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29.3.12

Comentário: que é, afinal, a vida?

Comentário das respostas da pergunta “que é, afinal, a vida ?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.

[Raph] O maior evento da história da Terra ocorreu há bilhões de anos: ainda antes que o planeta completasse seu primeiro bilhão de anos, organismos unicelulares surgiram, de alguma forma, da matéria inorgânica, provavelmente em pequenos lagos aquecidos pelo calor do núcleo a vazar pela crosta... Mas, o tipo de matéria que formava esses organismos primordiais não foi forjado na Terra, mas sim no núcleo de estrelas como o nosso Sol. Na verdade, não sabemos nem se tal matéria já se encontrava no planeta desde a origem, ou se chegou até nós, literalmente, na cauda dos cometas.

Segundo a teoria da panspermia, boa parte ou mesmo a totalidade do tipo de matéria que possibilitou o surgimento das primeiras células vivas chegou a nós incrustada em asteroides que se chocaram com a Terra no período de centenas de milhões de anos após sua formação. Nós buscamos pelos alienígenas lá fora, mas de certa forma sempre fomos, nós mesmos, os próprios alienígenas: filhos das estrelas, parte dos elementos pesados que são somente formados, no universo conhecido, nas reações nucleares do núcleo dos sóis.

Chris Impey é um dos primeiros astrobiólogos, cientistas que se especializaram em estudar as possibilidades de vida alienígena que parece extremamente viável de ser encontrada pelo Cosmos afora: organismos simples, talvez mesmo unicelulares, podem realmente ser ubíquos pela imensidão da noite infestada de berçários de vida. Em seu excelente O universo vivo, ele explica [1]:

“A vida hoje não se parece com substâncias químicas flutuando em uma lagoa salgada, ou com moléculas complexas aprisionadas em uma superfície mineral. Todas as formas de vida, da menor bactéria até a sequóia mais imponente, são feitas de células. Depois que uma célula primitiva foi criada, o caminho para o alto ficou claro. Certamente ir de uma bactéria a um chimpanzé é um passo menor do que ir de uma mistura de aminoácidos a uma bactéria. Saber como se formaram às primeiras células é vital para que a ciência compreenda a origem da vida.

Mas essa questão ainda permanece em aberto. Apesar de nos dias atuais a ciência pelo menos fazer uma ideia básica de como o processo provavelmente se conduziu, nunca vimos moléculas se reproduzindo, nunca produzimos uma célula sequer a partir de elementos sem vida.”

Essa questão tem uma história longa e turbulenta, estimulando poetas e céticos, filósofos e mecânicos quânticos, biólogos e místicos, a oferecer uma gama de explicações radicalmente diferentes. “A vida é um fenômeno único e fundamentalmente diferente da não vida”, opinou o filósofo francês Henri Bergson. Bergson teorizou que a vida é irresistivelmente impelida a níveis cada vez mais altos de realização evolutiva por uma misteriosa força vital (élan vital), que é inteiramente ausente na matéria não viva.

Já para o cético Robert Morrison, a palavra vida é apenas uma convenção linguística que empregamos para descrever uma classe especial de objetos materiais: “A vida não é uma coisa ou um fluido mais do que o calor o é. O que observamos são alguns conjuntos incomuns de objetos separados do resto do mundo por certas propriedades peculiares, como crescimento, reprodução e maneiras especiais de lidar com a energia. Esses objetos, escolhemos chamar de coisas vivas.”

A arma secreta da vida, concluiu o pioneiro da física quântica Erwin Schrödinger num livro intitulado What Is Life? [O Que é a Vida?], é sua capacidade única de metabolizar: exportar desordem para o ambiente circundante em forma de calor irradiado e excrementos enquanto importa ordem desse ambiente em forma de alimento e energia. O livro de Schrödinger foi uma inspiração para toda uma geração de cientistas que criaram, basicamente a partir do zero, o enorme empreendimento científico hoje conhecido como biologia molecular.

James Watson, um dos descobridores do DNA, também caminhou nos ombros de um gigante: “Schrödinger argumentou que a vida pode ser pensada em termos de armazenamento e transmissão de informações biológicas. Os cromossomos seriam assim meros portadores de informação.” – Este conceito de pensar a vida como informação biológica teve impacto decisivo nas pesquisas de Watson, e quando este finalmente descobriu o DNA, pensou ter finalmente resolvido um dos grandes mistérios da ciência:

“Nossa descoberta põe fim a um debate tão antigo quanto à espécie humana: Será que a vida tem alguma essência mágica, mística, ou é, como qualquer reação química produzida numa aula de ciências, o produto de processos físicos e químicos normais? Haverá alguma coisa divina numa célula que a traga a vida? A dupla hélice respondeu a essa pergunta com um definitivo Não.”

Ironicamente, seu mentor intelectual (Schrödinger) chegou precisamente à conclusão oposta em What Is Life?, ao observar que a característica que define a vida – sua capacidade para produzir e prolongar a existência de uma ilha de ordem contínua, incessantemente fustigada por um mar de aleatoriedade e de desordem movida a entropia – é uma forte evidência da existência de um “novo tipo de lei física” que governa o comportamento da matéria viva.

Assim como o gelo formado a partir da água dentro de nossa geladeira é uma “ordenação” das moléculas de água ao custo de uma “desordem” ainda maior, causada pelo calor expelido de dentro para fora (pelo menos quando ela esta ligada na tomada), biologicamente a vida não desafia a segunda lei da termodinâmica, que afirma que o universo inteiro caminha sempre para a entropia, ou seja, para “a desordem das informações”. E, de fato, tudo parece ser constituído puramente de informação.

John Wheeler, um físico americano, cunhou a expressão “o it que vem do bit”. Em suas palavras: “Cada it – cada partícula, cada campo de força e até mesmo o próprio continuum espaço-tempo – deriva inteiramente sua função, seu significado, sua própria existência – mesmo que em alguns contextos indiretamente – de respostas induzidas por equipamento a perguntas sim ou não, escolhas binárias, bits. O it que vem do bit simboliza a ideia de que cada item do mundo físico tem no fundo – bem no fundo, na maioria dos casos – uma fonte e uma explicação imateriais; que aquilo que chamamos de realidade vem em última análise da colocação de perguntas sim-não, e do registro de respostas evocadas por equipamento; em resumo, que todas as coisas físicas são informacional-teóricas na origem.”

Esse tipo de consideração metafísica demonstra como alguns físicos modernos não têm um pensamento tão distante de certos filósofos e espiritualistas, embora usem outros termos. Se tudo que há é informação, e se tudo o que essa informação forma é matéria, ainda falta descobrirmos o que diabos são os outros 96% da matéria e energia do universo, que não interagem com a luz (não refletem fótons), segundo a novíssima “teoria quente” da cosmologia: a Matéria Escura. Se, assim como Dawkins teorizou, mesmo os nossos pensamentos seguem a lei da seleção natural, através dos memes (alguns diriam: os genes místicos), e têm nascimento, vida e morte, falta-nos desvendar se a vida é, afinal, apenas algo mais que moléculas de carbono, água e outros elementos em uma configuração fortuita, ou se nossa mente, nossa consciência, nosso élan vital, é formado por algum tipo de matéria ainda totalmente desconhecida, e profundamente invisível (exatamente por não interagir com a luz).

E, se acaso um dia esbarremos numa consciência formada por matéria sutil demais para que nossa tecnologia a houvesse descoberto anteriormente, tal evento, longe de invalidar mais de um século de desenvolvimento da biologia, apenas a elevará a um patamar ainda mais grandioso, ainda mais fantástico, ainda mais complexo... Será que um dia descobriremos, afinal, o que é que interpreta informações em nosso cérebro, o que é que percebe subjetivamente a “vermelhidão do vermelho”, o que é que se maravilha com uma música ou um poema, o que é que olha de volta para a imensidão do Cosmos e se pergunta: “para que, para que, afinal, tudo isso?”. E será que, mesmo isso, será apenas um sim contra um não?

***

[1] Todas as citações deste artigo/comentário foram retiradas deste livro de Impey, publicado no Brasil pela Larousse, e também de O universo inteligente, de James Gardner, publicado pela Cultrix/Pensamento. Ambos são recomendados para quem se interessa por um debate genuinamente filosófico e científico sobre o assunto.

» Ver todos os posts desta série


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Crédito da imagem: Tom Grill/Corbis

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27.3.12

Frases (10)

Mais frases que vieram com o vento, geralmente primeiro aparecem no meu twitter, depois aqui:

"Talvez um dos sentidos mais universais da existência seja a busca pela vida, e não apenas a sobrevivência."

"Façais grande tua vida curta, para que tua longa vida não seja um conjunto de vidas pequenas."

"Há um paradoxo acerca do que é mais belo: um homem ser santo ou um santo ser, no fundo, apenas um homem, como todos nós."

"Um anjo: aquele que chegou ao céu mais cedo."


"Ao passar da noite, não estamos mais perto da morte. Toda noite é uma morte. Toda manhã é vida que se renova."

"As palavras, elas nascem na mente, e desde o nascimento são apenas a casca de algum sentimento que, por vezes, deságua um pouco em palavras."

"Na Natureza, nada é tão pequeno que possa ser descartado, e nada é tão grande que não possa se transformar."


"Sobrenatural é o amor."

"Amistosidade espiritual: o futuro!"

"Tudo está encharcado de Deus por todos os lados. É o que digo aos que não suportam mais viver, e acham que morrendo encontrarão a Deus mais cedo..."

"E se Deus fosse o Nosso amor, qualquer brincadeira entre amigos seria um ritual em Seu nome..."


