente com uso de música. Em todo caso, esquecer e depois lembrar de atos imorais não necessariamente quer dizer que todos um dia irão sentir remorso em se lembrando com detalhes vívidos de seus atos no mal.
Talvez os psicopatas sejam “imunes” ao remorso para sempre. Talvez não exista nada após a morte e, portanto, tenhamos inúmeros exemplos de seres que foram psicopatas, sem remorso, ao longo de toda a vida. Nesse caso, bem e mal são como efeitos aleatórios de características de nosso cérebro, e talvez não exista nem Deus nem a vida após a morte, e muito menos um Céu ou um Inferno conforme nos diz a Bíblia...
Por outro lado, talvez exista algum tempo do outro lado do véu, e talvez esse tempo não seja nada amistoso para aqueles que acumularam atos imorais em sua própria consciência – esta que, mesmo nem sempre parecendo, registra absolutamente tudo a nossa volta. Nesse caso, talvez o remorso e a culpa um dia fatalmente venham cobrar seu quinhão a todos aqueles que têm o saldo devedor. Não se trata de mera especulação teológica, temos indícios de que isso pode ser verdade por toda a parte, e em todos os tempos.
Dito isso, acho prudente lembrar que Céu e Inferno só podem realmente ser o que dizem que são se estiverem impressos em nossa própria consciência, não num futuro distante, não num Dia do Juízo, não após a morte, mas hoje, neste exato momento: somos os juízes e os escravos de nossa própria consciência, não há parte alguma que possamos ir sem ela, não há como ignorá-la nem ludibriá-la por muito tempo...
Aquele que se apraz com o amor, a moral, a busca pela verdade, estará envolto no mais luminoso e paradisíaco Céu aonde quer que vá. Ao passo que aquele que se identifica com a própria ignorância, e rende-se a estagnação e ao deboche perante as leis naturais – que ainda não compreende nem o ínfimo –, este estará condenado ao mais tenebroso e obscuro Inferno, ainda que tenha todas as riquezas, todos os escravos, e todos os impérios do mundo. Ocorre que um já encontrou o amor, o caminho sem fim, e o outro ainda o ignora, e crê que esta é uma terra de sofrimento, de absoluta ausência de sentido – onde tudo é relativo e todas as coisas, no fim, se reduzem ao nada, ao abismo vazio de seu próprio ser.
Este caminho, todos temos de percorrer: deixem que as rodas percorram os velhos sulcos.
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[1] Retirado do capítulo 19, “Assassinato”. O livro é publicado no Brasil pela Companhia das Letras, assim como vários outros do mesmo autor, todos recomendados.
[2] Qualquer semelhança com as análises da segunda parte de “O Céu e o Inferno” de Allan Kardec (ed. LAKE) talvez não sejam mera coincidência.
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Crédito da foto: Patrick Power
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