"Em deus algum faltava a humanidade inteira." (Schiller, sobre os gregos antigos)

"Um grande momento encontrou um povo pequeno." (Schiller, sobre a Revolução Francesa)

"Somente através da beleza da manhã é possível penetrar a terra do conhecimento." (Schiller, sobre a dimensão estética)

"Quando? Amanhã, amanhã? Por que não hoje?" (Sto. Agostinho)

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Crédito da foto: Frank Krahmer/Corbis

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25.3.12

Cantos da floresta

O Mawaca é um grupo que pesquisa e recria a música das mais diversificadas etnias do globo buscando conexões com a música brasileira. Formado por sete cantoras que interpretam canções em mais de dez línguas (línguas indígenas brasileiras, espanhol, búlgaro, finlandês, japonês, húngaro, swahili, grego, árabe, hebraico, ioruba e português), o Mawaca revela no seu nome a essência do seu trabalho. Segundo a etnia hausa do norte da Nigéria os mawaka (cantores-xamãs) recorrem ao poder mágico da palavra cantada para atrair o poder dos espíritos.

No documentário Cantos da floresta (com cerca de 27min.), vemos como o grupo foi atrás dos povos antigos da Amazônia, de sua cultura, sua música, e seu espírito... Vemos como, através da música, séculos de opressão podem ser perdoados, e um novo contato, uma nova visão, podem ser reestabelecidos. No fundo, somos todos iguais, e é através desses espelhos entre nós que a luz do espírito tem sua chance de irradiar-se adiante, uma vez mais:

Veja também outros clássicos do Mawaca, ao vivo:

» Ciranda indiana (Brasil/Índia)

» Cangoma me chamou (África/Brasil)

» Lamidbar (Israel)

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22.3.12

Comentário: o que é Deus?

Comentário das respostas da pergunta “o que é Deus?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.

[Raph] Alguns leitores se perguntaram qual seria a minha própria resposta para esta e outras perguntas da série, mas a minha intenção não era propriamente responde-las (até mesmo porque algumas delas não têm exatamente uma resposta), e sim iniciar uma reflexão, uma nova gama de pensamentos, um debate proveitoso e respeitoso sobre os temas que, por alguma estranha razão, volta e meia são taxados de polêmicos. Às vezes, até mesmo de tabus.

Com o tempo, eu passei a compreender em parte o motivo pelo qual a maioria das pessoas se sente desconfortável quando alguém chega para elas e diz: “Deus é assim”; ou “Deus é desse jeito”; ou “Aceite Deus como dizemos que é, e será salvo”; ou até mesmo “Não existe Deus, não creia nessa grande bobagem”... Talvez seja mais simples me fazer entender evocando a própria linguagem, pois é afinal apenas através dessas cascas de sentimentos, as palavras, que tentamos compreender e nos comunicar uns com os outros. E a linguagem é muito proveitosa e útil em inúmeros casos – é sempre bom falarmos em “rua” e “avenida” quando queremos saber de algum endereço; ou em “comida” e “restaurante” quando estamos famintos no meio da cidade. Em outros casos, entretanto, a linguagem nem sempre é o suficiente – falamos em “liberdade”, “disciplina”, “justiça”, “Deus”, etc., e as pessoas prontamente pensarão nos conceitos (subjetivos) mais distintos, em alguns casos até mesmo opostos uns dos outros.

Substituamos, então, a palavra “Deus” por “amor”, e temos afirmações desse tipo: “O amor é assim”; ou “O amor é desse jeito”; ou “Aceite o amor como dizemos que é, e será salvo”; ou até mesmo “Não existe o amor, não creia nessa grande bobagem”... Sim, é um exercício proveitoso, mas devemos tomar cuidado com esse jogo de linguagem. Se, por um lado, cada um tem sua própria visão de Deus, e do amor, e do Cosmos, e da vida, e da natureza, etc., há uma boa razão para todas essas palavras terem sido nalgum dia criadas, e não serem uma mesma ideia, um mesmo conceito. Não são. O que eu queria dizer ao associar Deus com o Cosmos ou, agora, com o amor, não é que tais conceitos são a mesma coisa, mas pelo contrário: que assim como cada um tem sua própria visão deles, mesmo quando falamos em uma só palavra – “Deus” –, ainda assim essa divergência, essa interpretação subjetiva, própria de cada um, persiste.

É exatamente por isso, por não existir um único Deus enquanto conceito, mas sim o Deus de cada um, que eu aprendi que é bem melhor iniciar uma conversa sobre este assunto com uma pergunta, e jamais com uma afirmação: pergunte “o que é Deus para você?”, mas jamais diga “Deus é desse jeito” ou “Deus existe” ou “Deus não existe”... Depende de cada um, de cada visão específica do Cosmos sobre si mesmo – nenhuma digital em 7 bilhões é igual, nenhuma mente é igual, nenhuma crença (subjetiva) é igual. Os radicais e dogmáticos são aqueles que pretendem que acreditemos que todos podem efetivamente pensar igual, num mesmo conjunto de regras morais infalíveis, seguindo manuais de verdades absolutas – mas a única verdade absoluta que existe é que existe algo, e não nada. O resto, todo o resto, é apenas derivado desse fato extraordinário, desse mistério inefável, infinito: existe algo, isto tudo a nossa volta, isto tudo dentro de nossa mente, é parte disso, é parte do Cosmos, é parte de Deus, não é nada, jamais foi ou será nada...

Mas, então, não estamos realmente falando do Deus antropomorfizado, reduzido a nossa semelhança, que parece ter personalidade e desejos específicos, que parece ser um ser, um deus pessoal. Estamos nos aventurando a um infinito maior, a origem de todas as coisas, ao que mantém a ordem e harmonia de todo o Cosmos, da mais ínfima informação subatômica ao mais vasto agrupamento de galáxias a vagar pelo tecido do espaço-tempo. Estamos falando de uma força, ou de várias forças irradiadas de uma só. Estamos falando de um Deus que parece ser um Todo, um deus impessoal, incriado, mas que tudo mais irradiou a partir de si.

E, se ao engendrar o conceito de tal Deus substância, a substância que não pode criar a si mesma, Espinosa se preocupou em estabelecer um Deus em oposição aos demais, isso até tem sua relevância, mas é muito pequeno perto da magnitude de nos aventurarmos nessa viagem, nesse caminho de horizonte sem fim, dessa tentativa de sondar a mente do Cosmos. Podemos dizer, sem dúvida, que aqueles que creem nesse Deus-Substância são em realidade ateístas, pois o próprio termo “ateísmo” admite inúmeras interpretações. Mas não podemos imaginar que apenas um rótulo incerto como esse (“ateísta”, “espinosista”, “panteísta”, que seja!) sirva para que ignoremos o assunto, evitando ter de nos aproximar do pensamento alheio, como se o pensamento alheio fosse alguma espécie de vírus capaz de nos afetar as ideias e nos fazer abandonar nossas próprias crenças ou descrenças.

Quem sabe, afinal, o que é Deus? Seja uma entidade descrita por livros infalíveis, seja um conceito filosófico além de nossa atual compreensão, seja um grande acaso cósmico, nada disso é definitivo, pois nada disso encerra a ideia. A única coisa de que sabemos é que ainda não sabemos responder a tal pergunta e, segundo os agnósticos, talvez jamais possamos respondê-la. Mas, alguns de nós também sabem de outra coisa, que passa desapercebida da maioria: que quem têm de responder somos nós, juntos!

Se vamos usar a Deus como um Deus-Barreira, se interpondo entre aqueles que pensam como a gente, e aqueles que discordam de nós, estaremos fazendo, talvez, o uso mais vil e pernicioso deste conceito tão abrangente, infinito, iluminado... Melhor seria aprender com Espinosa (e Einstein, e os estóicos) e imaginar um Deus-Substância a irradiar-se por tudo o que há, que foi, e será. Um Cosmos que talvez tenha mesmo possibilitado a vida consciente para que a própria consciência pudesse visualizar esta luz, esta beleza, esta harmonia infindável. É pensando nisso que nos conectamos a eternidade. É pensando nisso que despertamos, passo a passo, nossa intuição, nossa consciência, nosso amor... É pensando nisso, enfim, que percebemos quanta felicidade, quanta alegria, quanta sabedoria, nos esperam no caminho de volta.

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» Veja também o artigo "Teísmos e ateísmos", que foi escrito inspirado por esse debate.

» Ver todos os posts desta série


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Crédito da foto: APOD

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21.3.12

Citações (4)

Algumas citações minhas e de outros autores. Elas geralmente já terão aparecido anteriormente na página do Textos para Reflexão no Facebook...


Quando os cosmologistas propuseram a teoria de que todo o universo se originou de um "ponto" menor do que um cubo de açúcar a bilhões de anos, sua teoria mereceu um nome de chacota: o Big Bang! Mas eles estavam certos, e o nome funcionou bem. De uma "explosão" inicial, o próprio tecido do espaço-tempo vem se expandindo desde então, algumas áreas infladas a tanta velocidade que nem mesmo a luz poderá um dia chegar até elas: se o Cosmos é infinito ou finito, para nosso padrão tecnológico não faz muita diferença prática - jamais saberemos "do outro lado, onde a luz jamais chegará".

Segundo o Caibalion, "o todo é mental": o universo originou-se de um pensamento, que não dependia de nada "de fora" para existir. Segundo Espinosa, o espaço-tempo nada mais é do que a substância "que não pode criar a si mesma, e que tudo o mais irradiou"... Mas qual seria o "combustível" de tal pensamento? Qual seria a "mola" que fez essa substância "explodir" em tudo o que há?

Pessoalmente, até hoje só me deparei com uma ideia, um conceito, uma espécie de fogo que jamais finda, e que quanto mais queima, mais cresce... O amor é fogo que arde sem se ver, que a tudo incendeia, e queima, mas jamais destrói: renova e engrandece!

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Certamente não nascemos santos, mas nascemos um tanto distantes da visão do Pecado Original. E não custa lembrar: se todos os oprimidos, os marginalizados, os miseráveis, os favelados, fossem naturalmente violentos e assassinos, boa parte do mundo estaria em guerra, e o Rio de Janeiro seria uma região semelhante, ou pior, a regiões em guerra, como o Iraque e o Afeganistão do início do século.

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Ser imperador não de territórios, mas de si mesmo. Que conquistar o mundo e estender um império até que o sol jamais se ponha nada significa, se em nossa alma o sol ainda sequer nasceu.

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Palavras são apenas cascas de sentimento, elas não explicam tudo... Mas é extraordinário que consigam, de alguma forma, passar algum sentimento inexplicável adiante.

Então, não se preocupe propriamente em explicar, sentir é o mais importante!

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A única certeza que temos todos é a de que a morte não existe: o máximo que pode existir é vida após a vida. E, em não existindo uma continuidade, a morte também é nada. No entanto, há muitos de nós que vivem como se estivessem mortos, sem o pleno domínio de sua vontade, imaginação, intuição, liberdade, etc. A esta “morte” poderíamos chamar estagnação – e a Natureza detesta estagnação, daí que a dor é o melhor remédio para aqueles que temem simplesmente amar.

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Talvez a principal razão do período de depressão no final do ano se deva a crença de que "nossa chance de ser feliz neste ano terminou"... E talvez ajude lembrar que há sempre tempo de recomeçar.

Assim como toda noite precede uma nova manhã, todo fim de ano em realidade não é o final de coisa alguma. Creia nisso e saberá. Saiba, e passará a perceber cada novo raio de sol, cada nova brisa, como algo essencialmente renovado, essencialmente vivo.

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É estranho as pessoas não quererem saber sobre o presente, de cuja existência ninguém pode duvidar, mas estão sempre ansiosos para saber sobre o passado ou o futuro, ambos desconhecidos. O que é nascimento e o que é morte?

Por que ir ao nascimento e à morte para entender o que se experimenta todos os dias ao dormir e acordar? Quando dormimos, este corpo e o mundo não existem para nós, e essas questões não nos preocupam e, contudo, existimos, o mesmo eu que existe agora quando estamos acordados.

É quando acordamos que temos um corpo e vemos o mundo. Se entendermos o acordar e o dormir apropriadamente, entenderemos vida e morte. Mas o acordar e o dormir acontecem todos os dias, então as pessoas não percebem como é maravilhoso, e só querem saber sobre nascimento e morte.

Ramana Maharshi, que nunca escreveu nenhum livro

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Crédito da imagem: Cameron Davidson/Corbis

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20.3.12

Citações (3)

Algumas citações minhas e de outros autores. Elas geralmente já terão aparecido anteriormente na página do Textos para Reflexão no Facebook...


Eles tentam te convencer que existem apenas os "08" e os "80":

Os crentes fervorosos, os "08", que acreditam que tudo que há, e todas as espécies de vida, surgiu de uma só vez há alguns milhares de anos, que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, que Deus é um velho de barba muito branca, senhor dos exércitos, que necessita que o aceitemos para que possamos sentar junto dele em um Céu de ócio eterno...

Os ateus "altamente racionais", os "80", que sabem (ou tem convicção, ou qualquer coisa, menos fé) que todas as espécies de vida surgiram de um ser unicelular primordial, que se desenvolveram através de uma seleção "aleatória" ao longo de bilhões de anos, que não existe Deus nem alma nem mente, que tudo é matéria, e somos tão somente máquinas celulares complexas...

Muita calma nessa hora! Entre 8 e 80 existem pelos menos mais uns 72 caminhos e, quem sabe, exista até mesmo o caminho "81". É chato ter de admitir que não podemos classificar todas as pessoas e todas as crenças (ou convicções, ou sabe-se lá o que) em apenas dois grupos, mas é assim que a Natureza opera. 

Quem está no meio do caminho, também pode estar em todos os caminhos ao mesmo tempo, e em nenhum deles.

***

Hoje em dia é muito simples armazenar e divulgar informações, mas na pré-história nossos sábios ancestrais eram obrigados a confiar apenas na memória, na tradição oral e em alguns parcos registros pictóricos em cavernas guardadas aos iniciados. Não porque se tratasse de uma “elite” que queria guardar o conhecimento para si, mas exatamente o oposto: por se tratar de seres que tanto valorizavam o conhecimento, que os “inseriam” na mitologia, pois que sabiam que apenas a mitologia iria sobreviver àqueles tempos inóspitos (inclusive antes da invenção da escrita).

***

Primeiro o racionalismo relegou toda mitologia arcaica há mera superstição, porém, ao se deparar com os mistérios da mente humana, foi obrigado a elaborar teorias acerca não somente da origem dos mitos na pré-história, como da razão de eles permanecerem “vivos” até os dias atuais. Enquanto o próprio Joseph Campbell, com sua teoria do Monomito, teoriza que toda a mitologia humana se concentra em ideias universais da psique, Carl Jung fala em um Inconsciente Coletivo, e mesmo Richard Dawkins elaborou o conceito dos Memes. Nenhuma dessas teorias é “comprovada”, mas alguns dos materialistas eliminativos, a despeito de sequer acreditarem na existência de uma mente humana, curiosamente adotaram os Memes como uma “teoria quente”.

***

Embora os conhecimentos gerais, assim como as regras básicas de convívio em sociedade, possam e devam ser ensinados a todos, é inútil pretender que pessoas são como computadores de informação, e não como seres sensíveis, capazes de interpretar o mundo a sua volta, capazes de uma vontade própria, particular. Enquanto o sistema educacional continuar tratando seres como máquinas, a arte e a filosofia terão grande dificuldade em aflorar, e a ciência se reduzirá aos “mandamentos da Academia”.

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Dogmáticos podem pensar que o sentido da vida já está muito bem descrito em seus manuais de verdade absoluta ou códices de ciência infalível. Porém, na medida em que o sentido da vida é pessoal e intransferível, o sentido da sua vida, e de ninguém mais, o dogma é apenas uma represa para um rio que busca, eternamente, desaguar no oceano da liberdade.

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Charles Russell, o primeiro presidente das Testemunhas de Jeová, "profetizou" que o mundo acabaria em 1914. Você pode achar que ele se equivocou, mas há algumas Testemunhas que creem que o mundo já acabou, e que temos desde então vivido uma ilusão em alguma espécie de inferno, ou purgatório, ou algo parecido... Tais Testemunhas creem que o mundo é uma ilusão, e somente nossas almas existem.

Os materialistas eliminativos são filósofos da mente que creem piamente numa ideia radical: a de que a própria mente, nosso senso de um "eu", a consciência e tudo mais, nada disso existe realmente. Tudo se reduz, em realidade, ao tilintar neuronal do cérebro humano, segundo esta crença "peculiar"... Tais materialistas creem que o "eu" é uma ilusão, e somente a matéria existe.

Penso eu que tais interpretações do mundo são igualmente radicais, e igualmente equivocadas... Mas pelo menos as Testemunhas admitem que se baseiam inteiramente na fé, enquanto alguns dos materialistas eliminativos creem piamente que são absolutamente racionais, que não possuem fé alguma.

Para uns, o que existe são apenas as almas de Deus. Para outros, o que existe são apenas as partículas do Acaso.

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Crédito da imagem: Erika Koch/Corbis

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16.3.12

Nada a temer, nada a duvidar

Yorgana era médium firme, experiente, daquelas que parece já ter ido ao inferno e retornado para contar história, sempre com um sorriso, ou um meio sorriso, pela face nem mais tão jovial. Tomé estava ali, apreensivo, para observar e aprender...

Após a oração inicial, as luzes foram apagadas e as pessoas entraram em meditação, tanto na mesa grande quanto nas cadeiras em torno. Tudo o que se ouvia, a princípio, era o barulho dos dois ventiladores velhos e desgastados, que já aliviavam o calor daquele centro espírita há uma boa década ou mais. Tomé ansiava pelo que estava por vir, e logo alguns começaram a gemer e se contorcer e reclamar. Como sempre, Yorgana estava lá para oferecer conforto aqueles que foram convidados, de tão longe, aquele recinto de luz:

“Está tudo bem minha filha, quer me dizer alguma coisa?” – Dirigiu-se, sussurrante, a senhora que meditava na cadeira a sua frente.

De início não houve resposta, e exatamente por isso que alguma coisa parecia estar a ocorrer... Logo, aquela senhora pacata e serena tinha ido embora, alguém irrequieto e angustiado tomou o seu lugar:

“Ai! Ai! O que eu estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Tá dolorido... Minha cabeça dói, tem insetos no meu corpo, tira isso, tira eles, me tira daqui!!”

Yorgana trouxe suas mãos para próximo da cabeça da senhora (ou quem quer que estivesse ali agora), e continuou serena, quase carinhosa:

“Calma... Calma! Vamos respirar mais devagar, assim, comigo, vamos...”

E o que se seguiu foi uma verdadeira luta para que a senhora conseguisse passar a respirar mais lentamente, no ritmo que a médium demonstrava, expirando e inspirando profundamente o ar seco do ambiente.

“Vamos, vamos... Assim comigo. Inspira, segura um pouco, expira... Calma que aqui são todos seus amigos...”

“Amigos? Não, eu não tenho amigos... Não aqui, principalmente aqui... Que lugar estranho é esse, porque me trouxeram? Porque, isso não tem nada a ver comigo... Eu não pertenço aqui, ninguém vai me aceitar aqui...”

“Isso já é contigo. Primeiro, você é quem precisa se aceitar... Você está aqui, é verdade, só por um tempo, e pode ficar tranquila que logo logo volta para onde veio... Você foi convidada... É, digamos assim, um certo privilégio, pois nem todos têm a oportunidade de vir a essa casa de cura.”

“Cura? Mas como você vai me curar de toda essa dor? E esses malditos insetos que não me largam! Me ajude então, se gosta de mim...”

“Só se você também abrir uma brecha para gostar de si... Vamos, esqueça o que te deixou nesse estado, há sempre tempo de recomeçar... Vamos, inspire comigo e imagine a cor azul, o ar sendo de um azul tão puro, que entra na sua cabeça e ajuda a limpar, e limpando vai levando a dor embora, e daí você expira essa dor, essa coisa ruim aí dentro, e isso tudo sai de você na cor vermelha... Deixa o azul entrar, deixa o vermelho sair... Deixa entrar, deixa sair... Isso... Isso, tá melhorando não tá?”

“Tá melhorando a dor, sim... Que coisa incrível, há tanto tempo que doía que eu nem sabia mais como era estar assim... Os insetos não picam mais meus braços, minhas pernas...”

“Isso, isso mesmo... Mas continua, continua imaginando as cores, continua inspirando, expirando... Eu poderia te ajudar só aqui, mas não sei quando vai poder voltar, e pode continuar fazendo isso onde quer que esteja, basta lembrar: deixa o azul entrar, deixa o vermelho sair... E se acalma, e se perdoa, e dê uma chance a si mesma de recomeçar.”

“Isso... Isso é maravilhoso! Mas eu não sei se vai funcionar onde eu moro... Lá é tudo tão gelado e úmido, o ar é ruim, o céu é escuro, não tem ar azul por lá...”

“Tem ar azul em tudo quanto é lugar... Vou te contar: o que você acha que é o ar que entra azul e sai com sua dor vermelha?”

“Algum ar que só existe aqui nessa casa de santos... Eu preciso ficar aqui, me deixa, me deixa ficar!!”

O atendimento estava acabando, e Yorgana tinha só alguns segundos:

“O ar azul, é Deus. Ou você imaginou que nalgum dia estranho poderia realmente estar fora Dele? Ele está em todo lugar, mais próximo que o seu pensamento mais querido, porém tão distante quanto a sua culpa mais profunda... Se perdoe, vá em paz, há sempre tempo de recomeçar. Adeus!”

***

Após a cantoria ao final da sessão, Tomé estava ainda enxugando as lágrimas. Ele havia sentido de perto, bem de perto, toda a dor e angústia, todo o caos mental naquela senhora, ou no que quer que a tenha visitado ali. Alguém que sofria imensamente, mas que foi consolada. Alguém que pareceu, depois de muito tempo, enxergar uma vez mais a luz ensolarada da esperança...

Ele tinha de perguntar a Yorgana:

“Nossa, como você atendeu bem, firme! Como você faz para ter as palavras certas nesse momento? Você não fica com medo do que pode aparecer? Você não... Duvida do que está ocorrendo?

“Eu nunca sei o que virá, e certamente fico apreensiva, e certamente tenho dúvidas acerca do ocorrido... Se foi realmente alguém que apareceu, se era uma memória antiga, algum distúrbio mental, alguma personalidade trancafiada que pôde finalmente vir a tona... Quem vai saber?”

“Mas, na hora você...”

“Na hora, não era eu. Era algo acima de mim, algo que me toma e que me faz ser alguém maior, alguém que tão somente deixa a luz do alto passar, o mais límpida possível... Na hora, não há nada a se temer, nem nada a se duvidar. Na hora, eu apenas amo, e o amor faz o resto. E, Tomé, não há como se temer o amor, não há como se duvidar dele.”

raph’12


Agora vou viajar, até breve...

***

Crédito da imagem: Fraternidade Espírita Monsenhor Horta

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14.3.12

Tagore Play

» Parte da série: Play a myth

Se o mito existe fora do tempo, há alguns raros artistas que souberam falar diretamente ao reino da alma. Suas obras influenciaram e sensibilizaram tantos de nós que, mesmo após o fim, tornaram-se mitos de si mesmos, habitando nosso imaginário. Que viver na memória daqueles que nos amam é viver como um ser imortal. E, se algumas velas foram apagadas pelo tempo, não há nada capaz de extinguir a lembrança perene de sua luminosidade...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Obs: Esses foram os 6 artistas, os próximos serão os santos...

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13.3.12

Xamãs ancestrais, parte 3

« continuando da parte 2

Xamã é um termo de origem tungúsica, que nessa língua siberiana quer dizer, na tradução literal, "aquele que enxerga no escuro". Os xamãs são os portadores da função religiosa na tribo, que podem entrar em um estado extático, “voar” para outros mundos e ter acesso e contato com seus aliados (animais, vegetais e minerais), seres de outras dimensões e os espíritos ancestrais. Apesar de ter surgido na Sibéria, o termo “xamanismo” se aplica atualmente a práticas espiritualistas em vários pontos do mundo, tanto no espaço quanto no tempo.

Isso tudo está apenas na sua mente

Sigmund Freud, quase todos no Ocidente o sabem, foi o fundador da psicanálise. O que talvez muitos não saibam é que a própria psicanálise talvez deva sua origem a uma droga que nos dias atuais é ilegal em quase todo o mundo...

Entre as idades de 28 e 39, por onze anos, Freud utilizou regularmente a cocaína em sua forma de alcaloide, em pó (diluída em água). Como jovem neurologista, essa foi sua primeira tentativa experimental fora da prática médica tradicional. Ele estava buscando o reconhecimento público capaz de gerar a clientela que lhe traria fama e recursos financeiros permitindo, assim, que se casasse com sua noiva, de quem estava separado havia dois anos. Durante esse período, Freud publicou três artigos importantes e fez uma apresentação para a Sociedade Psiquiátrica de Viena sobre os usos terapêuticos da cocaína. Embora esse experimento não tenha atingido suas expectativas, e seus artigos sobre a cocaína nunca tivessem aparecido em seus escritos publicados, esses estudos fizeram de Freud, na verdade, um fundador da psicofarmacologia e, provavelmente, influenciaram seu trabalho com os sonhos e o inconsciente.

Freud acreditava que a cocaína era fundamental para curar as “doenças da alma”, mas com o tempo se apercebeu de seu seus perigos, quando verificou que seus pacientes, e ele mesmo, estavam ficando viciados na substância. Foi a partir dessa experiência, entretanto, que Freud se concentrou em alcançar novamente algumas daquelas reflexões e pensamentos de quando era influenciado pela cocaína, porém apenas com a própria mente, e a linguagem correta: a droga não era mais necessária, estava fundada a psicanálise.

Nos dias atuais, após meio século de uma Guerra as Drogas que parece ter gerado apenas mais e mais violência em todo o mundo, substâncias como a cocaína são demonizadas: não são tratadas apenas como um psicotrópico perigoso, mas como uma espécie de “pó do inferno”, algo que, uma vez consumido, nos condenará eternamente a carregar a alcunha de “drogados”, sem jamais, jamais, sermos capazes de dia sequer retornar ao que éramos antes. No fundo, sabemos que não é bem assim, mas, não obstante, essa é a crença generalizada, embutida em nossa mente pela mídia mundial, particularmente a americana, e da qual é realmente difícil escapar.

Longe de mim querer aqui relativizar o perigo da cocaína e outras drogas (já a cannabis, poderia muito bem ser legalizada). Na verdade, eu nem posso falar com tanta propriedade do assunto: nunca usei droga alguma além do álcool, ao menos nessa vida... Mas, talvez estejamos pegando pesado demais com a cocaína e outros psicotrópicos. Afinal, quem somos nós para julgar o que mesmo um papa recomendou com grande entusiasmo?

O Vin Tonique Mariani, ou Vin Mariani, era um vinho misturado com cocaína (também diluída em água), criação do químico francês Angelo Mariani, que era uma bebida bastante popular no fim do séc. XIX. Popular ao ponto de ter sido regularmente consumida por pelo menos dois papas da Igreja de Roma... O Papa Leo XIII chegou ao ponto de participar de uma campanha de publicidade da época, como “garoto propaganda” do grande Vin Mariani. Será que, por ser o papa, ele estaria livre do inferno ao consumir cocaína?

Gostemos ou não, o ser humano sempre teve, ao longo de toda a história, uma relação muito íntima com as drogas e todo o tipo de substância psicoativa... Como vimos anteriormente na série, é bem capaz de a própria pré-história, antes das civilizações e da escrita, já ter registrado práticas de consumo de drogas. Práticas essas que, bem controladas e devidamente classificadas como “sagradas”, podem mesmo ter dado origem a boa parte de nossa mitologia, magia, arte e religião.

Não eram, de fato, absolutamente todos os xamãs que usavam dessas substâncias. Na verdade, sabemos que muitos deles desenvolveram outros tipos de técnicas para alcançar seus estados de transe e consciência alterada, sua experiência mística. A lógica parece nos dizer que, entretanto, existe aqui uma proporção inversa em jogo: quanto mais consumimos substâncias psicoativas, mais facilmente conseguiremos alcançar os estados extáticos, porém mais árdua e complexa será nossa compreensão acerca do que efetivamente ocorre neles, na viagem para dentro de nós mesmos. Da mesma forma, quanto menos nos valemos de substâncias psicoativas, mais árdua e desgastante será nossa prática mental até que consigamos alcançar tais estados místicos “por nós mesmos”, apenas pelo uso da própria mente, mas por outro lado, tanto mais simples será nossa compreensão acerca do que ocorre dentro da mente. Freud parece, portanto, ter começado pelo primeiro método, e depois ter preferido o segundo. Talvez seja só isso mesmo: questão de preferência. Eu estou com Freud.

Ainda assim, há muitas questões que permanecem em aberto: porque, afinal, nossos ancestrais gastavam tanto tempo e energia nessas tentativas de adentrar “dimensões ocultas” dentro de suas próprias mentes? No que exatamente isso auxiliava em sua sobrevivência? Porque, afinal, tal prática estranha parece um dia ter sido comum em todas as partes do globo onde houvessem caçadores-coletores a caminhar pela terra, os pais e as mães de todos nós, os humanos...

Os signos da arte rupestre, com similaridades encontradas em sítios na Europa e na África, distantes não apenas no espaço, mas em milhares de anos no tempo, talvez nos deem alguma pista do que nossos xamãs ancestrais buscavam. Em seu extensivo estudo [1], Graham Hancock lista alguns dos pontos em comum: (a) As pessoas ou seres podem ser parte animal, parte homem, e podem se transformar plenamente em animais; (b) Certas pessoas ou seres são, às vezes, empaladas por lanças, flechas ou arpões quando estão se transformando em animais (os “homens feridos”); (c) Animais podem se transformar em outros animais ou aparecer como híbridos de duas ou mais espécies, e alguns podem ter a aparência distorcida, “fantástica”, inteiramente desconhecida do mundo natural (de qualquer época do planeta); (d) Há padrões geométricos, pontos, grades e zigue-zagues de linhas e “linhas-serpentes”, por toda parte; (e) A face da rocha onde a arte rupestre é encontrada é dinâmica e permeável, não como uma tela em branco, plana, a espera de ser decorada, mas muito mais como uma mescla em três dimensões entre a rocha e a arte, como se a arte também fosse, ali, um portal para uma outra dimensão, acessível apenas na contemplação daquele “local sagrado”.

Após ter encontrado tantas similaridades, Hancock partiu para uma tentativa ousada de explicar aquilo tudo, o que preenche boa parte de seu livro, e da qual não entraremos em maiores detalhes aqui [2]. Porém, talvez seja uma boa hora para refletirmos acerca do que os próprios xamãs afirmam que fazem em seu xamanismo, ou pelo menos daqueles xamãs que sobreviveram ao tempo. O importante é que seu relato é bastante similar ao que os xamãs san do século XIX disseram a Bleek e Lloyd [3]: (a) Entrar em contato com uma “realidade primordial”, espiritual, acessível através de alguma espécie de “sintonia mental” alcançada em certos estados extáticos; (b) Entrar em contato direto com ancestrais (já “mortos”, mas que vivem neste outro plano de existência), entidades, deuses, semi-deuses e seres “sobrenaturais” cujo conselho é informação inestimável para a sobrevivência da tribo; (c) Influência sobre o clima, particularmente na tentativa de produzir chuvas; (d) Influência e/ou identificação da movimentação de agrupamentos de animais que são caçados pela tribo nas redondezas; (e) Conhecimento de propriedades farmacológicas de ervas e plantas; e finalmente, talvez a mais importante: (f) Conhecimento e capacidade de cura de enfermidades físicas, psicológicas e/ou espirituais que afligem os membros da tribo.

Estariam os xamãs ancestrais totalmente certos, ou absolutamente equivocados, em todas essas práticas? Disso não temos como saber sem experimentar os mesmos estados extáticos... Mas, a lógica e o bom senso nos dizem: estavam mais certos que errados; Do contrário não estaríamos aqui para contar a história, não seríamos nós mesmos os seus descendentes, o seu presente para o mundo.

O Chefe Seattle, outro grande xamã, uma vez disse em sua carta ao presidente em Washington: “Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida - ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo”. Mas, o que é afinal essa teia, esse tecido de realidade que parece habitar tanto o mundo lá fora quanto a nossa própria mente? É possível, afinal, influenciar e interagir com o mundo lá fora, através de alguma ponta de teia que puxamos ainda dentro de nossa mente?

O cético escandalizado com tal possibilidade vai prontamente nos responder: “Isso tudo está apenas na sua mente!”... Mas, afinal de contas, e o que não está?


Nossa consciência desperta, normal, a qual chamamos de racional, nada mais é do que um tipo especial de consciência. Ao redor e sobre ela, separada pela mais fina das telas, há formas potenciais de consciências muito diferentes. Podemos atravessar a vida sem nem sequer desconfiarmos de sua existência. Mas, aplique o estímulo necessário e, ao menor toque, elas estão lá, em toda a sua inteireza... Nenhum relato do universo em sua totalidade pode ser tão definitivo que deixe essas outras formas de consciência inteiramente menosprezadas... De qualquer maneira, elas proíbem um encerramento prematuro de nosso acerto de contas com a realidade (William James, Variedades da Experiência Religiosa)

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Leitura recomendada: Sobrenatural, de Graham Hancock (Nova Era).

[1] Maiores detalhes no livro recomendado acima.

[2] Hancock prossegue em um longo, extensivamente detalhado e devidamente documentado relato de similaridades entre as experiências do xamanismo, os relatos de abdução por OVNIs (inclusive muitos séculos antes do século XX) e os relatos de encontros com seres mitológicos e do “reino das fadas”... Trata-se, talvez, de um “passo maior do que as pernas”, mas nada disso invalida o que vinha sido demonstrado desde o início do livro, particularmente o que foi resumido nas duas primeiras partes desta série.

[3] Ver parte 2 desta série de artigos.

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Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (Papa Leo XIII recomenda o Vin Mariani); [ao longo] Imagem criada a partir de imagem compartilhada no Facebook

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10.3.12

Sem Deus, tudo é permitido?

Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.

[Raph] O jainismo é uma das mais antigas e rigorosas doutrinas religiosas de nossa história. As histórias que falam em monges jainistas retirando pequenas larvas do solo antes de cavá-lo para plantar, de modo a não causar dano sequer aos menores seres visíveis da natureza, são, acreditem, bem mais reais do que anedóticas. Apesar de seu ascetismo extremo, e sua busca constante pela não violência, é perfeitamente possível ser um jainista sem crer em Deus ou quaisquer deuses.

Alguns defensores da ética religiosa afirmam que sem o devido temor a Deus, e/ou a promessa de um Céu Eterno, não haveria razão para que os homens fossem éticos e amorosos uns com os outros. O humanismo, pelo contrário, em todas as suas vertentes coloca o respeito ao próximo, e a sua liberdade de pensamento e ação, como a ética mais elevada e que, por si só, é sua própria recompensa, já que num sistema onde todos são humanistas, um Céu Eterno talvez nem fosse mais necessário – já estaria instaurado na própria Terra.

Mas, será que o humanismo e o jainismo são quase utopias, sistemas por demais rigorosos para que todos os seres humanos um dia se incluam neles? Ainda há espaço para ser otimista ante um mundo em intenso conflito, ou a intolerância, em todas as suas mais nefastas manifestações, tem vencido a batalha? Em suma: se Deus não existe, tudo é permitido? [1]

[Del Debbio] A ideia da Religião como ferramenta para o domínio dos povos é muito antiga. Os faraós se utilizavam destes artifícios para criar normas de conduta e moral para toda a população do Egito. Os judeus, através de Moisés, reorganizaram estes preceitos nos chamados “dez mandamentos”, que por sua vez, tornaram-se a base canônica para o grande pilar de dominação do ocidente, a Igreja Católica Apostólica Romana.

O medo de um Deus vingativo ou a punição eterna em um Inferno escaldante fazia com que as pessoas andassem na linha. Nem todos os Infernos eram iguais... Para os nórdicos, Hel era uma caverna de gelo onde os condenados passariam a eternidade no frio e com fome. Faz sentido. Se o inferno Nórdico fosse quente, todos iriam querer ir para lá. Assim, a idéia do símbolo do Inferno sempre foi “um lugar onde não gostaríamos de estar”.

Para os ocultistas, a idéia do Inferno nunca passou de um símbolo abstrato, porém, para a população geral, vigora até os dias de hoje a ideia de uma troca no estilo Pavlov, onde as pessoas deveriam ser boas para irem para o céu e se forem contra os preceitos de algum dos livros sagrados, irão para o colo do capeta ou algo parecido.

Mas e quando esta ideia parece cada vez menos coerente com o mundo ao nosso redor? Símbolos podem se dar ao luxo de serem monstruosos, angelicais, fantásticos e impressionantes pois são, afinal de contas, símbolos. Mas quando religiosos fanáticos utilizam-se destes símbolos como se fossem coisas literais, esta visão começa cada vez mais a não fazer sentido em confronto com a realidade.

E quando não existe mais uma cadeia? Observamos recentemente em Salvador-BA o que acontece com a nossa civilização quando a polícia entra em greve por uma semana. O que aconteceria com o mundo se as pessoas, no grau de evolução mental que estão, soubessem que não há inferno ou punição para elas aguardando no final de suas vidas?

Creio que as religiões, mesmo as dogmáticas, servem como um freio enquanto a humanidade evolui lentamente e um dia não precisaremos mais de nenhuma delas. O estudo da espiritualidade em conjunto com o Humanismo e o respeito à natureza, livre de qualquer dogma ou preceito religioso ou materialista, será o caminho evolutivo natural para a espécie humana.

Para o alquimista, não faz a menor diferença se existe um Deus ou não. As ciências herméticas são a busca pelo autoconhecimento – descobrir qual é a própria Verdadeira Vontade e exercê-la em prol da evolução da humanidade como um todo. Vejamos o ateu: se é sincero em seu coração, não há diferença para um alquimista senão a dos símbolos e metáforas utilizados.

O trabalho de um magista é aperfeiçoar-se até o máximo que puder. A interação perfeita da ciência com a religiosidade. Todos já ouvimos diversas destas alegorias: “Transformar o chumbo (do ego) no ouro (da Essência)”, “Desbastar a Pedra Bruta”, “Transformar Carvão em Diamante”, “Encontrar a Pedra Filosofal”, “Tirar as ervas daninhas para que as rosas floresçam no Jardim”, e outras.

Através da Alquimia, uma vez que cada pessoa trabalhe seus Vícios e os transforme em Virtudes, chega-se ao exato mesmo princípio do Humanismo ou do Jainismo (que nada mais são do que vertentes da mesma filosofia do “ama ao próximo como a ti mesmo”). Se existir um céu e um inferno, os alquimistas estarão preparados. Se não existir, fizeram o melhor que puderam dentro do espaço de suas vidas; se existir uma vida após a morte, continuarão da onde pararam aqui...

[Mori] Há alguns anos traduzi um fabuloso ensaio de Eric Raymond sobre “o mito do homem assassino”, que resumo em seguida. É a crença de que os seres humanos são animais unicamente violentos, escassamente contidos de cometer atrocidades uns aos outros pelas restrições da ética, da religião e do estado. Parece estranho questioná-lo, com as trágicas notícias com as quais somos bombardeados, mas basta analisar o animal humano com os olhos um tanto mais distantes de um observador do mundo natural para chegar à constatação de que não somos seres especialmente violentos.

O estilo de luta instintivo que desenvolvemos, por exemplo, nos impede de ferir seriamente uns aos outros, direcionado especialmente a empurrões e socos em áreas duras como cabeça ou tórax. Eles podem deixar o oponente inconsciente, mas as chances de que o matem são muito menores do que se mirássemos em partes moles e vitais, como artistas marciais aprendem a desenvolver mesmo em um único golpe fatal. É preciso treinamento para transformar um homem comum em um assassino, e isto mesmo quando este homem é equipado com uma arma de fogo: ao redor de 70% das tropas em sua primeira situação de combate é incapaz de disparar contra o inimigo. É preciso treinamento e intensa ressocialização para suprimir nossos instintos e criar soldados capazes de matar sob comando.

E comando é justamente o alerta de Raymond. O mito do homem assassino é promovido justamente por aqueles em comando, segundo os quais precisamos ser salvos de nós mesmos através da uma disciplina rígida com punições rigorosas que nos separaria da selvageria, quando a evidência histórica e comportamental indica que as maiores selvagerias são praticadas justamente sob comando e disciplina rígidas de um grupo contra outro. Nosso maior medo não deveria ser nosso suposto instinto assassino latente, aquele que é visto na prática apenas em uma pequena parcela da população, comumente surgida como parte, ainda assim minoritária, de grupos intensamente oprimidos. E que, não por coincidência, criam suas cadeias de comando e controle social próprias, e ainda mais rígidas.

Nosso maior medo deveria ser justamente o controle e manutenção de uma hierarquia e controle social estritos que exploram um instinto que a maioria de nós realmente possui: a obediência cega a figuras de autoridade. Sejam elas presentes na terra, sejam elas aquelas fictícias no céu, que podem ser ainda mais perniciosas. Em nome de deus, a autoridade última, tudo é permitido.

Tememos os perigos errados. Apesar disso, há motivo para otimismo porque a ignorância, a intolerância e a violência não estão vencendo a batalha. Somos hoje sete bilhões de seres humanos. Nunca tantas vidas viveram ao mesmo tempo, tanto tempo, aproveitando tão bem o seu tempo. Em particular no Brasil, e mais especificamente sobre os leitores deste texto, podemos dizer que somos privilegiados com um padrão de vida superior aos dos mais abastados reis e conquistadores, dos mais bárbaros e selvagens, de apenas alguns séculos atrás. E não precisamos oprimir ou assassinar ninguém para tal – bem, ao menos não tão diretamente quanto eles, espero. Por gerações grandes pensadores sonharam com enormes arquivos de conhecimento, e grandes visionários imaginaram fóruns livres para a difusão e discussão de conhecimento. Você está em frente a esse sonho neste exato momento.

Este privilégio não foi alcançado por acidente. Nossos ancestrais não tão distantes talvez achassem que uma mulher, um negro, homossexual ou membro de uma minoria qualquer tendo acesso a esta rede de conhecimento hoje fosse um absurdo. A religião, o Estado, a sociedade, a tradição e os bons costumes ditavam tal. Do contrário, seria a selvageria. Hoje vemos que eles é que viviam em um mundo um tanto mais selvagem que o nosso, e se estudarmos um tanto da história recente descobriremos como essas conquistas valorizando cada vida humana foram resultado de longas batalhas. Muitas destas batalhas foram vencidas e, sim, vivemos em um mundo melhor. O mundo pode ser transformado para melhor, ele foi transformado para melhor, e ele deve ser transformado para muito melhor.

Há muitas outras batalhas a vencer. Não há nada muito rigoroso no humanismo – há vertentes específicas do humanismo com algumas definições mais rigorosas, mas valorizar a vida humana é um instinto natural do animal humano. Se você ri de um bebê gargalhando, se compartilha a dor da mera imagem de alguém se cortando, se em seus momentos mais irados pensa em dar um murro no rosto de um desafeto – e não em planejar como assassiná-lo com crueldade de fato – parabéns, você faz parte da maior parcela da espécie humana. Somos sete bilhões.


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Esta foi a sétima e última pergunta da série. Fica aqui um sincero agradecimento a generosidade e ao entusiasmo dos dois participantes... Espero que essas reflexões possam trazer luz a cientistas e espiritualistas, e a todos nós: humanos.

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[1] Eu estou, propositadamente, usando esta frase de Fiódor Dostoiévski fora de contexto, pois ela acabou se tornando uma frase relativamente conhecida na cultura popular, exatamente desta forma, e não na forma original, conforme consta em mais de um trecho da obra Os Irmãos Karamazov. Ironicamente, considerando-se o desenvolvimento da questão ao longo do livro, por fim temos uma consideração que tende claramente ao humanismo. Finalmente, é justo lembrar que o Deus em questão seria, muito provavelmente (ou aproximadamente), o Deus do Antigo Testamento da Bíblia.

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Crédito da foto: moodboard/Corbis

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9.3.12

Xamãs ancestrais, parte 2

« continuando da parte 1

Ayahuasca é uma bebida produzida a partir de duas plantas amazônicas: Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis. O nome significa, literalmente, a “Videira dos Mortos”. Os cientistas sabem que a ayahuasca produz visões, principalmente por ser rica em DMT, um alucinógeno de ação extremamente rápida. Entretanto, os xamãs ancestrais têm conhecimento considerável do que ocorre após bebermos a ayahuasca, enquanto os cientistas não, principalmente porque a maioria jamais experimentou.

Um antropólogo em Vênus

O tempo passa sem que eu tenha noção. Fecho meus olhos, e um grande desfile de visões subitamente se inicia... Começo a prestar atenção em uma imagem em particular, ou, mais exatamente, a uma área de meu campo visual interno, onde complexos padrões geométricos entrelaçados provam, numa inspeção mais cuidadosa, ser parte de uma grande serpente, aparentemente viva, com sua cabeça e sua cauda afastadas de mim. Posso distinguir as escamas individuais, retangulares, como janelas... Existe um círculo no centro de cada retângulo, círculos púrpura, girando como fogos de artifício, brilhando com a luz escura de um outro mundo onde agora estou... Aqui? Onde é aqui? Por que é um lugar onde vejo cores que não existem na vida cotidiana?

O xamã recomeça a entoar seu ritual. A cantoria inicia em tom mais baixo, mas aumenta, e aumenta... As serpentes são muito grandes, e todo corpo, da cabeça à cauda, é claramente visível para mim. Agora as cores castanho e amarelo predominam. Lendo sobre o assunto, antes de vir a Amazônia, aprendi que pessoas em regiões e culturas diversas, de todo o mundo, encontram serpentes na jornada da ayahuasca... Elas agora formam padrões de rodas e espirais entrelaçados, se fundem e depois se dividem em duplas individuais serpenteando em volta uma da outra, como a dupla hélice do DNA... A náusea chega com força e estou agora vomitando na escuridão...

Saio do círculo ritual e volto após vomitar, agora minha cabeça está aliviada. Então, de repente, dois seres completamente feitos de luz branca surgem a minha frente. São pequeninos – cerca de 1,20m de altura –, mas estou ciente apenas da parte superior de seus corpos, não vejo os pés. Sua faces têm mais ou menos o formato de um coração, com grandes testas e queixos estreitos e pontudos. Narinas e bocas, se é que as tem, são apenas fendas em suas feições suaves. Seus olhos são completamente negros e aparentemente sem pupilas... Eles parecem querer se comunicar. A tentativa de comunicação, que me parece telepática, não está funcionando por alguma razão. Sinto ansiedade e... frustração da parte deles. A náusea retorna, os seres de luz se vão, eu volto a vomitar na escuridão...

Os três últimos parágrafos são trechos (selecionados por mim) dos depoimentos de Graham Hancock [1], pesquisador e escritor britânico que resolveu participar dos rituais xamânicos de povos indígenas da Amazônia e de regiões da África. Em seu monumental Sobrenatural, Hancock parte da análise dos signos e símbolos pictóricos da arte rupestre para fazer uma associação fortuita desse tipo de imagem com as visões “psicodélicas” usualmente experimentadas em tais rituais, pelo menos por aqueles que efetivamente experimentam a ayahuasca, a iboga, e outras bebidas rituais que “trazem visões do outro mundo”. Esta associação não foi ideia original sua, mas sim de David Lewis-Williams, um professor, antropólogo e pesquisador de arqueologia cognitiva sul africano.

Segundo o modelo neuropsicológico de Lewis-Williams, a real origem da arte rupestre e, por conseguinte, da religião primal dos povos da pré-história, poderia ser mais profundamente explicada e compreendida se levarmos em consideração que o que estava sendo ali representado eram visões provenientes de estados de transe e consciência alterada, originários de experiências rituais extremadas (como danças até a exaustão e/ou a repetição de ritmos musicais durante horas e horas de ritual) e, principalmente, da ingestão de bebidas e substâncias naturais alucinógenas. Esta era, segundo sua teoria, a maneira mais simples e lógica de justificar o porquê da arte rupestre ter características tão enigmáticas, não encontradas na natureza, mas que estão representadas tanto em cavernas europeias quanto em inúmeras regiões africanas, distantes milhares de quilômetros, e milhares de anos na história, umas das outras.

Diferentemente das outras teorias propostas pelos antropólogos em quase um século, esta está baseada em evidências bastante sólidas... Que por muito pouco não se perderam para sempre.

Até 1927, ano em que foi dada a última permissão oficial para se caçar bosquímanos, era legal para os brancos da África do Sul assassinar os san, cujas partes dos corpos eram exibidas orgulhosamente como troféus pelos matadores... Não, os bosquímanos, os san, não eram animais, eram seres humanos, como nós. Na realidade, faziam parte de uma das culturas mais ancestrais e persistentes de nossa história, e até meados do final do séc. XIX, ainda praticavam a arte rupestre. Os san eram, portanto, os continuadores de um estilo de arte que perdurou por dezenas de milhares de anos, até que fossem praticamente extintos pelos “grandes colonizadores racionais”. Poderíamos saber, afinal, se a teoria de Lewis-Williams faz mesmo sentido, desde que encontrássemos algum xamã san ainda vivo, e que ainda conhecesse os antigos rituais que originavam as visões representadas na arte rupestre. Alguns xamãs, algum conhecimento, ainda restou, mas o povo san não é mais o mesmo – seu espírito se foi, e com ele, qualquer esperança para que a arte rupestre pudesse continuar sua longa jornada.

Felizmente, alguma evidência restou, mais precisamente cerca de cem cadernos com notas escritas a mão, descrevendo a cultura e os rituais do povo san no final do séc. XIX, quando ainda praticavam sua arte nas pedras e cavernas. As entrevistas foram conduzidas pelo filólogo alemão Wilhelm Bleek e sua cunhada, Lucy Lloyd, dois acadêmicos muito adiante do seu tempo, que anteciparam com muita clareza a aniquilação que então pairava sobre o povo e a cultura san. O conteúdo de seu estudo permaneceu oculto da Academia até a década de 1930, quando um jornal sul africano fez uma breve referência aos cadernos. Apenas em meados das décadas de 1960 e 1970 os cadernos foram novamente mencionados na mídia especializada, até que Lewis-Williams finalmente colocou seus olhos neles: “mas que estranha experiência, folhear 12 mil páginas de cadernos de notas ancestrais, sobrenaturais” – descreveu o antropólogo acerca do evento.

De posse dos registros de uma cultura ancestral perdida, Lewis-Williams finalmente tinha a evidência que faltava para talvez a única teoria científica sólida jamais postulada acerca da real origem dos signos rupestres. Ainda assim, quando Hancock encontrou pessoalmente com o professor sul africano, não resistiu a lhe indagar:

“Afinal, o senhor já experimentou entrar em transe por meio de danças e batuques ritmados de tambor, ou jejuou por 40 dias até delirar, ou tomou o chá da ayahuasca ou qualquer outra substância natural psicoativa?”

Diante da negação veemente, Hancock perguntou o porquê, e Lewis-Williams deu de ombros:

Não quero fundir minha cuca e não estou nem um pouco interessado na experiência.”

Vênus, com sua superfície uniforme e seu brilho incomparável no céu noturno, sempre despertou o sonho da humanidade. A estrela vespertina parecia, certamente, um céu prometido, um mundo de luz... Entretanto, hoje sabemos que sua superfície é inóspita e, na realidade, bem mais próxima dos lagos de enxofre do inferno. Assim, também sabemos, ocorre com as drogas: num primeiro momento são estupendas, maravilhosas, mas depois viciam, e podem nos levar a ruína psíquica... Por tudo o que sabemos acerca delas, não é difícil compreender os motivos que levaram Lewis-Williams a evitar os chás alucinógenos e os estados de transe.

A questão é: os povos antigos sabem muito bem desse perigo, e por isso mesmo jamais se utilizaram de suas plantas sagradas como diversão ou mera busca do prazer. Seus rituais sempre foram controlados, e seus xamãs sempre foram raros, escolhidos a dedo por sabe lá qual entidade... E, exatamente por isso, por terem sido tão poucos e tão especiais, hoje praticamente não existem mais.

Os xamãs ancestrais já se foram há muito, e nem mesmo entre os san restou algum. O espírito de um povo desaparece, e o deixa perdido, atordoado, procurando o suicídio, há menos que tal espírito retorne para os auxiliar, como a estrela da manhã... Mas não é fugindo de Vênus que vamos vislumbrar qualquer esperança de um dia os compreender melhor. Tal qual a ciência enviou sondas robô a estrela vespertina, e hoje a compreende muito mais do que há séculos atrás, os exploradores da mente não têm outra alternativa que não mergulhar neste outro mundo, repleto de serpentes, padrões geométricos, seres de luz e armadilhas na escuridão...

Mas, para tal, sondas e robôs não nos servem, precisamos realizar a travessia por nós mesmos. Graham Hancock teve a coragem de mergulhar no próprio lago em que empreendeu seu extensivo estudo – ele é o nosso antropólogo em Vênus.

» Na continuação: Quimeras mentais, homens feridos, e o delicioso Vin Mariani...

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Leitura recomendada: Sobrenatural, de Graham Hancock (Nova Era).

[1] Retirados do livro recomendado acima.

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Crédito das imagens: [topo] Susan Seddon Boulet (mulher xamã dançando em ritual); [ao longo] Pinturas do xamã peruano Pablo Amaringo, que serviu também como “guia” de Hancock nos rituais com ayahuasca.

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7.3.12

Nusrat Play

» Parte da série: Play a myth

Se o mito existe fora do tempo, há alguns raros artistas que souberam falar diretamente ao reino da alma. Suas obras influenciaram e sensibilizaram tantos de nós que, mesmo após o fim, tornaram-se mitos de si mesmos, habitando nosso imaginário. Que viver na memória daqueles que nos amam é viver como um ser imortal. E, se algumas velas foram apagadas pelo tempo, não há nada capaz de extinguir a lembrança perene de sua luminosidade...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Real World

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Ainda há esperança...

Quem tiver paciência de esperar 30 segundos, verá porque, apesar de tudo, ainda há razões para se ter orgulho de ser humano:

Prainha em Arraial do Cabo, Rio de Janeiro, 5 de Março 2012, 8h da manhã, aproximadamente 30 golfinhos nadam em direção da praia e, após encalgarem no raso, são salvos por frequentadores do local.

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Ainda há ignorância...

Difícil dizer o que pensavam os publicitários que criaram esta propaganda onde supostamente se exaltaria a diplomacia, a integração e união entre os membros da União Européia e o restante do mundo, mas onde, na prática, o resultado foi outro, absolutamente lamentável...

Entre acusações de racismo e imperialismo, o vídeo foi retirado do ar (passou na TV aberta na Europa) em menos de 24h, com um pedido de desculpas aos que "se sentiram ofendidos".

Racismo talvez não seja o problema primário aqui, mas apenas secundário. O imperialismo, este sim, nos faz lembrar da época negra medieval, das cruzadas e tudo o mais... Será que uma crise econômica é motivo suficiente para que as mentes da Europa voltem a se fechar, e a retroceder a tal ignorância tão antiga, tão fora de moda? Esperamos que esses publicitários não representem a opinião comum dos europeus:


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6.3.12

A Igreja do Livro Transformador

Hoje me filiei a uma nova Igreja; sou o mais novo fiel da Igreja do Livro Transformador:

A ideia foi concebida pelo escritor Luiz Ruffato primeiramente como uma brincadeira, onde as pessoas dariam seus testemunhos sobre os livros que deram outros rumos para suas vidas. Aos poucos a ideia foi ganhando mais forma e adeptos não só em eventos literários, mas também pelo Brasil afora, e vem sendo divulgada na web pelo site literário Interrogação.org.

Os fiéis desta distinta Ekklesia devem tão somente reconhecer que os livros mudaram sua vida, e dar algum depoimento acerca deste evento mágico... Então, aqui vai o meu:

Poderia citar em realidade 3 momentos distintos, igualmente mágicos, acerca do meu "despertar" para os livros nesta vida: o primeiro ocorreu ainda antes de eu saber ler, quando folheava quadrinhos de super-heróis (da Marvel e DC, publicados na época pela Ed. Abril) e compreendia alguma parte das histórias apenas admirando as figuras, isto quando não perturbava a paciência do meu pai para que ele lesse para mim; o segundo ocorreu quando li O Hobbit, de J.R.R. Tolkien, pela primeira vez, o que despertou em mim uma espécie de "espanto persistente" perante aqueles mundos fantásticos de pura imaginação, embora soubesse (e ainda saiba, espero) diferenciar muito bem a fantasia da realidade; o terceiro foi quando li o Fédon (ou Da alma), de Platão, e sentia claramente que estava tão somente relendo uma história muito querida, que já conhecia - daí foi um pulo para chegar aos outros grandes livros sagrados, a filosofia, a poesia e a divulgação científica. Se tem alguma coisa de material que possa realmente chamar de "tesouro", sem dúvida são os meus livros, assim como algumas histórias em quadrinhos memoráveis.


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5.3.12

Xamãs ancestrais, parte 1

Arte rupestre é o termo dado às mais antigas representações artísticas conhecidas, algumas datadas do período Paleolítico Superior (40mil a.C.), gravadas em abrigos ou cavernas, em suas paredes e tetos rochosos, ou também em superfícies rochosas ao ar livre.

A capela dentro da terra

Foi uma criança quem as viu pela primeira vez. Maria de Sautuola tinha apenas 8 anos, mas já havia entrado em uma ou outra caverna espanhola com seu pai, que era um arqueólogo amador – ou seja: que trabalha por amor. Por volta de 1870, muitas peças de arte portátil (ossos gravados, galhadas de cervo, marfim de mamute, etc.) foram encontradas em diferentes cavernas na França, sabidamente habitadas por nossos ancestrais do Paleolítico Superior, e era exatamente este tipo de objeto que Marcelino Sanz de Sautuola esperava encontrar naquela relativamente pequena caverna em Altamira, a 30Km de Santander, na Espanha. Não era a primeira visita de Sautuola a caverna descoberta acidentalmente por um capataz da propriedade de um latifundiário local, mas ele esteve sempre procurando objetos no solo, foi Maria quem primeiro teve a curiosidade de olhar para o alto, e as ver.

As pinturas rupestres nos tetos e paredes rochosas da caverna de Altamira estão entre as mais belas de toda a arte da pré-história. Alguns já a chamaram de Capela Sistina do Magdaleniano (período entre 16,5 e 14 mil anos atrás). Imaginem o espanto de Sautuola ao conceber pela primeira vez a dimensão daquela descoberta: bisões realisticamente salpicados por todas as partes da rocha, numa cor surpreendentemente viva a despeito dos milhares de anos passados desde que foram cuidadosamente pintados por artistas ancestrais. Como que espectros a flutuar no ar, eles parecem até hoje nos convidar a uma viagem há uma outra era – quando a alma humana estava presente em cada aspecto da vida, e era reverenciada como aquilo que há de mais sagrado, de mais profundo, de mais primordial...

Embora Sautuola estivesse absolutamente certo acerca da antiguidade da arte de Altamira, ele cometeu três erros quando foi tentar convencer os acadêmicos do final do séc. XIX: o primeiro era ser espanhol; o segundo foi descobrir a caverna na Espanha; o terceiro foi ser um arqueólogo amador. Todas as peças de arte do Paleolítico Superior haviam sido descobertas em cavernas francesas e, sem muita surpresa, as maiores autoridades acadêmicas eram francesas. Emile de Cartailhac e Gabriel de Mortillet eram, na época, os maiores nomes na área. Entusiastas da teoria de Darwin-Wallace e do racionalismo em voga, defendiam que a arte pré-histórica deveria obrigatoriamente ser de técnica e qualidade geral bastante inferior a arte mais moderna, como do Renascimento. Não poderia entrar na mente destes distintos senhores o fato de que nossos ancestrais poderiam pintar tão realisticamente, em cores tão vivas, em formas tão artisticamente impactantes, há dezenas de milhares de anos antes sequer da fundação da primeira civilização, antes da escrita, antes de quase tudo.

Disse Mortillet, tendo visto apenas reproduções das pinturas, sem jamais ter estado pessoalmente em Altamira: “Basta olhar para os desenhos e podemos ver que se trata de uma farsa, nada mais que um embuste. Eles foram feitos e exibidos para todo o mundo de modo que cada um possa dar uma gargalhada à custa dos paleontólogos e pré-historiadores que acreditariam em tudo”. Cartailhac se alinhou ao colega francês, igualmente sem jamais sequer ter viajado a Altamira, supôs com certa convicção que tudo não passava da obra de pastores cristãos da Idade Média, que gostariam que acreditássemos que os ancestrais do Magdaleniano veneravam, quem sabe, “deuses bisões”. Sautuola foi vítima de uma das maiores campanhas de difamação organizadas pela Academia. Segundo o seu neto relembrou já anos após sua morte, “todos os grandes cientistas europeus da época, liderados por Mortillet, e com apenas poucas exceções na Espanha, feroz e maldosamente atacaram a tese de meu avô e acusaram-no de ser um impostor”.

Somente à partir de 1895, quando gravações e pinturas rupestres foram sendo descobertas também em cavernas francesas, com um estilo muito similar ao de Altamira, foi que Cartilhac tomou coragem de ir, finalmente, até a caverna. Em sua volta, escreveu numa revista conceituada um artigo intitulado A gruta de Altamira: mea culpa de um cético. Cartilhac estava então totalmente convencido de que sim, Sautuola tinha razão, desde o início, e a arte pré-histórica poderia, sim, ter uma qualidade técnica surpreendente, muito além do que era cabível se conceber segundo as teorias da época. E pediu sinceras desculpas por ter auxiliado na campanha de difamação de Sautuola: era tarde, o arqueólogo amador já havia morrido, e coube a sua filha continuar seu trabalho. Enquanto esteve na Espanha, Cartilhac escreveu a um amigo francês: “Gostaríamos que você estivesse aqui conosco. Altamira é a mais linda, a mais estranha e a mais interessante de todas as cavernas pintadas”.

Cartilhac morreu em 1921, mas suas teorias já haviam entrado em declínio muito tempo antes, permitindo que seu protegido, o abade Henri Breuil, assumisse o seu lugar. Cada uma das contribuições de vulto que Breuil deu à disciplina da arqueologia até sua morte, em 1961, foram posteriormente descartadas pelos acadêmicos modernos como inteiramente inúteis. As ideias de Breuil, bem como as daqueles outros que ele cooptou ou apoiou, eram genuinamente ruins e foram há muito tempo refutadas pela evidência empírica. Não existem muitos campos em que alguém possa definir dessa maneira todo o saber acumulado de uma disciplina científica em quase 60 anos, mas a pesquisa da arte rupestre é uma delas...

Em todo o mundo atual existem umas poucas centenas de acadêmicos especialistas estudando arte pré-histórica. Os membros dessa “comunidade intelectual” assumem uma pesada responsabilidade – mais de 90% de todas as cavernas pintadas e gravadas do Paleolítico Superior estão permanentemente fechadas ao público, e os pesquisadores, com liberdade de entrar e sair, usufruem de um monopólio da pesquisa básica. Isso lhes permite controlar boa parte da produção de conhecimento sobre o assunto, e assegura que a história que nossa sociedade ouve acerca da vida de nossos ancestrais nas cavernas vá de encontro a sua aprovação. Em um mundo científico racionalista isso significa, obviamente, que toda e qualquer menção a religião, magia, estados alterados de consciência, entidades sobrenaturais e/ou espíritos é permanentemente proibitiva em se tratando de uma teoria acerca das origens e do real significado dos signos da arte rupestre.

Após Breuil, muitas outras teorias estiveram em voga. Já se tentou associar os animais representados na arte rupestre aos totens, mas depois se percebeu que, se assim fosse, cada caverna haveria de ter apenas um único totem animal representado (a caverna do cabrito-montês, a caverna do bisão, etc.), mas vemos uma imensa variedade de animais na grande maioria dos sítios relevantes. Chegaram a afirmar que nossos ancestrais estavam apenas se divertindo, pintando por pintar, para “matar o tempo”, uma grande diversão... Porém, por mais que seja uma ideia “alegre”, fica difícil explicar porque a arte rupestre é encontrada geralmente em cavernas de difícil acesso e, mesmo dentro de tais cavernas, nas áreas mais remotas, algumas das quais só era possível pintar deitado ou agachado, e onde até hoje os exploradores se sentem desconfortáveis em passar apenas algumas dezenas de minutos (isso com lanternas e vestimenta adequada, coisa que os ancestrais não dispunham). Também se falou em uma “magia da caça”, uma análise pobre e superficial da suposta magia em si, que serviria apenas para auxiliar na caça dos animais pintados e gravados nas rochas. Mas hoje se sabe que muitos dos animais representados na arte rupestre sequer eram caçados, sendo que alguns sequer existiam nas imediações (para não falar nos animais que jamais existiram).

O que significam, afinal, homens com cabeça de pássaro, pássaros com pernas de homens, homens se transformando em animais, e animais, em ainda outros animais... Flutuando pela rocha antiga como seres etéreos, sem um sentido de horizonte e perspectiva... O que significam os “homens feridos”, transpassados por dezenas de lanças e flechas, homens a sangrar pelo nariz, a dançar em posições estranhas... E os padrões geométricos, os pontos, as linhas, os zigue-zagues, as serpentes surgindo caoticamente de imagens abstratas. Porque diabos, afinal, a arte rupestre parece mais uma obra de Kandinsky?

Para responder a tais perguntas com alguma sincera esperança de efetivamente chegar a alguma conclusão mais útil que as do último século da arqueologia moderna, um homem precisou, afinal, fazer o que os xamãs ancestrais faziam: ele bebeu do seu chá, e adentrou um outro mundo, dentro de sua própria mente.

» Na continuação, as visões de Graham Hancock...

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Leitura recomendada: Sobrenatural, de Graham Hancock (Nova Era).

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Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (arte rupestre na caverna de Altamira, Espanha); [ao longo] Sisse Brimberg/National Geographic (arte rupestre na caverna de Lascaux, França)

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